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Categoria: Não categorizado

13 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Jesus

Um dia o enorme crucifixo da velha igreja ganhou vida. Genuflectida a seus pés uma beata atacava a quarta salvé-rainha enquanto, do lado direito, um pouco atrás, antes do transepto, outra beata debitava padre-nossos junto ao altar da Virgem Maria. É assim a força do hábito. Trocam-se as orações e os pedidos sem reclamação dos ícones nem reparo dos mendicantes. Ao mesmo tempo o padre vociferava latim e dizia a missa.

O senhor Jesus já por ali andava dependurado, há uns séculos, a suportar a crueza dos espinhos e o mau aspecto das chagas que nunca mais saravam. Enegreceu com o fumo das velas, suportou os odores de quem cuida melhor a higiene da alma do que a do corpo, ouviu gente em desespero e pedidos de vingança de almas danadas que lhe solicitavam o infortúnio dos inimigos.

Conheceu centenas de padres e numerosos bispos a quem nunca fez reparo pelo latim periclitante, a pobreza das homilias ou a riqueza dos paramentos. Ouviu confissões eróticas sem mover a tanga, safadezas incríveis sem se ruborizar, misérias de vidas e vidas de miséria, sem um suspiro, um grito ou um vómito. A tudo o senhor Jesus se habituou, até às versões diferentes a respeito da sua própria vida.

Ouviu um bispo irado a condenar os jacobinos, outro a amaldiçoar os judeus, e, todos, conforme as épocas, a execrar a Revolução Francesa, a república, o laicismo, a apostasia, a blasfémia e o preservativo.

A tudo o senhor Jesus assistiu, em silêncio, no bronze em que o esculpiram. Até um dia. Até ao dia em que o padre apostrofou os incréus que se afastavam do culto, faltavam à santa missa e se furtavam à eucaristia; admoestou as donzelas impacientes que não esperaram pelo casamento; ameaçou os casais que substituíam a castidade pelo preservativo e contrariavam os desígnios de Deus quanto aos filhos. Jesus despertou no preciso momento em que o oficiante explicava que naquelas rodelas de pão ázimo ia ele próprio, em corpo e sangue, pousar nas línguas ávidas de quem guardara jejum desde a meia-noite, bem confessado, melhor arrependido e excelentemente penitenciado.

Foi então que arrancou os cravos, deu um piparote na coroa de espinhos, abandonou a cruz e esgueirou-se por entre os devotos sem ninguém notar, nem a beata das salvé-rainhas, nem o padre que administrava a sagrada partícula, nem os comungantes habituados a fechar os olhos. Ninguém reparou que no seu lugar ficou apenas um sinal mais em raiz de nogueira com quatrocentos anos, aliviado do peso e do freguês.

Jesus saiu pela porta principal e não mais foi visto.

12 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Homenagem a Ramón Sampedro

Faz hoje sete anos que o velho marinheiro tetraplégico exalou o último suspiro. Há anos que aquela bela cabeça sem corpo pedia a morte. Vi-o várias vezes na televisão, lúcido e sereno, exigindo que o deixassem morrer. «Sou uma cabeça sem corpo, tenho direito a morrer» – repetia.

Hoje, sete anos volvidos, decorrido o tempo para a prescrição do «crime», a amiga que o ajudou, Ramona Monteiro, revelou como o fez. A morte foi gravada por vontade de Ramon, que demorou anos a cumprir um desejo, dolorosos anos de sofrimento que a hipocrisia judaico-cristã queria prolongar até que «Deus quisesse».

Sabe-se agora que a morte foi mais dura do que previra o lúcido suicida e do que julgara a abnegada mulher que acompanhou os três últimos anos de vida do corajoso galego.

O cianeto não terá proporcionado uma morte tão rápida e doce quanto a eutanásia exige mas foi o produto que Ramon conseguiu. Enquanto morria os olhares de amor ficaram como a última carícia de quem partiu e de quem ficou, com o aviso de quem se despedia: «depois de beber não me beijes os lábios».

12 de Janeiro, 2005 Mariana de Oliveira

Estatutos AAPistas

Após inúmeras conversações no universo internauta e após a discussão no ENA III, aqui estão os estatutos da Associação Ateísta Portuguesa (AAP), já em processo de formalização.

Para aguçar a curiosidade, aqui se referem alguns dos artigos.

Artigo 1º

(Constituição, denominação e natureza)

É constituída, por tempo indeterminado, uma associação sem fins lucrativos, de natureza cívica, cultural e apartidária, e dotada de personalidade jurídica, sob a denominação «Associação Ateísta Portuguesa».

Artigo 2º

(Símbolo da Associação Ateísta Portuguesa)

A Associação Ateísta Portuguesa adopta como símbolo um átomo estilizado com a sigla «AAP» inserida.

Artigo 4º

(Objectivos)

A Associação tem por objectivos:

1. Fazer conhecer o ateísmo como mundividência ética, filosófica e socialmente válida;

2. A representação dos legítimos interesses dos ateus, agnósticos e outras pessoas sem religião no exercício da cidadania democrática;

3. A promoção e a defesa da laicidade do Estado e da igualdade de todos os cidadãos independentemente da sua crença ou ausência de crença no sobrenatural;

4. A despreconceitualização do ateísmo na legislação e nos órgãos de comunicação social;

5. Responder às manifestações religiosas e pseudo-científicas com uma abordagem científica, racionalista e humanista.

Podem sugerir iniciativas a realizar, no futuro, pela Associação Ateísta Portuguesa (AAP) através da lista de discussão ou, então, do fórum web do Ateísmo.net.

11 de Janeiro, 2005 jvasco

Maremoto foi obra de Alá

O maremoto que deixou mais de 156 mil mortos no sul e sudeste da Ásia em 26 de dezembro foi causado por Alá, para castigar os homens por não respeitarem os seus mandamentos, de acordo com os líderes islâmicos do Sri Lanka.

Os “factos” que comprovam esta afirmação são vários:

1. Uma imagem das ondas obtida por satélite onde se pode ver “claramente” o nome de Alá escrito em árabe

2. Os relatos do dilúvio descritos no episódio de Noé, do Genesis

3. Num povoado, entre as casa destruídas, uma escola Islâmica encontrava-se intacta

Mais provas para quê? Consta que Alá já tinha aplicado à região alguns castigos menores (como dificuldades económicas), mas, não tendo sido ouvido, resolveu intervir por forma a não deixar margem para dúvidas.

Às vezes parece que o ridículo não tem limites. E não se pense que este tipo de conclusões ocorreu apenas aos devotos islâmicos: um excelente artigo (DIES IRAE) do blog de esquerda faz referência a uma série de conclusões similares tiradas por membros do clero das mais diferentes religiões.

11 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

A Virgem Maria

Virgem Maria, farta das companhias e do Céu, onde subiu em corpo e alma, aborrecida do silêncio e da disciplina, cansada de quase vinte séculos de ociosidade e virtude, esgueira-se às vezes pela porta das traseiras e desce à Terra.

Traz a ladainha do costume, a promoção do terço de que é mensageira e ameaças aos inocentes. Poisa em árvores de pequeno porte, sobe aos montes de altitude moderada e atreve-se em grutas, pouco recomendáveis para a virgindade e o reumatismo, sempre com o objectivo de promover a fé e os bons costumes, de abominar o comunismo e anatematizar os pecados do mundo.

A receita é sempre a mesma: rezar, rezar muito, rezar sempre, que, enquanto se reza não se peca. Não ajuda a humanidade mas beneficia o destino da alma e faz a profilaxia das perpétuas penas que aos infiéis estão reservadas no Inferno.

Surpreende que, sendo tão vasto o mundo, a Virgem Maria só conheça os caminhos dos seus devotos e abandone os que adoram um Deus errado e odeiam o seu divino filho que veio ao mundo para salvar toda a gente.

Fica-se pela Europa, em zonas não contaminadas pela Reforma, aventura-se na América Latina, eventualmente visita a África e nunca mais voltou a Nazaré e àqueles sítios onde suportou os maus humores do seu divino filho e as desconfianças do marido. Ficando-lhe as viagens de graça, por não precisar de combustível, não se percebe que não volte aos sítios da infância, não vá em peregrinação ao Gólgota, não deambule pela Palestina e advirta aqueles chalados de que o bruto e ignorante Maomé é uma desgraça que se espalhou pela zona como outrora a peste, que a única e clara verdade é o mistério da Santíssima Trindade.

Por ter hora marcada ou para não se deixar seduzir pelas tentações do mundo, a virgem Maria regressa ao Céu, depois de exibir uns truques e arengar uns conselhos, sem dar tempo a que alguém de são juízo a interrogue, lhe pergunte pela saúde do marido e do menino e lhe mande beijos para os anjos e abraços aos bem-aventurados que estão no céu.

Um dia a Virgem Maria, com mais tempo e autonomia de voo, encontra um ateu e fica à conversa. Há-de arrepender-se dos sustos que prega, das mentiras que divulga e chegar à conclusão de que o terço faz mal às pessoas, estimula o ódio às outras religiões e agrava as tendinites aos fregueses.

10 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Notas piedosas

Espanha – Fernado Sebastian, arcebispo de Pamplona e secretário da Conferência episcopal, afirmou: «Se nos calamos e deixamos que se vá normalizando isso [ a convivência entre homossexuais] (…) é possível que nos encontremos dentro em pouco com uma verdadeira epidemia de homossexualidade, fonte de problemas psicológicos e frustrações dolorosas».

O que temerá o arcebispo, a epidemia ou o contágio?

Obras Consagradas – Eis uma pequena lista com as artes e ofícios praticados:

– Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitalares da Imaculada Conceição

– Cúria Geral dos Frades Menores Capuchinhos

– Escravas do Sagrado Coração de Jesus (A.C.I.)

– Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus

– Irmãs Reparadoras do Sagrado Coração de Jesus

– Monjas Carmelitas Descalças da Ordem da Virgem Maria

– Religiosas reparadoras de Nossa Senhora das Dores de Fátima

Recursos humanos – «D. Joaquim Gonçalves, bispo de Vila real, ordena mais um presbítero e dois diáconos. A ordenação de um novo Padre e de mais dois Diáconos foi motivo de grande festa na Diocese de Vila Real.

O neo-presbítero, Iolando Pinto Pereira, natural do Pópulo, concelho de Alijó, foi ordenado pelo bispo diocesano, D. Joaquim Gonçalves, no Domingo passado, dia 19 de Dezembro. Ler mais…»

In Mensageiro de Bragança, 10-01-05

A mão de obra qualificada é escassa.

10 de Janeiro, 2005 jvasco

Um ateu perante a morte

«Depois da morte não acaba tudo. Depois da morte ainda vem o funeral.» – cito, de memória, Onofre Varela

Na nossa sociedade, os ritos fúnebres são a regra. São rituais católicos que geralmente culminam com o enterro ou cremação do corpo do defunto.

Um ateu pode escolher que não lhe sejam prestadas essas cerimónias religiosas após a sua morte, ou não?

Na maioria dos casos, suponho que o consiga: basta para o efeito que comunique aos seus familiares e amigos o seu desejos, e que estes o procurem respeitar.

Mas, a menos que tenha em vida feito um testamento com obrigações legais, não há qualquer garantia de que isto se suceda. Os familiares podem perfeitamente ignorar os desejos do defunto, que não estará lá para se defender, dando origem a mais um evento religioso.

Os ateus, que não acreditam na vida após a morte, não deveriam ser indiferentes a essa questão?

Os desejos manifestados em vida pelo defunto não poderão simplesmente ser ignorados após a sua morte?

O respeito pela morte alheia não é apenas um hábito ritual, fruto de superstições sem sentido, que deveria ser ignorado?

Na minha opinião, a resposta a estas três últimas questões é não.

É uma opinião que pode não ser partilhada por toda a gente, já que tive oportunidade de discutir este assunto quer com crentes, quer com um ou outro ateu.

Nós, como seres humanos, pensamos na morte. Para uns é raro, para outros frequente.

Esses pensamentos não costumam ser agradáveis, quer devido ao instinto de sobrevivência, quer devido a uma série de outros factores (as saudades dos entes queridos que morreram, por exemplo).

As religiões assumem um papel interessante, que pode minorar ou aumentar o sofrimento resultante dessa última confrontação, consoante a mitologia e a respectiva intepretação.

Assim sendo, enquanto sacerdotes mais insensíveis podem lembrar a família e os amigos da forma como os pecados do falecido podem colocar a sua alma em perigo de encontrar o Inferno, outros, mais hábeis na forma de lidar com as pessoas, podem aliviar o seu sofrimento fazendo ver que se desejam bem ao falecido, deveriam estar felizes pelo facto da sua alma estar num mundo melhor.

Por paixão à verdade, não acho que se justifique acreditar em mentiras e superstições, mesmo que elas aliviem o nosso sofrimento com a ideia da morte (coisa que, como referi, não se verifica necessariamente).

Mas acho óptimo, do ponto de vista humano, que encontremos as melhores formas de encarar essa questão, para sofrermos o mínimo com ela.

O respeito pela morte alheia é uma dessas formas.

O facto de ser usual o respeito aos desejos póstumos de alguém, leva-nos a crer que os nossos serão respeitados, e isso facilita a forma como encaramos esse pensamento.

PS- Vamos bater-nos para que aos não crentes sejam asseguradas condições de respeito sem os obrigar a ter de passar por uma igreja. Essa é uma batalha da futura AAP com as autarquias e o Estado.

10 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Domingo – dia do Senhor

Contra a abertura do comércio ao domingo, marchar, marchar…

O Movimento pelo Encerramento do Comércio ao Domingo, onde se destaca o pio Bagão Félix, de frouxa sensibilidade social e exacerbada devoção religiosa, consegue o apoio dos sindicatos e do patronato. Não me seduz a cassete neoliberal em voga, mas irrita-me a obstinação da ICAR em apropriar-se do domingo e atribuir-se outros dias, que crismou de santos e equiparou a feriados nacionais.

Se o dogma é um insulto à inteligência mas uma vitória para a fé, se agride a razão mas purifica a alma, se fecha os caminhos difíceis da ciência mas abre as largas avenidas da salvação, é difícil haver quem o enjeite, mas a Câmara Municipal do Porto prepara-se para pecar. Parafraseando o Eça, cabe à Vereação, moderadamente jejuada, razoavelmente confessada e melhor comungada, pronunciar-se piedosamente sobre o horário do comércio.

O Governo privatizou as seguradoras e os bancos; condescendeu com a liberalização dos combustíveis e da energia; as comunicações e os cimentos entregou-os aos privados, mas chamou a si o horário das mercearias. Nos mares, nas estradas e nos ares circula a iniciativa privada mas respeita-se, na compra do sabão amarelo, o horário das repartições. Não tem horário a gasolina mas têm hora marcada a posta de pescada e o quilo de feijão carrapato.

Andou bem o Governo, há anos, em proibir às grandes superfícies a abertura de portas ao Domingo. Preferiu a santa missa à venda dos legumes; dificultou a aquisição de frescos mas facilitou a divulgação das homilias; alguns bacalhaus ficaram por vender mas promoveu-se a eucaristia, com hóstias sem código de barras, nem prazo de validade, guardadas sem rede de frio nem inspecção sanitária. Folgam as caixas registadoras aos Domingos mas agitam-se as bandejas nas santas missas.

Contrariamente ao que era de esperar, não houve, porém, festa nas sacristias, não rejubilou o episcopado, não aconteceu um lausperene. Nem uma missa de acção de graças. Nem uma novena. Provavelmente algum padre-nosso rezado na clandestinidade ou uma ave-maria balbuciada por uma beata enquanto resistia à tentação da carne e ao assédio do marido. A própria Conferência Episcopal desistiu da pastoral da mercearia.

E vem agora a Câmara Municipal do Porto com um regulamento sobre horários de funcionamento dos estabelecimentos comerciais na cidade, capaz de os encher ao Domingo, enquanto à luz mortiça das velas um padre boceja uma homilia para meia dúzia de resignados devotos.

10 de Janeiro, 2005 Mariana de Oliveira

A blasfémia do peditório

Respondendo ao artigo do Blasfémias, intitulado «Sintomático», que versa sobre um texto do Diário Ateísta, venho esclarecer uns pequenos pontos.

Primeiro – o que acho vergonhoso não é o acto em si de solicitar contribuições voluntárias aos paroquianos, mas sim o facto de ser uma divisão de uma estrutura mais vasta, a ICAR, que está longe de viver em dificuldades económicas e que tem dinheiro mais do que suficiente para poder fazer face às despesas das suas sucursais.

Segundo – pior do que a situação anterior, é o facto de a prestação determinados serviços, nomeadamente casamentos, baptizados e funerais, só ser feita mediante o pagamento da côngrua. Ou seja, as coisas funcionam como que sob coacção: se não se pagar a contribuição voluntária, há que procurar outro sacerdote. É o que se passa em Lamego.

Terceiro – sou a favor da liberdade. Portanto, quem estiver disposto a doar o que quer que seja às suas igrejas, está no seu pleno direito desde que esses negócios não sejam contra a lei ou os bons costumes.

Quarto – a cobrança dos impostos é feita em nome da colectividade para que o Estado, em nome do Povo que legitima o seu poder, possa prosseguir políticas de interesse colectivo e não apenas de um grupo social.

9 de Janeiro, 2005 Palmira Silva

A insustentável leveza do ser

«Logo no começo do Génesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o gado. É claro que o Génesis é obra do homem e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta que Deus realmente queria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder sobre a vaca e o cavalo, poder esse que ele usurpara. Sim, porque, na verdade, o direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa que a humanidade, no seu conjunto, nunca contestou, mesmo durante as guerras mais sangrentas.

É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus tivesse dito «Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas», para que toda a evidência do Génesis ficasse logo posta em questão. Talvez depois de um marciano o ter atrelado a uma charrua ou enquanto estivesse a assar no espeto de um habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas de vitela que costumava comer e apresentasse (tarde de mais) as suas desculpas à vaca.

(…)

Descartes deu o passo decisivo: fez do homem «mestre e proprietário da Natureza». Que seja precisamente ele quem nega de maneira categórica que os animais tenham alma, eis aí uma enorme coincidência. O homem é senhor e proprietário, enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autómato, uma máquina animada, uma machina animata. Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, isso não quer dizer que a charrete sofra, mas apenas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira o gemido dos animais, e é inútil lamentar o destino de um cachorro que é dissecado vivo num laboratório.»

Milan Kundera in «A insustentável leveza do ser». Um livro que considero quasi obrigatório ler. Fala essencialmente do ser humano, da vida, do amor, das relações entre as pessoas, tornadas complexas pela sua simplicidade. Sobre o livro deixo a opinião de outro dos meus autores favoritos, Italo Calvino, em «Six Memos for the Next Millenium», «O peso da vida, para Kundera, está em qualquer forma de opressão. O romance mostra-nos como, na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela sua leveza acaba rapidamente revelando o seu verdadeiro, insustentável peso. Apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência escapam à condenação – as qualidades de que se compõe o romance e que pertencem a um universo que não é mais aquele do viver».

O filme, dirigido por Philip Kaufman, com interpretações sublimes de Juliette Binoche, Daniel Day-Lewis e Lena Olin é fabuloso e recomenda-se mas não é possível ler o livro e continuar ileso. Se lido com a mesma simplicidade com que Kundera dialoga com a realidade…