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28 de Outubro, 2005 Mariana de Oliveira

Vitória para a teocracia americana

Harriet Miers, nomeada por George W. Bush para o Supremo Tribunal de Justiça americano, renunciou a este cargo. Numa carta dirigida ao Presidente, a antiga conselheira para a Casa Branca, afirma não querer ser «um fardo» para a Administração.

A nomeação de Miers foi criticada pela direita americana que pretendia a nomeação de um magistrado anti-aborto.

A direita teocrata «agradeceu» à advogada e ofereceu-se para «apoiar outro candidato que siga a linha de Antonin Scalia ou Clarence Thomas», juízes conhecidos pelas suas posições contrárias à defesa dos direitos civis.

Por seu turno, os democratas acusam a «direita radical republicana» de «matar» a nomeação de Miers e temem – com razão – que Bush nomeie um extremista que agrade à sua base de apoio ultra-conservadora.

27 de Outubro, 2005 Carlos Esperança

A fábula de Cristo

«A fábula de Cristo é de tal modo lucrativa que seria ingénuo advertir os ignorantes do seu erro». Leão X, papa in «Cristo Nunca Existiu» – Emílio Bossi.

Com excepção de João Paulo II, um homem supersticioso e beato, representante de uma Polónia rural, atrasada e autoritária, é pouco provável que os Papas modernos acreditem na existência de Deus.

No passado houve vários, comprovadamente ateus, chamados anti-papas pelos sucessores que herdaram o negócio e a quem coube redimir o passado onde avô, filho e neto usaram a tiara e muitos estimularam orgias que fizeram do Vaticano o mais sofisticado bordel da Europa. Os Bórgias são os mais conhecidos desse passado de cupidez, simonia, deboche e luxúria mas muitos outros usaram o poder e a riqueza do cargo para se regalarem com os mais deliciosos pecados, que consideram abomináveis, da Igreja a que presidiam.

Hoje, já não há papas na casa dos vinte anos. Os cardeais escolhem indivíduos cuja idade os torne imunes às tentações da carne e ao fascínio do múnus.

Não é provável que homens cultos e experientes acreditem nas fábulas que a cegueira ontológica dos evangelistas criou, mas compreende-se que não abdiquem do poder que sabem estar dependente do número de crentes de que dispõem e da intensidade da sua fé.

Com a excepção de JP2 – repito -, os Papas não acreditam em milagres embora se sintam na necessidade de rubricar alguns para gáudio de populações simples, pobres, crédulas e fascinadas pelo fantástico.

27 de Outubro, 2005 fburnay

Religião e Sociedade

Desenganem-se os que afirmam que a religião é necessária para a coesão social. O artigo citado na Times, publicado na Religion and Society, um jornal académico dos EUA, é mais uma prova de que a decadência da sociedade não anda de mãos dadas com o secularismo nem a ausência de crenças. Chega mesmo a afirmar que a crença religiosa causa danos à sociedade, contribuindo para mais elevadas «taxas de homicídio, aborto, promiscuidade sexual e suicídio». Muitos cristãos liberais acreditam que estes males que afligem a sociedade são minorados com a crença no divino. Mas de acordo com o autor do estudo, existe uma correlação positiva entre a taxa de crença num deus e elevadas taxas de homicídio, mortalidade juvenil e adulta, infecção com DST’s, gravidez na adolescência e aborto.

Deus é um mal desnecessário…

26 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Mais casos de pedofilia

O governo irlandês investigou mais casos de pedofilia no seio da Igreja católica, agora na diocese de Ferns em County Wexford. De acordo com o relatório de 271 páginas foram registadas mais de 100 queixas de abusos sexuais alegadamente cometidos por 21 padres da diocese entre 1966-2002. As queixas contra 6 deste padres foram provadas em tribunal. O relatório indica também que, no mui católico país, as investigações da polícia foram inadequadas, ou seja muito provavelmente os restantes 15 padres não foram condenados porque as acusações não foram devidamente investigadas.

O relatório é muito crítico especialmente do bispo de Ferns no período entre 1960 e 1980, Donal Herlihy, que considerava os casos de pedofilia na sua diocese como nada mais que um «problema moral». Ou seja, as crianças abusadas constituíam apenas um pormenor irrelevante, o problema grave era a imoralidade de um padre que não respeitava o voto de celibato e incorria em pecado «carnal». Com um total desrespeito pelas vítimas, os padres acusados de abusar sexualmente de crianças eram simplesmente transferidos para outra paróquia ou outra diocese por um tempo mas mais tarde regressavam ao seu «rebanho» inicial.

Como diz o Filipe no Oeste Bravio, referindo-se à análise de John Stewart sobre a aparente contradição de a ICAR por um lado defender os padres pedófilos e por outro estar lançada numa cruzada homofóbica em que acusa «os homens-sexuais de andarem a destruir a civilização ocidental»: para a Igreja Católica «a homossexualidade é uma doença incurável que não pode ser tolerada por nenhum bom cristão. A pedofilia é um problema conjuntural que se resolve mudando o padre de freguesia.»

26 de Outubro, 2005 Carlos Esperança

B16 – regedor do Vaticano

O cardeal Joseph Ratzinger foi várias décadas Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé – ex-santo Ofício -, espécie de Ministério Romano para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício. O mérito valeu-lhe a prorrogação do prazo de validade canónica por JP2, o Papa que dirigiu a ICAR até algumas horas após a morte.

O Opus Dei fez do cardeal inquisidor o Papa Bento 16.

B16 foi autor do rol dos pecados mortais e veniais e seu diagnóstico diferencial. A cópula é pecado mortal para solteiros mas pode tornar-se virtude em casais abençoados pelo sacramento do matrimónio se o objectivo único for a prossecução da espécie.

B16 elaborou o código de conduta eleitoral, para políticos católicos, em questões como o aborto, a eutanásia e outras, que o demo subtilmente tem trazido à colação e só lhe falta mandar actualizar o Índex dos livros proibidos, inalterável desde 1961.

B16 é o guardião da moral e dos bons costumes, avençado do divino, que não desiste de encaminhar almas para o redil da ICAR.

Ele não é apenas o representante de um cadáver com dois mil anos, é o responsável pelos negócios feitos à sombra da cruz, o estratego da divulgação da hóstia, o autor dos certificados de garantia dos milagres e o mais credenciado especialista para transformar a água vulgar em benta.

Do bairro de 44 hectares, que é o seu habitat, dirige um exército imenso de beatos, padres, frades, bispos e freiras, disposto a obedecer-lhe, capaz de dar e tirar a vida para lhe agradar.

Do seu covil – o Vaticano -, influencia os países católicos e traça planos para conquistar o mundo. O seu Deus é o poder e, a sua obsessão, o proselitismo.

25 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Cultura de morte nas Filipinas

Construída em finais do século XVI pelos espanhóis, a Igreja de Quiapo é um dos símbolos mais proeminentes do poder da Igreja Católica nas Filipinas. Poder que se manteve praticamente intocado até hoje, fazendo das Filipinas um dos últimos redutos da teocracia católica. Assim, nas Filipinas são seguidas (in)escrupulosamente as determinações da «santa» Igreja: os execrados métodos contraceptivos «artificiais» são anátema; a defesa de óvulos e espermatozóides absoluta em território tão dominado pela ICAR.

Na Igreja de Quiapo, situada no centro de Manila, todos os dias se podem encontrar centenas de filipinos que rezam a uma suposta milagrosa imagem de Jesus carregando a cruz. Provavelmente pedindo um milagre que os tire da miséria que caracteriza a vida da esmagadora maioria dos habitantes do país, um dos mais corruptos e com uma das maiores taxas de natalidade do mundo. Milagre que nunca acontecerá e os pobres, com proles numerosas que simplesmente não conseguem sustentar, continuarão miseráveis e ignorantes, dependentes da «boa-vontade» e «boas acções» que a Igreja, com dinheiro alheio, magnanimamente distribui, sem qualquer hipótese sequer de aprenderem a controlar a sua fertilidade. E a «santa» Igreja, que actua activamente na política do país, influenciando e determinando não só resultados eleitorais mas destituições de presidentes que não se ajoelharam convenientemente face à Igreja, já fez saber que negará comunhão a qualquer político, e dados os antecedentes fará certamente campanha contra ele, que tente promover políticas de controle de natalidade.

Mas centenas de mulheres filipinas dirigem-se à Igreja de Quiapo em busca de outro tipo de milagre, um milagre muito mais prosaico e muito mais eficiente a resolver os problemas causados pela miséria que assolam a população: uma forma de terminar uma gravidez indesejada.

Os principais pontos de venda de produtos abortivos nas Filipinas situam-se nas imediações de igrejas e a de Quiapo não é excepção. Os locais habituais de venda destes produtos situam-se a poucos metros do Monumento às crianças não nascidas, uma representação de um feto fora do útero, querubins, as mãos estigmatizadas do mítico fundador do cristianismo e uma mãe a chorar. Estátua inaugurada em 1979, ano dedicado às crianças não nascidas pela delegação local da ICAR e ano em que o Cardeal apropriadamente chamado Sin (pecado) considerou os famigerados contraceptivos os principais culpados (?!) da elevada taxa de aborto que já nessa altura se sentia no país e que, de acordo com o piedoso prelado, introduziram uma cultura de morte nas Filipinas.

«Poder-se-ia dizer que nós fornecemos milagres instântaneos às mulheres» afirmou uma das muitas vendedoras que desde há anos vendem ervas e determinados produtos abortivos em Quiapo. Assim, e ironicamente, a Igreja de Quiapo tornou-se sinónimo de aborto, um anátema punido automaticamente com excomunhão, como lembrou o porta voz da Igreja Católica local, Pedro Quitorio, em relação à famigerada pílula RU 486.

No entanto as ameaças de condenação eterna não parecem demover as mulheres filipinas, sem acesso a contraceptivos, cuja distribuição pública foi proíbida pelos bons ofícios da Igreja, com mais filhos que os que podem alimentar e cada vez mais mulheres recorrem ao aborto clandestino. E cada vez mais mulheres morrem devido às sub-humanas condições em que estes abortos são realizados. Em 2002 estimava-se em 400 000 o número de mulheres que recorreram a abortos de vão de escada e cerca de 100 000 necessitaram ser hospitalizadas na sequência de um aborto. Actualmente estima-se em 750 000 o número de abortos anuais e as complicações causadas por abortos deficientemente realizados são a 4ª causa de morte das mulheres filipinas!

Apesar do auxílio precioso de organizações internacionais, muitas mulheres não conseguem ajuda num pós-aborto problemático já que os mui católicos médicos filipinos se recusam a tratar estas pecadoras mulheres, muitas esvaindo-se em sangue. Alguns, mais «caridosos», efectuam a sangue-frio os dolorosos procedimentos necessários, dilatação e curetagem, um «apropriado» e cristão castigo do abominável pecado que cometeram.

Infelizmente, como se lamenta o Dr. Diego Danila que supervisiona este flagelo do aborto clandestino e as mortes maternais para o Departamento de Saúde filipino, todas as propostas de introdução de políticas de planeamento familiar têm sido vigorosamente boicotadas pela poderosa Igreja Católica! Que recentemente, via um grupo católico oximoronicamente chamado pró-vida, propôs uma lei que pretende proibir a venda da pílula e de dispositivos intra-uterinos nas Filipinas. Ou seja, não foram os contraceptivos mas a «santa» Igreja que de facto propiciou e continuará a propiciar uma política e uma cultura de morte para as mulheres filipinas com a sua posição inflexível, a do Vaticano, contra qualquer tipo de contraceptivos.

24 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Editor preso por blasfémia

O editor de uma revista afegã feminina, Haqooq-i-Zan (direitos da mulher), foi condenado a dois anos de prisão por um crime de blasfémia, neste caso por publicar artigos considerados anti-Islão. De facto, está em vigor uma lei da imprensa no Afeganistão, assinada pelo presidente Hamid Karzai em Março de 2004, que proíbe conteúdos considerados insultuosos ao Islão. Quando a lei foi assinada o governo afegão afirmou aos jornalistas que estes só poderiam ser detidos ao abrigo desta lei com a aprovação de uma comissão de 17 membros, que supostamente deveriam incluir representantes governamentais e jornalistas.

Mas no sábado apenas o tribunal principal de Cabul condenou Ali Mohaqiq Nasab por blasfémia e não houve qualquer comissão a apreciar o caso excepto o conselho dos clérigos islâmicos. Na realidade e nas palavras do juíz presidente Ansarullah Malawizada, Nasab foi encarcerado porque «O Conselho dos Ulamas enviou-nos uma carta dizendo que ele devia ser punido e por isso foi condenado a dois anos de prisão».

Ali Mohaqiq Nasab, um escolar islâmico progressista, foi preso em 2 de Outubro em Cabul, depois de clérigos locais terem considerado anti-islâmicos e um insulto ao Islão dois dos artigos publicados na revista. Os blasfemos, anti-islâmicos e insultuosos artigos que tanto indignaram os piedosos clérigos islâmicos questionavam o castigo atribuído a mulheres adúlteras, 100 chicotadas, e a legitimidade do apedrejamento até à morte de apóstatas…

23 de Outubro, 2005 Carlos Esperança

A burla das religiões

Quem pode levar a sério as religiões do livro? Moisés, Jesus ou Maomé não suscitaram tanto entusiasmo como as actuais estrelas pop, o Papa JP2 ou Fidel de Castro. Nenhum foi tão amado como o sanguinário Ayatollah Khomeini ou o demente Kim Il Sung II. No entanto, têm seitas com milhões de devotos que se reclamam da sua inspiração.

Figo tem mais admiradores do que Jesus teve. Cristiano Ronaldo, se não for afectado por escândalos sexuais, tem um futuro mais promissor do que se augurava a JC antes de Constantino (o 13.º apóstolo) ter entrado no negócio na primeira metade do séc. IV e mandado seleccionar a Eusébio de Cesareia evangelhos coerentes a partir de 27 versões. O Novo Testamento é menor que os Evangelhos apócrifos. Bin Laden tem mais admiradores do que Maomé teve em vida.

Os livros ditos sagrados são pouco sérios, violentos e baseados na tradição oral. A Tora foi escrita em data muito posterior à que a tradição lhe atribui. Os evangelistas nunca viram Jesus, profissional da pregação e dos milagres – uma ocupação alternativa.

O Corão foi escrito um quarto de século após a morte de Maomé e Marwan, governador de Medina, «encarregou-se de recolher, primeiro, e destruir e queimar, depois, várias versões, a fim de deixar apenas uma e evitar que a confrontação histórica revelasse a falsificação humana»[CE1] .

O mundo é muito mais antigo do que Deus julgava e a história da humanidade nada tem a ver com a sua alegada semana de trabalho. A reprodução humana nunca foi repetível pelo método divino e é bem mais eficaz e agradável do que Deus gosta.

A superstição, ignorância e medo estão na base das religiões monoteístas. A morte é a pulsão que alimenta a fé e os padres os charlatães que a promovem.

Não pode ser levado a sério quem garante que sinais cabalísticos fazem da hóstia «verdadeiramente, realmente, substancialmente» o corpo de Cristo e do vinho o sangue. Apesar do desejo cristão de que a ciência fosse abolida, qualquer laboratório confirma que, antes e depois da transubstanciação, as propriedades físicas e químicas do pão e do vinho permanecem inalteradas.

A ICAR só acertou no futuro ao desprezar o Espírito Santo. Evitou complicações com as autoridades sanitárias na sequência da actual gripe das aves. Nem o Concílio que entronizou B16 o deixou entrar. O Opus Dei dá mais luz, tem mais poder e não é fácil que a gripe das aves dizime tal fauna.

[CE1] Traité d’athéologie, Michel Onfray – Ed. Grasset 2005

23 de Outubro, 2005 Mariana de Oliveira

Aborto e Direito Penal

A questão que actualmente se coloca no aborto é uma questão jurídica e deve ser tratada como tal.

Para começar, há que esclarecer a função do Direito Penal num Estado de Direito Democrático. O Direito Penal não é, nem deve ser, um direito penal de prevenção de riscos especiais e longínquos e de promoção de finalidades específicas da política estadual. Ele é, isso sim, um direito de tutela de bens jurídicos, ou seja, de preservação das condições indispensáveis da livre realização, dentro do possível, da personalidade de cada indivíduo no seio da comunidade.

Isto conduz à questão da legitimação do poder punitivo do Estado. Tal poder tem fonte na exigência de que o Estado só deve retirar a cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensáveis ao bom funcionamento da comunidade. A isto conduz igualmente o carácter pluralista e laico do Estado de Direito, que o vincule a que só recorra aos seus meios punitivos próprios para tutela de bens de relevante importância da pessoa e da sociedade e jamais para instauração e reforço de ordens axiológicas transcendentes de carácter religioso, político, moral ou cultural. O Direito Penal é, assim, um direito de «ultima ratio».

Quanto ao crime de aborto em especial, o bem jurídico que está em causa não é a vida humana, mas sim a vida intra-uterina. Actualmente, entre nós, vigora o princípio da punibilidade do crime de aborto e só nos casos previstos no art. 142º do Código Penal é admitida a IVG (causas de exclusão da culpa). Assim, nestes casos, a conduta torna-se lícita. Há aqui um conflito de valores e é esta a estrutura base comum a todas as causas de justificação e só considerando tais condutas como licitas trará coerência à exigência da intervenção de um médico e ao apoio por parte do Estado.

O princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana tem aqui refracções e há quem adira a uma concepção absolutizadora da vida humana, defendendo também uma unidade entre vida autónoma e vida intra-uterina, não existindo aqui qualquer espaço para a permissão da IVG. No entanto, o Direito Penal não é compatível com aquela santificação da vida (neste caso, seria inadmissível a legítima defesa e o estado de necessidade) e é notório que o tratamento da vida intra-uterina é diferente do da vida autónoma. Na verdade, os crimes que tutelam aqueles dois bens jurídicos encontram-se em capítulos diferentes, têm diferentes epígrafes, diferentes molduras penais, a tentativa não é punível nos crimes contra a vida intra-uterina, a negligência não é punida e não há agravamento pelo resultado – isto de um ponto de vista penal. De um ponto de vista constitucional, os Direitos Liberdades e Garantias não valem directamente e em pleno para a vida intra-uterina, há aqui uma autonomização de dois bens jurídicos.

Ainda dentro de um ponto de vista constitucional, relativamente à hipótese de um imperativo de criminalização constante na Constituição da República por via da defesa da vida, há que notar que o legislador constitucional não apontou expressamente a necessidade de intervenção penal neste assunto particular. Desta forma, onde não existam tais injunções expressas, não é legítimo deduzir sem mais a exigência de criminalização dos comportamentos violadores de tal direito fundamental. E isto porque não deve ser ultrapassado o princípio da necessidade.

A proposta apresentada pelo doutor Figueiredo Dias, o pai do Código Penal, consiste num modelo misto das indicações e prazos mais liberalizante. Até às 10 ou 12 semanas (12 semanas porque o embrião passa a feto), a gravidez pode ser livremente interrompida. Até às 16 semanas, poderia haver interrupção com indicação terapêutica em sentido amplo ou criminológico. Até às 24 semanas, o aborto seria admitido por indicação fetopática em sentido estrito. Depois das 24 semanas, se o feto fosse inviável (indicação fetopática em sentido amplo) ou houvesse necessidade de remover um perigo de morte ou lesão grave e irreversível no corpo ou saúde da mulher grávida. Neste modelo, seria supérflua uma indicação económico-social. Seria um sistema honesto face à realidade actual: seria mais honesto para a grávida, garantira o nascimento de um maior número de nascituros e que estes vivessem a vida mais dignamente possível. É que aqui, a mãe teria mais tempo para ponderar e acabaria por ser vencida pelas contra-motivações.

Também não é possível falar no interesse do nascituro e do da grávida como se fossem realidades distintas. Os interesses do nascituro só podem ser satisfeitos no interesse e por intermédio da grávida (há uma dualidade na unidade: seres diferentes, mas um suporta o outro). Durante algum tempo, deve predominar a unidade da grávida e a decisão deve caber a ela. Depois, a dualidade predomina e só em casos contados deve o interesse do nascituro ser sacrificado.

Para além disso, deveria haver um sistema organizado de aconselhamento da grávida no serviço público

O doutor Figueiredo Dias também observa que a punibilidade da IVG nas primeiras quatro semanas é algo meramente simbólico: manter a punibilidade naquele período é algo de concretização impossível, totalmente ineficaz, desnecessário do ponto de vista do bem jurídico e talvez inconstitucional (art. 18º/2).

É óbvio que a criminalização do aborto não está a resultar e que há um grande número de abortos clandestinos que, as mais das vezes, acabam com a morte da mulher. Assim, o direito penal não está a cumprir a sua função e a existência de pena não está a servir como prevenção especial de socialização nem como prevenção geral positiva. Desta forma, como a criminalização é inconsequente, ela deveria deixar de vigorar nos termos actuais e o Estado deveria encontrar outras formas para evitar o recurso à IVG.

Como conclusão, creio que devemos deixar a questão do aborto para quem deve decidir: a mulher e, se existir, o pai. O Estado não tem legitimidade para obrigar uma mulher a dar à luz contra a sua vontade, independentemente das circunstâncias em que houve concepção e de todas as excepções consagradas no Código Penal.

23 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Mais dilemas para os católicos

Mais dilemas morais, impossíveis de resolver através do sofismático «duplo efeito», esperam os católicos devotos. De facto a FDA, o organismo regulador dos medicamentos e práticas médicas nos Estados Unidos, aprovou na quinta-feira o primeiro transplante de células estaminais fetais em cérebros humanos, uma técnica que a conhecer sucesso permitirá num futuro próximo o tratamento de muitas doenças neuronais, genéticas e degenerativas.

Os pacientes a serem transplantados são crianças que sofrem de uma doença genética rara e fatal, denominada doença de Batten, que torna as infortunadas vítimas cegas, sem fala e paralisadas antes de as matar, na sua variante mais comum antes da pré-adolescência.

Os médicos do Centro Médico da Universidade de Stanford, Califórnia, implantarão os cérebros das de outra forma condenadas crianças com células estaminais neuronais, imaturas e saudáveis, retiradas de fetos abortados. Os médicos esperam que estas células estaminais prossigam o seu desenvolvimento nos cérebros hospedeiros produzindo o enzima impossível de transcrever (fabricar) dos genes defeituosos. Enzima que é necessário para processar o «lixo» produzido pelas células cerebrais, que sem tratamento se acumula e vai matando os neurónios da criança, diminuindo-lhe as funções biológicas até à morte. Não há qualquer outro tipo de tratamento para esta doença!

Fico na dúvida se o novo Papa, que já declarou que uma das prioridades do seu papado será exactamente a bioética, que prepara um novo documento sobre o tema, que debitou uma profusão de documentos, entrevistas e declarações sobre o assunto, irá instruir os fiéis da Igreja de Roma para deixarem morrer os seus filhos e não os sujeitarem a esta pecaminosa e imoral interferência no desígnio divino.

Aliás, existe um documento oficial do Vaticano dizendo explicita e inequivocamente que quaisquer tratamentos baseados em células estaminais embrionárias são absolutamente ilícitos. Parecer-me-ia complicado aos teólogos do Vaticano produzir um sofisma que os torne lícitos no caso de células estaminais fetais!

Mas aparentemente só em relação às mulheres «Não é lícito, mesmo pelas razões mais graves, fazer o mal para que se siga o bem, isto é, fazer ao objecto de um acto positivo da vontade algo que é intrinsecamente imoral, e como tal indigno da pessoa humana, mesmo quando a intenção é a salvaguarda ou promoção do bem estar individual, familiar ou social». E talvez como no caso das vacinas preparadas a partir de fetos abortados, o Vaticano consiga produzir um documento tortuoso permitindo práticas «imorais». De facto, embora ordenando os católicos a lutarem contra as companhias que produzem imoralmente tais vacinas, especialmente a vacina contra a rubéola para que não há alternativas «morais», o Vaticano permite a vacinação «imoral» de crianças católicas através de outro sofisma rebuscado.

Sofisma que afirma que a obrigação moral de evitar colaboração material passiva com um «crime»(ser vacinado com uma vacina ilícita) não é obrigatória se existir um inconveniente grave. Acrescentando que este é um caso de razão proporcional, uma extrema ratio, justificável num contexto de «coerção moral da consciência dos pais que são forçados a agir contra a sua consciência ou então pôr em risco a saúde dos seus filhos e de toda a população. Esta é uma escolha alternativa injusta, que deve ser eliminada tão cedo quanto possível».

Os desenvolvimentos científicos verificados no século passado tornaram impossíveis de aceitar pelos crentes posições como a do Papa Leão XII que durante uma epidemia de varíola em 1829, decretou que «aquele que permitir ser vacinado deixa de ser um filho de Deus» já que «A varíola é um julgamento de Deus e a vacinação é um desafio ao Céu» argumentando que a vacinação era uma interferência inadmissível na vontade divina.