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23 de Janeiro, 2005 lkrippahl

Ecumenismo Ateu.

Ultimamente a questão da tolerância tem levado a uma certa intolerância entre ateus, agnósticos e crentes. Infelizmente, temos mais tendência para ver diferenças que semelhanças, e projectamos nas pessoas as diferenças que vemos entre as suas ideias e as nossas. Acaba-se a atacar gente em vez de discutir assuntos…

E isso é especialmente trágico porque as diferenças acabam por ser pouco importantes. O Ateu e o Crente são opostos, evidentemente; um diz que não há deuses, o outro diz que há. Mas, se virmos bem as coisas, isso é uma questão de pouca importância. A nossa vida é muito mais que a questão da existência de deuses.

Para o ateu (nem todos almejamos a letra maiúscula, felizmente) o importante é que, não havendo deuses, não há dever nenhum de acreditar neles. Quem quer acredita no que quiser, quem não quiser não acredita. A maioria dos ateus não está preocupado com o que os outros acreditam ou deixam de acreditar.

Para o crente (que também tende a ser de letra pequena, pois a grande maioria acaba por ser crente para umas coisas mas descrente para outras, e ainda bem) o importante é a sua atitude pessoal de crença. Poucos são os fanáticos que acham merecedor de sofrimento eterno todo o que acreditar em qualquer coisa que saia da fé «oficial». Para o crente também é importante que cada um seja livre de crer, ou de não o querer.

Preocupa-me que crentes, agnósticos, e ateus se agridam com a questão metafísica e pouco relevante da existência de deuses, quando no fundo quase todos concordam com o que é importante: não se deve impor crenças. Isso é que interessa!

Não interessa se um acredita e outro não. O que interessa é que crianças órfãs não se tenham que sujeitar à religião que a instituição em que calham lhes queira impor; que sacerdotes duma ou outra religião não possam abusar da confiança e poder que a sua posição lhes dá; que as organizações religiosas se sujeitem à lei e respeitem a nossa Constituição e os direitos Humanos. Estas coisas interessam tanto a crentes como a ateus.

É certo que muitos crentes não se importam que a religião seja imposta, desde que seja a deles e não outra. Esse é talvez o maior obstáculo ao «ecumenismo» ateu: persuadir os crentes que todos ganhamos em encarar a crença ou descrença religiosa como um direito individual e não como um dever sagrado. Mas não é a atacar pessoas, a ofender, ou a ameaçar as suas crenças que conseguimos uma sociedade mais tolerante.

22 de Janeiro, 2005 Palmira Silva

Da Natureza do Homem: mitos urbanos e outras histórias

A concepção do ser humano como naturalmente perverso é, na tradição judaico-cristã e em muitas outras culturas, a explicação para a existência do Mal. Outra concepção concomitante é o mito da Queda que nos sobrecarrega com o pecado original: «o homem era inocente e bom, e o mundo era um jardim, um paraíso. Mas o homem foi tentado, sucumbiu e caiu». Muito veementes na condenação da natureza humana e da sua natureza intrinseca e irrevogavelmente má (sem salvação fora do amor a Deus) encontramos na tradição cristã os escritos atribuídos a São Paulo. Nomeadamente podemos ler que os homens «estão cheios de perversidade, maldade, avareza, vícios, ciúmes, crimes, lutas, mentiras e malícia. Difamam e falam mal uns dos outros. Odeiam a Deus e são atrevidos, orgulhosos e vaidosos. Inventam muitas maneiras de fazer o mal, desobedecem aos pais, são imorais, não cumprem a palavra, não têm amor por ninguém e não têm pena dos outros».

Na sociedade ocidental este pessimismo em relação à natureza humana acompanhou e marcou os pensadores e, segundo Ashley Montagu, foi secularizado ao longo dos séculos de influência da tradição cristã de forma que influenciou mesmo os mais notáveis ateus ou autores que negavam a base religiosa do seu pensamento. Nomeadamente Freud, Thomas Huxley ( que introduziu o termo agnóstico), Herbert Spencer, Konrad Lorenz, Niko Tinbergen ou Desmond Morris.

O facto de os autores citados serem cientistas de renome, autores de obras com grande divulgação entre o público em geral, contribuiu para o sedimentar desta descrença na bondade do Homem.

Todos estamos familiarizados com a cena de abertura do famoso filme de Stanley Kubrik «2001, Odisseia no Espaço» que corrobora esta noção da inata violência do Homem, que o acompanha desde os primórdios da evolução. Mas poucos saberão que estamos a assimilar as teorias (erradas) de um antropólogo australiano, Raymond Dart. Em 1924, Raymond Dart fez a descoberta que o tornou famoso. Dart trabalhava com os seus alunos numa exploração de pedra em Taung e descobriu o fóssil de um crânio de um primata, um elo na evolução do homem, a que chamou Australopitecus africanus. Dart concluiu que nos locais onde estas criaturas tinham vivido, existia uma cultura «osteodonkeratic« (ossos, dentes e chifres) e argumentava que eles eram caçadores selvagens e sedentos de sangue, cujas tendências deixaram marcas indeléveis no comportamento humano. E afirmou que «as mais recentes atrocidades da II Guerra Mundial estão de acordo com o primitivo canibalismo universal, com as práticas de sacrifícios animais e humanos ou seus substitutos em religiões formalizadas, e com as práticas generalizadas de escalpelizar, caçar cabeças para reduzi-las, mutilar corpos, e com as actividades necrófilas da humanidade revelando esse hábito predatório, essa marca de Caim, essa sede de sangue que separa dieteticamente o homem dos seus parentes antropóides e o aproxima dos mais mortíferos dos carnívoros». A epígrafe do artigo de Dart «A Transição Predatória de Macaco a Homem», é uma citação de Baxter, famoso teólogo inglês do século XVII: «De todas as feras, a fera homem é a pior. Para as outras e para si mesma, o mais cruel inimigo», ou seja, as suas elucubrações foram certamente influenciadas pelo pensamento religioso!

A visão dos «macacos assassinos» foi popularizada pelo escritor Robert Ardrey em livros como African Genesis que por sua vez serviram de inspiração para a cena de abertura do filme «2001: A Odisseia no Espaço». Estas ideias foram fortemente criticadas e estudos posteriores provaram que estavam totalmente erradas. No entanto, para o público em geral a imagem que perdura incontestada é a violência primeva do Homem, a sua tendência natural para o mal, um assassino da sua própria espécie.

Em oposição a esta tese, que coloca na biologia ou na natureza do Homem, a fonte dos males que assolam a Humanidade, encontramos a tese do «bom selvagem», o homem intrinsecamente bom «estragado» pela civilização, defendida por Montesquieu, Rousseau e Reich, entre os mais conhecidos, que coloca o ónus do mal na estrutura social e política que desenvolvemos, na religião, na ética, na cultura, etc..

Apesar de não subscrever na íntegra esta tese do «bom selvagem», até porque os avanços da neurobiologia nos indicam que há causas biológicas para comportamentos violentos e anti-sociais em alguns indíviduos, ou seja, que nem os bons selvagens estão imunes a distúrbios biológicos, suponho que podemos encontrar algumas causas dos males sociais, tal como hoje os entendemos, nas raízes judaico-cristãs da sociedade ocidental, já que estas condicionaram e determinaram, directa ou por oposição, a nossa evolução social.

Assim, se analisarmos criticamente a História, podemos constatar que apenas depois de Petrarca e do início dos movimentos humanistas, que colocam a ênfase no Homem e não em qualquer ser transcendente, e consequentes separação da Igreja-Ciência e da Igreja-Estado se dá um avanço ético nas sociedades ocidentais. A progressão do sub-homem de Sartre para o Homem pleno, só pode de facto realizar-se através do humanismo. Apenas acreditando no Homem, repudiando a tradição cristã da sua natureza pecadora e má, e estabelecendo uma ética centrada no Homem e não em verdades «reveladas», podemos viver harmoniosamente com os nossos semelhantes. O que não obsta a que quem acredite nessas verdades reveladas as siga na sua vivência pessoal, desde que não colidam com a ética humanista.

De facto, as minhas objecções ao cristianismo são na linha das de Kierkegaard, ou seja, não apenas no campo da dúvida intelectual, mas no campo ético. O cristianismo aponta como doutrina fundamental uma aceitação submissa, que se opõe a qualquer «insubordinação, relutância em obedecer, rebelião contra a autoridade». O exemplo que Kierkegaard invoca é o de Abraão e Isaac. Deus ordena a Abraão para sacrificar o seu filho, isto é, Deus ordena a Abraão para cometer um assassínio. Há aqui um aparente paradoxo, resolvido se entendermos que este episódio pretende incutir a lição que é mais importante obedecer a Deus do que preservar a vida humana.

Para mim, independentemente de acreditarmos ou não na existência de Deus, deusas ou deuses, as regras de conduta social devem subscrever-se ao Homem e não a qualquer entidade exógena. Assim, acho que o desafio do século XXI é a separação Igreja/religião-Ética!

Bibliografia:

Ashley Montagu, «The Nature of Human Aggression». Oxford University Press

21 de Janeiro, 2005 Ricardo Alves

A identidade contra a liberdade

Zita Seabra, cabeça de lista do PPD/PSD pelo círculo de Coimbra, protestou quarta-feira o seu «grande respeito pelo papel desempenhado em Portugal pela Igreja Católica», uma afirmação ritual comum em muitos políticos apostados na conquista do favor institucional da dita igreja e da sua (presumível) «orientação de voto». A afirmação, de tão rotineira, não choca, mesmo se um pouco de rigor histórico e de decência exigiriam que quem a faz ressalvasse, subtilmente que fosse, os crimes da inquisição, os pogromes católicos e a colaboração da ICAR com a ditadura fascista. Mas Zita Seabra foi mais longe ainda, e arriscou que «ao não reconhecer essa tradição [a da ICAR], alguns países da Europa – como a França, a Alemanha e a Espanha – correm um sério risco de perda de identidade». Aqui, confesso que a minha irritação explodiu. A palavra «identidade» serve hoje em dia para justificar todas as opressões e formas de controlo dos grupos sobre os indivíduos, e isso vê-se desde a defesa icarística de uma menção às «raízes cristãs» no projecto de Constituição da União Europeia, até à obrigação de raparigas de origem muçulmana usarem o véu islâmico. E quem fala em nome da «tradição» e da «identidade»? Sempre, sempre, o clero. (E o mais extremista, claro…)

Pessoalmente, como ateu que sou, jamais me conseguirei identificar com um Estado português que, como quer a candidata a deputada, seja baseado nos «nossos (…) valores católicos». Eu não faço parte do «nós» que ela conjuga, tenho todo o direito a isso, e passo bem sem as crises de identidade da senhora Zita Seabra. A «identidade cultural» ou é dinâmica ou não é democrática, e se há necessidade de valores comuns, e eu reconheço que pode haver, que sejam os da República e da Democracia, e as leis que democraticamente a comunidade política decida dar a si própria. Dispenso leis e valores «revelados» por uma entidade sobrenatural em que não acredito, e transmitidos por intermediários terrestres de que a História me aconselha a desconfiar. Evidentemente, o direito de se orientar por esses valores (no quadro das leis comuns) é intocável. Simplesmente, a comunidade política e a comunidade eclesial são entidades distintas e devem sê-lo cada vez mais.
21 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Sobre o Diário Ateísta

Há por aí quem nos ache supérfluos, indignos e mal formados, quem julgue a nossa presença inútil, prejudicial ou perigosa, quem secretamente gostaria de nos ver calados, amordaçados ou erradicados. E nós, ateus, teimosamente vivos, perante a indiferença divina e o espanto dos crentes, teimamos em ser uma voz ao serviço da liberdade, do livre pensamento e da descrença.

Da enorme quantidade de religiões que disputam o bazar da fé todas se julgam inspiradas no único Deus verdadeiro, donde se conclui facilmente que na melhor das hipóteses todas são falsas e só uma é autêntica ou, no caso mais provável, que nenhuma delas passa de um embuste de que se alimentam os parasitas da fé à custa dos crédulos.

Os ateus respeitam os crentes e desprezam as crenças. São como médicos que cuidam os doentes e atacam as doenças; são solidários com os que sofrem e abominam os que incentivam o sofrimento; defendem a felicidade, o conhecimento e a razão e combatem a resignação, a subserviência e a superstição.

Nunca o Diário Ateísta defendeu posições racistas, discriminações com base na raça, no sexo, na religião ou em qualquer outro pressuposto. Não faz a apologia do nacionalismo ou estimula atitudes bélicas. Reitera a cada momento a nossa determinação na defesa dos princípios que regem a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Qual a religião que se conforma com tais princípios? Defendemos a liberdade, os direitos humanos e a democracia. Combatemos a pena de morte, a prisão perpétua e a tortura. Somos contra o racismo, a xenofobia e a discriminação sexual. Há alguma religião que nos acompanhe? Quem é intolerante?

É ignóbil que alguém procure impedir a prática de uma religião mas é ainda mais abjecto haver quem imponha a sua prática, um hábito a que não renunciam facilmente os prosélitos dos diversos credos, determinados a fazer cumprir a vontade do deus a que se encontram avençados, escravos da vontade divina transmitida pela mente embotada dos seus padres.

As sociedades que aprofundam o laicismo não põem em causa o exercício da liberdade religiosa mas as que se submetem a uma Igreja facilmente confiscam todas as liberdades em nome de um Deus que não existe, com uma sanha persecutória e uma vocação totalitária própria de quem se julga detentor de verdades absolutas.

21 de Janeiro, 2005 André Esteves

A caridade cristã também mete água

Do Índico continuam a nos chegar notícias do apoio humanitário dado às populações. As piores estimativas foram ultrapassadas… Neste momento contabilizam-se 220.000 mortos e vários milhares de desaparecidos.

Mesmo tendo passado várias semanas, o apoio humanitário ainda encontra dificuldade em chegar às populações. Mas se ao menos fossem só os acessos e a geografia…

Da Índia, na região Tamil Nadu, chega-nos a notícia de uma forma muito peculiar de prestar caridade.

A aldeia de Samanthapettai tinha sido destruída pelo tsunami. Os sobreviventes desesperavam à dias por ajuda. Quando surgem, finalmente, a descer pela estrada camionetas. Sem conter a esperança, os camponeses correram a buscar ajuda.

Desceram dos carros missionários cristãos, que se prontificaram a dar ajuda… mas com uma condição: tinham que se converter ao cristianismo

Ultrajados os camponeses começaram a se queixar, quando surgem na estrada as carrinhas dos jornalistas e televisões. Que passaram a assistir à apressada debandada de tanta boa vontade cristã.

Do outro lado do Índico, em Aceh, Indonésia, a história repete-se. Aqui, foram os voluntários de ONG’s laicas que trouxeram a público, as várias investidas proselitistas que uma multitude de seitas e religiões estão a realizar a coberto da ajuda internacional.

Desde seitas cristãs americanas que recolhem órfãos para centros privados onde lhes darão uma boa educação cristã, a fundamentalistas islâmicos que ensinam o corão, à sua maneira peculiar, a todas as crianças que se refugiaram nos campos de ajuda. Grupos que no passado tinham sido inclusive expulsos de Aceh pela população muçulmana moderada local.

Até a igreja da Cientologia, têm voluntários no campo, onde realizam «massagens» e prestam auxílio psicológico com os «avançados» métodos psicológicos cientologistas…

Depois do caos, a experiência passada parece o castigo de Deus. Os seus proclamados representantes é que não querem perder essa oportunidade.

Lá longe, distante das democracias laicas, é que a medonha cara do proselitismo se mostra. Por cá, continuam alguns a invocar falsas tolerâncias e a criticar a formal agressividade de alguns ateus, para impedir uma forte laicidade do estado.

Nunca estiveram debaixo d’água… Senão, não estavam com tanta treta.

20 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

A ICAR e o preservativo

A ICAR está para o preservativo como o islão para o toucinho. O bom senso não é o forte das religiões e a compaixão não consta dos seus valores. Bastaria o drama de África, onde a epidemia da SIDA grassa de forma devastadora, encaminhando o Continente para uma hecatombe, para abdicar de um dogmatismo estulto e criminoso.

Em Espanha o secretário geral e porta-voz do episcopado autóctone, após uma reunião com a ministra da Saúde, declarou que a Igreja reconhecia a eficácia do preservativo como método para a prevenção do terrível flagelo. Perante a estupefacção de alguns e a satisfação de muitos, dado o poder de que goza aí a Igreja católica, parecia assistir-se a uma reviravolta de 180 graus na posição tradicional do clero.

Foi sol de pouca dura. A Conferência Episcopal Espanhola (CEE) imediatamente reagiu, desautorizando o porta-voz, e reiterando que apenas a castidade e a fidelidade matrimonial eram os meios adequados à prevenção da SIDA tendo reiterado na sua boçal e canónica linguagem que o uso do preservativo era imoral.

Os beatos preconceitos da santa corja celibatária são, uma vez mais, um obstáculo às campanhas de saúde pública, um entrave à prevenção das epidemias e um estorvo ao bem-estar humano. Intérpretes encartados de um Deus cujo prazo de validade há muito se extinguiu, arautos de uma moral anacrónica, zeladores intransigentes da dor e do sofrimento, continuarão a ser cruéis, obsoletos e hipócritas.

Combater a SIDA é uma obrigação para salvar vidas humanas. Desacreditar as Igrejas é uma medida sanitária imprescindível à felicidade humana. Dentro de poucos anos um Papa qualquer pedirá perdão pelos crimes do actual, tal como este pediu pelos dos seus antepassados, sempre sobre os escombros das sociedades a que levaram a angústia, a dor e a morte.

19 de Janeiro, 2005 Palmira Silva

Ano Mundial da Física

Vivemos o Ano Mundial da Física, que marca o centenário da publicação dos trabalhos de Albert Einstein sobre a natureza dualista da luz, sobre a relatividade restrita, a relação entre massa e energia e sobre o movimento browniano, que revolucionaram o mundo em que vivemos. E esta celebração não poderia ser mais conveniente dada a conjuntura internacional marcada por obscurantismo pós-moderno. Obscurantismo aparentemente paradoxal na era da genómica e das nanotecnologias mas, citando uma estafada máxima, familiaridade gera desprezo. Estamos tão familiarizados com as maravilhas da Ciência que simplesmente já não nos espantamos com nada que a Ciência produza.

Mas este desprezo, mantido ao longo do tempo, tem custos elevados. Actualmente a maioria das pessoas depende de tecnologias baseadas em conceitos que desconhece e que, quiçá, até contempla com um certo «misticismo» supersticioso. O argumento a partir da ignorância – se eu não sei o que é, pode ser qualquer coisa – pode ser muito convincente para determinado público. Assim, abundam vendedores de banha da cobra que oferecem dispositivos «magnéticos» ou «quânticos» para aplicações sortidas, desde curas «milagrosas» passando pela imortalidade até à economia de combustível! Gente instruída acredita em processos de fusão fria «biológica», que é possível «alimentar-se» unicamente da luz do Sol, e em inúmeras outras lendas urbanas.

O facto do conhecimento científico não ter permeado a sociedade em geral, ou seja, a complexidade crescente da ciência não ter sido acompanhada por um esforço de divulgação, abriu um fosso crescente entre o conhecimento científico e a sua compreensão pelo público. Este é certamente um dos parâmetros a equacionar na explicação do aumento de uma religiosidade rígida e intolerante!

A única forma de combater o obscurantismo é o conhecimento! Façamos então do Ano Internacional da Física um ano de combate ao obscurantismo!

E começo por recomendar um livro de um amigo meu, o Jorge Buescu, «O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias: Crónicas das fronteiras da ciência»

19 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

ICAR espanhola contraria Papa

A Conferência Episcopal Espanhola (CEE) cujo azedume contra o Estado laico recolhe a unanimidade dos 74 bispos titulares de outras tantas dioceses, bem como da generalidade do clero, acabou por reconhecer ontem o uso do preservativo como meio de protecção contra a SIDA, sem ter em conta os ensinamentos papais em contrário e o desgosto que dão à Santidade JP2.

O porta-voz da CEE, à saída da reunião com a ministra da Saúde, onde apenas se discutiu a SIDA, afirmou que o encontro permitiu desmistificar «determinados preconceitos» e sublinhou que as posições da Igreja sobre a doença estão apoiadas em estudos científicos que defendem a abstinência, a fidelidade e o uso do preservativo – escreve o «Público».

A Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), embora demasiado tarde e depois de ter provocado muito sofrimento inútil, acaba por se conformar com a ciência, perante o descrédito do Papa.

Quanto à abstinência adivinha-se que previne a SIDA sem necessidade de estudos científicos. Em relação à fidelidade há a certeza de que resulta, com a condição de nenhum dos parceiros estar infectado. Já quanto ao preservativo é que há estudos científicos que a ICAR sempre se recusou a aceitar e que o Papa ainda não suporta.

Apostila (6 horas depois) – Um comunicado [da Conferência Episcopal Espanhola] esclarece que: a abstinência sexual e a fidelidade conjugal são as únicas formas de prevenir, de forma completamente eficaz, a propagação da SIDA; que, mesmo quando recomendado tecnicamente pela comunidade científica como forma de prevenção da SIDA, o «uso do preservativo implica uma conduta sexual imoral».

18 de Janeiro, 2005 lkrippahl

Os valores de um ateu

O Ateu não crê em deuses, segue apenas a razão, não tem fé no que não vê. Por isto, dizem os crentes, não tem valores nem base para a moral. Mas os crentes que nisto crêem enganam-se. A crença muitas vezes engana, e é talvez a aceitação deste facto que mais distingue o Ateu do Crente.

A razão é uma ferramenta útil para processarmos observações. Tal como qualquer ferramenta, usada por si só, sem mais nada, não leva a lado algum. Disto são exemplos tentativas de crentes, de Tomás de Aquino a Descartes, de provar a existência de deuses com recurso apenas à razão. É martelar sem pregos… um exercício fútil pois a conclusão é função apenas dos axiomas em que decidimos acreditar à partida. Tomás de Aquino assumiu que tudo o que se move tem que ser movido por algo mais; com essa premissa, não é de estranhar que tenha concluído que tem que haver algo mais que aquilo que observamos mover-se.

A atitude de dúvida comum a muitos ateus não resulta em usar apenas a razão. Pelo contrário, leva-nos, ateus, a sujeitar a razão ao que observamos. Não tiramos os nossos axiomas do chapéu, nem assumimos verdades incontestáveis. Usamos a razão como ferramenta para compreender o que observamos.

E essa atitude de dúvida não leva ao vazio moral. É verdade que observamos que os valores são subjectivos. A subjectividade dos valores estéticos todos aceitam (de gustibus non est disputandum), mas a subjectividade dos valores éticos e morais é igualmente óbvia. O Crente vê apenas duas alternativas: ou acreditamos que os valores morais são ditados por Alguém a quem todos temos que obedecer, ou a moralidade passa a ser algo puramente subjectivo sem qualquer fundamento. Mais uma vez, o Crente engana-se: não só estas duas alternativas são a mesma coisa, mas há outra que lhe escapa.

Precisar de Alguém para fundamentar a nossa moral é o mesmo que dizer que a moralidade é subjectiva. É certo que o pecado de comer carne à Sexta-feira parece mais sério se resultar dum juízo divino que se provier dum momento de fraca inspiração dum membro do Clero. Mas nem por isso deixa de ser subjectivo; apenas se substitui um sujeito humano por um alegadamente divino. Se a moral fosse objectiva não precisávamos de um deus para decidir o que é bom e o que é mau, tal como não precisamos de fé para determinar a carga do electrão.

E isto não nos reduz à subjectividade pura. É que esta propriedade dos valores, de serem subjectivos, é uma propriedade objectiva. Independentemente da opinião de cada um, os valores são sempre subjectivos. Com isso podemos contar. E isso pode servir de fundação para a moral; serve para a minha, e acho que estou bem servido. Passo a explicar.

Como os valores são subjectivos, eu não defendo um conjunto de valores como bons rejeitando outros como maus. O que eu defendo são os valores de todos, e todos os valores. Por isso sou a favor da legalização do casamento de homossexuais. Não é uma opção que escolheria para mim, mas se duas pessoas têm valores diferentes dos meus e preferem esta opção, devem ter o direito a ela. Não é simplesmente por eu ou outros discordarmos que se deva priva-los do reconhecimento dos seus valores. Por outro lado sou contra a violação ou a tortura. O violador pode ter valores diferentes dos meus, e achar que está a fazer bem, mas se a vítima discorda os seus valores também contam. Ou seja, quando tomo uma decisão moral, em vez de perguntar o que este ou aquele deus prefeririam, pergunto o que será melhor para os seres envolvidos de acordo com os seus próprios valores. Seja deus ou mortal, valores são sempre subjectivos, por isso mais vale basearmo-nos nos valores dos que sofrem as consequências da decisão a tomar.

Proponho isto apenas como uma de muitas hipóteses para fundamentar uma moral sem recurso ao divino. Não é necessário que todos os ateus concordem com esta abordagem. Aliás, a minha moral está em conflito com a maioria dos ateus em alguns pontos. Um exemplo é o aborto. Se por um lado respeito o juízo de valores da mulher que não quer que aquele feto se transforme num bebé para amamentar, numa criança para educar, num adolescente para aturar e sustentar até finalmente sair de casa dos pais, por outro lado tenho também que considerar que todos esses estágios de desenvolvimento serão de grande valor ao ser que vai ser abortado. No caso da gravidez resultar dum acto sexual voluntário e de não haver riscos de saúde que justifiquem o aborto, sou moralmente contra esta prática. Nisto vejo como erradas as abordagens tanto dos que são contra por considerar a vida humana sagrada como os que são a favor da escolha por considerar que um feto não é uma pessoa: ambos cometem o erro de projectar os seus valores subjectivos nos dois seres mais directamente afectados por esta decisão.

Outro exemplo é a minha objecção moral ao consumo de carne de alguns animais. Acho que as vacas e os porcos, entre outros, sofrem demasiado na criação, transporte, e abate para que o meu gosto por bifes e costeletas justifique a minha participação nesta actividade. Por isso recuso-me a comprar estes produtos.

Em suma, não é verdade que a descrença no divino ou a aceitação da subjectividade dos valores negue a moralidade. Até considero bastante mais moral aquele que age de acordo com os seus princípios que aquele que se sujeita aos princípios de outrem por medo do castigo eterno. E não é verdade que negar a natureza sagrada da espécie humana nos obrigue a um comportamento animalesco e imoral. Pelo contrário, a compreensão que somos todos animais e que todos os organismos são parentes, descendentes de ancestrais comuns, obriga-nos a um respeito muito maior pela natureza da qual fazemos parte.

17 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Notas piedosas

Filipe Scolari – O treinador de futebol conhecido por ter introduzido o pai-nosso no plano de treino da selecção portuguesa, após ter tomado conhecimento da sobrevivência de um menino indonésio de sete anos, durante 19 dias, após o maremoto, usando apenas a camisola da selecção portuguesa, declarou: «o menino que usava apenas a camisola da selecção, usava mais que isso: tinha no corpo a bandeira de Portugal. A forma como aconteceu mostra mais uma vez que Deus é grande. Que Deus existe».

Pergunta: O Deus que salvou esta criança será o mesmo que matou e estropiou centenas de milhares de vítimas?

Penitenciária Apostólica – Não se trata de uma casa de reclusão para promover o proselitismo, como parece indicar o nome. Deve-se-lhe a publicação de um decreto onde se explica o «dom da Indulgência Plenária durante o ano da Eucaristia», lançado por JP2 em Outubro passado. Assim, quem participe «com atenção e piedade» em actos de culto e veneração para com o Santíssimo Sacramento, como a missa ou a adoração eucarística, arrecada Indulgências Plenárias.

Na mesma altura, numerosas empresas comerciais anunciaram agressivas campanhas de vendas com fortes descontos e aliciantes ofertas. Esta época é fértil em promoções.

Espanha – «Setenta e quatro Bispos espanhóis vão explicar ao Papa a situação nas suas dioceses, num momento de particular tensão nas relações entre a Igreja Católica e o governo socialista de Zapatero» – informa a Agência Ecclesia. Os prelados vão reunir-se com o Papa em audiências privadas e públicas. O aborto, a legalização dos casamentos homossexuais e o ensino da Religião nas escolas públicas são os problemas que levam os bispos a queixar-se ao capataz de Deus, sediado no Vaticano.

Muito sofrem os bispos com os governos democráticos.