17 de Maio, 2005 pfontela
Perseguições e mitos II
No último artigo espero ter conseguido deixar uma imagem clara das ideias que circulavam sobre o cristianismo na altura em que Império Romano ainda era pagão. Agora é a altura de analisar um pouco mais detalhadamente os mitos.
Comecemos pela cabeça de burro, que os cristãos era suposto adorarem. Este mito não foi inicialmente aplicado aos cristãos mas sim aos judeus de Alexandria. A comunidade grega e a comunidade judaica viviam lado a lado num estado de permanente tensão, se não mesmo conflito, e parece que este rumor começou algures no séc. I d.c. e a sua origem parece residir numa mera coincidência de linguagem, já que a palavra Jeová se assemelhava à palavra burro em egípcio (1). Pode à primeira vista parecer um elemento insignificante ou puramente decorativo na descrição do culto judaico mas não o é. O burro era, no mundo antigo, um dos animais mais desprezados que existiam e o facto de se identificar uma religião com este animal tinha a intenção de envergonhar os judeus e de os expor ao ridículo. O mito foi desenvolvido, de forma original, por Apion (2) (membro da comunidade grega de Alexandria e um anti-semita rábido), e segundo as várias “provas” por ele expostas um grego, de nome Zabidos, teria entrado disfarçado no templo para roubar a cabeça de burro. Esta invenção de Apion teve um efeito além do esperado já que ao longo dos séculos variantes da sua história foram repetidas inúmeras vezes, tornando-se progressivamente mais violentas (em algumas versões tardias o grego teria sido morto por descobrir o terrível segredo). A associação deste mito judaico ao cristianismo era um passo inevitável já que o cristianismo sempre foi considerado pelos romanos como uma forma de judaísmo, apresentando muitas das mesmas características que alienavam a cultura clássica (a crença num deus omnipresente e omnipotente que no entanto era invisível era algo que os romanos simplesmente não concebiam). Existe no entanto um aspecto curioso, este mito enquanto foi aplicado exclusivamente aos judeus teve uma área de influência sempre limitada à zona de Alexandria mas quando passou a abranger os cristãos espalhou-se rapidamente por todo o império.
Estando a origem da cabeça do burro explicada podemos passar às acusações de assassinato ritual e canibalismo. Os cristãos também não foram o primeiro grupo a ser acusado deste tipo de crimes, aliás para perceber o porquê da acusação convém olhar para os outros grupos acusados. A primeira vez que se encontra esta acusação na cultura romana ela está misturada com o mito da fundação da república. Conta-nos Plutarco que quando Tarquínio, o último rei de Roma, foi deposto os seus seguidores juraram que tudo fariam para assegurar uma restauração. E com esse fim em mente todos prestaram um estranho e terrível juramento em que o sangue de um homem assassinado terá sido derramado (em vez de prestarem a libação com vinho como era tradição) e as suas entranhas teriam sido tocadas por todos (3). Se este exemplo marcou o início da república é irónico que o outro exemplo mais emblemático marque os seus últimos anos. Na época da famosa conspiração de Catilina corria a lenda que o próprio catilina teria passado a cada um dos seus conspiradores um cálice com uma mistura de vinho e sangue e cada um ao beber teria proferido uma maldição, e este acto tê-los-ia vinculado a todos à conspiração(4). Alguns séculos mais tarde a lenda já tinha sofrido adições de outros elementos; Catilina e o seu grupo de conspiradores teriam assassinado um rapaz e devorado em conjunto as suas entranhas como parte de um ritual (5). Nenhuma destas acusações tem qualquer base real já que se tal fosse o caso Cícero, o maior opositor de Catilina no Senado, teria escrito algo a esse respeito.
Apesar de ser verdade que cultos que sacrificavam e devoravam seres humanos não são inéditos no mundo antigo (existia, por exemplo, o culto de Dionísio na Trácia em que é possível que crianças fossem devoradas como representantes do deus) as histórias que vimos até agora apontam noutra direcção. De facto em todos os casos o festim canibalesco aparece como uma forma de um grupo de conspiradores afirmar a sua solidariedade mútua e seu empenho à causa. Causa essa que invariavelmente consiste em derrubar o status quo, depor a ordem reinante e tomar o poder. Trata-se de facto de um estereótipo: a ideia de uma sociedade secreta que procura de forma implacável o poder. Este estereótipo e as suas variações provaram ser extremamente poderosos e resistentes, sendo que foram usados ao longo da idade média para a demonização dos hereges e, em conjugação com outros factores, culminaram na grande caça às bruxas dos sécs. XVI e XVII.
Ao vermos estas acusações, de canibalismo e assassínio ritual, lançadas contra os cristãos podemos inferir que os romanos tinham a percepção do cristianismo como um grupo sedento de poder que desejava a destruição da ordem estabelecida. Aqui temos que analisar dois pontos: o primeiro onde é que os pagãos foram arranjar um elemento de canibalismo para poder justificar o seu estereótipo e o segundo é a busca duma razão para esta visão do cristianismo como um grupo de conspiradores. O primeiro ponto é relativamente simples de explicar, os romanos viram na eucaristia uma prova de canibalismo, e até certo ponto estavam certos. Apesar de vários teólogos cristãos terem nos primeiros séculos tentado espiritualizar a eucaristia a verdade é que a maioria dos cristãos partilhava da visão que seria estabelecida como dogma pelo concilio de Trento séculos mais tarde: a eucaristia é literalmente o sangue e a carne de Jesus. O segundo ponto, a justificação para a visão dos cristãos como um grupo de conspiradores, também é relativamente fácil de encontrar, sendo que não se trata de um preconceito pagão totalmente injustificado. À parte do óbvio conflito entre a religião imperial (com o próprio imperador deificado) e uma religião que proclamava que o seu deus era o senhor do universo temos também o facto de os cristãos primitivos esperarem a redenção, já que viam o mundo como intrinsecamente malévolo, do qual os crentes seriam libertados pela segunda vinda de Jesus (de notar que a segunda vinda nos primeiros séculos do cristianismo paira no ar como se de algo eminente se tratasse) – a conclusão lógica destas ideias é que todo o culto imperial não passava de idolatria e Roma era a nova Babilónia, o reino do anticristo. Resumindo, a luta dos cristãos não era política mas sim escatológica. Toda esta atitude contribuiu para o afastamento das comunidades cristãs da vida cívica, chegando a extremos em que os romanos pagãos os viam como uma fé malévola e subversiva.
(continua em breve)
(1)- A. Jacoby, ‘Der angebliche Eselskult der Juden und Christen’.
(2)- Josephus, Contra Apionem – cap. II.
(3)- Plutarch’s Lives: Poplicola, IV.
(4)- Sallust, Catilina, XX.
(5)- Dio Cassius, Romaika (History of Rome), lib. XXXVII, 30.