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15 de Dezembro, 2005 Mariana de Oliveira

Acção de rua

O senhor bispo do Algarve, Manuel Neto Quintas, visitou a Escola Básica 2+3 de Monchique – no âmbito de uma visita pastoral que o levou também ao Jardim de Infância e Escola de S. Roque, na vila-sede e à escola do 1.º ciclo da freguesia de Alferce -, onde os alunos de três turmas tiveram a oportunidade de privarem com tal personagem.

O objectivo da visita de Manuel Quintas à escola não é certo. O Diário de Notícias tentou averiguá-lo, mas a vice-presidente do conselho executivo da escola escudou-se num poderoso argumento: a questão é «descabida», limitando-se a afirmar que todos os encarregados de educação foram informados da visita do bispo.

Apesar de o artº 9º, nº 1, al. a) da Lei da Liberdade Religiosa estabelecer expressamente que ninguém pode «ser obrigado a professar uma crença religiosa, a praticar ou a assistir a actos de culto, a receber assistência religiosa ou propaganda em matéria religiosa», o bispo do Algarve acha que é necessário «dar uma palavra de estímulo aos professores, em relação à sua missão, que não é fácil, e desmistificar perante os alunos a figura do bispo como alguém distante, inacessível». Notem: «aos professores» (numa conveniente generalização) e não… aos professores de religião e moral.

Por sorte, ainda há alguém minimamente ajuízado. Albino Almeida, o presidente da Confederação das associações de Pais, reagiu a esta visita, lamentando «que não tenha havido da parte do bispo do Algarve o bom senso de evitar fazer da escola um local de disputa religiosa. Com a sua atitude, qualquer fundamentalista ganhou o direito de ir fazer propaganda religiosa às escolas».

Quanto à questão dos crucifixos, Albino Almeida entende que «o Estado se define constitucionalmente como laico e deve haver coerência entre a Constituição escrita e a praticada – e sempre que não houver cabe ao Estado garantir que haja». Portanto, «os símbolos religiosos não fazem sentido das escolas, estão lá a mais».

Relativamente ao argumento da tolerância, o presidente da Confederação das associações de Pais acha que «a prioridade número um em termos de religião deve ser fraternidade e tolerância. E se há uma determinada confissão que se considera em maioria tem obrigações suplementares em relação às minorias. Neste caso, se há intolerância, é da parte dos católicos».

15 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Cada coisa no seu lugar

Os mapas de Portugal, ilhas adjacentes, colónias e o mapa-múndi devem ser retirados das igrejas.

Igual procedimento devem merecer a cadeia do agrimensor, as medidas de capacidade e os sólidos geométricos. Não é justo que uma pirâmide de madeira ocupe a patena ou as medidas de peso viagem no turíbulo por entre o fumo do incenso.

A custódia é para pôr o Senhor e não para mostrar o círculo e a circunferência. Quando se celebra a missa não se deve medir a tonsura do pároco com um compasso, para calcular a área e ensinar o valor de Pi, porque o bico pode ultrapassar o coiro cabeludo.

O altar deve ser aliviado do quadro preto e do giz. O transepto não se destina à ginástica nem as capelas laterais a instalações sanitárias. O confessionário não serve para provas orais. A sacristia não é local de recreio nem sala de reuniões pedagógicas.

É preciso respeitar os locais de culto para que os devotos respeitem as escolas. O facto de excluir o material didáctico das igrejas não significa que se expulse o conhecimento dos templos, apenas se respeita o espaço recreativo dos fiéis e o local de confraternização com o divino.

O Cristo que decora o altar não deve servir para aulas de anatomia nem as cruzes que exornam as paredes ser usadas para ensinar as contas de somar. Deve evitar-se a pia de água benta para ensopar a esponja que apaga o quadro preto ou fazer aí experiências para provar a lei de Arquimedes.

Se respeitarmos as igrejas, como devemos, estou certo de que os crentes saberão respeitar o carácter laico da escola pública.

15 de Dezembro, 2005 jvasco

Já chega de vitimização

Não quero que chegue o dia em que alguém seja perseguido por ser crente em Portugal. Na China isso tem acontecido e foi denunciado pelos autores deste blogue (o Carlos Esperança). Felizmente é delirante pensar que possa acontecer em Portugal (se bem que a atitude de parte da Igreja Católica face à IURD e outras igrejas evangélicas torne o cenário menos absurdo).

A perseguição religiosa é intolerável. Todos os autores deste blogue consideram que a perseguição religiosa é intolerável.

Quando nos batemos pela laicidade e certos crentes agitam os fantasmas da perseguição religiosa e do medo de serem perseguidos por serem cristãos, não tomo isso como um delírio absurdo qualquer. Sinto-me insultado com esse constante receio. Não tenho nada contra alguém por ser crente (de todo!), mas espero dos crentes a atitude recíproca. Quando argumento, por exemplo, sobre a retirada dos crucifixos nas escolas, espero argumentos sobre os crucifixos. Não espero fantasias acerca dos autores deste blogue feitos inquisidores. Nunca tive vocação para isso.

Tenho repetido isto até à exaustão nos comentários. Pelos vistos tem sido insuficiente…

14 de Dezembro, 2005 Mariana de Oliveira

Quem espera desespera

Quando o filho de António Sobral entrou para a escola básica de S. Pedro, em Monchique, este verificou que existiam cruxifixos na sala de aula e pediu a sua retirada. Para além disso, enviou um requerimento com o mesmo pedido à Direcção Regional de Educação do Algarve (DREA), fundamentando-o na Constituição da República e na Lei da Liberdade Religiosa. Só que «os crucifixos continuam lá».

«Aceitaram tirar o crucifixo só de uma sala onde ele tem aulas, mas não das outras”, explica. Mas nunca recebi qualquer resposta do conselho executivo», disse o pai do aluno. O porquê de tal silêncio é de estranhar já que a DREA lhe respondeu, em finais de Outubro, informando-o da remetissão da «matéria em apreço para o órgão de gestão do agrupamento de escolas de Monchique de modo a que aquela entidade possa proceder em conformidade». No entanto, a carta não contém nenhum esclarecimento sobre o que é «agir em conformidade».

Segundo o director da DREA, António Libório, não existe «qualquer orientação ministerial quanto a símbolos religiosos» e «nem há razões para isso, as leis são antigas e claras».

Claras para uns, não tão claras para outros. De facto, Graça Batalim, vice-presidente do conselho executivo do agrupamento a que pertence a escola de S. Pedro, entende que «só estamos a ver a Constituição por um lado». «Penso que a liberdade de uns acaba onde começa a dos outros. Estamos num concelho maioritariamente católico, a maioria dos alunos da escola até anda na catequese… Esse pai quer que se tire o crucifixo e os outros pais querem que permaneçam…». É exactamente por a liberdade de uns acabar quando começa a dos outros é que os símbolos religiosos nas escolas públicas não devem ser afixados. Esta senhora não pensa é no conteúdo negativo do princípio da laicidade – que coexiste em igualdade de circunstâncias com o positivo -, ou seja, os não-religiosos têm o direito de, no espaço público, não serem obrigados a suportar uma pretensa supremacia de uma religião sobre as suas convicções.

Entretanto, enquanto se fizerem interpretações aberrantes e infundadas da Constituição e da lei, continuaremos a ver crucifixos nas nossas escolas públicas sempre lembrando aos mais incautos que há uma religião maioritária que se arroga do direito de dar as cartas.

14 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

A laicidade explicada aos católicos

Na sequência de uma «polémica dos crucifixos» que ficará na história das relações entre o Estado e as igrejas em Portugal, o Diário Ateísta (o blogue de referência para ateus, agnósticos e crentes não clericais) foi descoberto por uma turba de católicos com os quais tenho tentado manter diálogos construtivos – sempre com a minha paciência de ateu que anda desde a escola primária a explicar a católicos e outros que a virtude não depende da crença, e que o Estado não existe para resolver os problemas hipotéticos do «Céu», mas sim os problemas, indubitavelmente reais, da Terra.

Como alguns desses crentes não querem fazer o esforço de confirmar nos arquivos do Diário Ateísta o que afirmo efectivamente, talvez lhes aproveite explicar novamente que defendo a laicidade porque essa é a forma de conciliar a liberdade individual de todos: os que seguem a religião maioritária, os que aderem a uma religião minoritária, e os que não têm religião alguma. Só se o Estado for incompetente em matéria religiosa, se abstiver de se pronunciar sobre religião (quer assumindo símbolos religiosos quer apoiando uma confissão religiosa) é que seremos efectivamente livres de seguir esta ou aquela opção em matéria religiosa. Se assim não for, as confissões religiosas apoiadas pelo Estado terão vantagens indevidas, e a confusão entre espaços estatais – como a escola – e espaços privados – como as igrejas – instalar-se-á.

A distinção entre domínio público e domínio privado parece ser difícil para muitos católicos. E no entanto, é essencial que no domínio público (nos serviços públicos, nomeadamente) não haja qualquer coacção religiosa ou ideológica sobre os cidadãos, e que seja preservado o seu direito à privacidade em matéria de convicção. No domínio privado (e associativo), cada um faz o que quer e como quer, desde que não infrinja os direitos de outrem.

Muitos católicos afirmam, equivocadamente, que assim se interdita a expressão religiosa no «espaço público». No entanto, a laicidade é uma exigência de neutralidade do espaço estatal. As ruas, por exemplo, são um espaço público em que a manifestação de uma religião deve ser livre – desde que reste espaço para outras manifestações do foro privado (como as marchas do «orgulho guei») e para irmos trabalhar, às compras ou passear.

Outro equívoco consiste em confundir laicismo de Estado e ateísmo de Estado. Porém, tirar os crucifixos das escolas públicas, ao contrário do que dizem alguns católicos bastante disparatados, não é impor o ateísmo de Estado: é aprofundar a laicidade escolar. Impor o ateísmo de Estado seria fechar coercivamente as igrejas, proibir a prática do culto mesmo que em privado e colocar um cartaz em cada sala de aula com os dizeres «Deus não existe». Eu não defendo isso (e já agora, não conheço ninguém que o defenda).

A laicidade, tal como a entendo, inclui em si limites que não podem ser ultrapassados. Por exemplo, não se pode obrigar um cidadão a praticar ou não praticar um dado acto religioso. Embora, evidentemente, a liberdade religiosa não possa justificar que violações aos direitos humanos (como mutilações sexuais) não sejam consideradas crime.

Finalmente, a laicidade não é uma opção filosófica entre várias. É um tipo de regime. E não pode ser considerada uma ideologia, tal como a democracia – uma forma de governo – também não é considerada uma ideologia.

(A quem quiser aprofundar a noção de laicidade, sugiro a leitura de «Dieu et Marianne» ou «Qu´est-ce que la laïcité» ou qualquer outro livro de Henri Peña-Ruiz.)

14 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

A procissão do Senhor dos Passos

À frente os homens, mulheres atrás, como manda a tradição e os bons costumes, filas de dois que o sacristão alinhava com a vara e admoestava com voz sussurrada, a procissão fazia o seu percurso anual.

As crianças seguravam as asas que o uso e as colisões ameaçavam. As mães ralhavam e ameaçavam com tabefes os anjinhos que se lembravam de pedir xixi. As túnicas varriam o chão que o último rebanho deixara pejado de caganitas.

Sobre uma padiola, alombada por quatro mordomos, baloiçava dentro da camisa roxa um Senhor dos Passos de ar sofrido, com vontade de dar um piparote na coroa de espinhos, pôr a cruz de lado e mandar calar a banda.

Sob o pálio viajava ufano o padre, erguendo a custódia, com alguns acólitos, enquanto as varas eram empunhadas por validos impantes de glória e vazios de siso, convictos de que a bajulação lhes facilitava o caminho do Céu.

A banda de música acertava o passo e desafinava nos bemóis para recordar à efígie que no Paraíso o duplo ouvia música e assistia ao fogo de artifício. O pirotécnico deitava os foguetes e atroava os ares enquanto as beatas suspiravam com medo das canas e os créus deitavam contas à vida.

Os cânticos religiosos azucrinavam os ouvidos, um negociante acabava por comprar umas ovelhas e um pobre vendia o porco. O Cristo entrava na igreja ao som de ave-marias e era atirado para um canto da sacristia onde o pó e a humidade lhe fariam companhia. No ano seguinte repetia-se o número.

13 de Dezembro, 2005 fburnay

Momento Zen de Segunda-Feira (III)

Como se não chegasse já a trapalhada, JCN prossegue dizendo que «não foi apenas a Física a revelar-se assustadora». E se eu não sabia que a Física era assustadora, fiquei também a saber que o Livro Vermelho de Mao é um produto do conhecimento científico! O despropósito faria corar o leitor que desconhecesse a tradição semanal de JCN. É que o Partido Comunista Chinês fez «uma avaliação lúcida da situação international e interna com base na ciência do marxismo-leninismo», como se lê num dos capítulos do livro de Mao.

Aqui JCN dá um valente tiro no pé – primeiro o marxismo-leninismo não é uma ciência; segundo, se era esta a “Ciência” a que se referia Schumpeter, então toda a anterior análise não só confirma a tal apropriação de linguagem de que falei como mostra que o contexto é completamente alheio ao de JCN. Mas o livre-debitador ou não repara nisso ou não quer reparar. O marxismo-leninismo e a teoria de superioridade racial nazi arrasaram ainda mais do que a bomba atómica, diz-nos JCN, certamente convencido que essas duas “teorias” são produtos da Ciência.

Não se tendo cansado de se contradizer, JCN continua, pondo desta vez em cena a mui famosa e pós-modernista «perda de objectividade da própria Ciência». Sim, porque a Ciência foi eleita a crença, uma forma de fé. E se o foi, de facto, por quem não a compreende não o foi certamente por culpa da própria Ciência. Depois da “pulverização” do conhecimento anterior chega o “relativismo” do debate científico – onde todos discutem sem que ninguém chegue a conclusão nenhuma. Isso é próprio dos meios pseudo-intelectuais ou movidos por interesses políticos, onde os sofismas valem mais que os factos. Mais uma vez, a apropriação indevida do calão tecno-científico por todos os que se querem fazer ouvir mancha a honra da Ciência, que nada tem a ver com isso! Quem paga é a reputação de cientistas sérios, que produzem Ciência a sério, longe das charlatanices de meia tigela dos que se pretendem sérios e rigorosos…

E JCN atira para o campo das discussões infrutíferas uma data de questões que o atormentam certamente: a natureza da homossexualidade, a origem da vida, etc., misturadas com questões de ordem sociológica como a frivolidade das dietas ou a estabilidade matrimonial, dizendo que está-se ainda mais confuso hoje do que no passado… Há 100 anos não se conheciam sequer as hormonas sexuais! O clítoris era alvo de fabulações psicológicas! A homossexualidade era desordem psicológica grave! Obviamente que na completa ignorância não há confusão absolutamente nenhuma – pois se não há conhecimento! Talvez para JCN haja coisas nas quais não se deva mexer – se para a Igreja todas essas questões estão resolvidas há séculos, de que maior prova de estabilidade precisamos?

Para finalizar JCN acusa a demagogia e o discurso pós-modernista. Dois métodos que usou sem descanso ao longo de todo o texto, diga-se! E JCN tem uma tal aversão à Ciência que nos remata com uma expressão da qual nunca me esquecerei:

«Em Oitocentos via-se o laboratório como em Setecentos se tinha visto o oratório. Novecentos descobriu-se num velório.»

Que posso eu concluir? Que para JCN a Ciência é a própria Morte! Nada traz senão destruição e confusão para os povos: bombas, ditaduras, caos! Substitui-se a Religião e veja-se no que deu! O Apocalipse! O relativismo dos valores! Nada a registar nos últimos 100 anos de Ciência senão um cinzento e triste velório condolente!

Aqueles que tentam denegrir a Ciência nunca o fazem sem defender a ignorância. Isto à custa da reputação daqueles que todos os dias trabalham para fazer do nosso mundo um sítio melhor e que acarretam uma injusta fatia da culpa do mau uso do conhecimento que nos dão. Esquecendo por completo todas as vidas que se salvaram graças à Ciência, desde a vacina para a raiva de Pasteur ao transplante de corações, passando pela cura da lepra, pela aspirina, pelos progressos feitos na agricultura, pelas tecnologias que melhoram as condições de trabalho de milhões de pessoas pelo mundo fora e, sobretudo, pela mais valia que é o espírito crítico – imprescindível para a Ciência e para a Humanidade.

João César das Neves devia ter vergonha. Tem medo da Ciência, aversão aos seus progressos e uma grande fé certamente. Mas o que devia ter era vergonha.

13 de Dezembro, 2005 fburnay

Momento Zen de Segunda-Feira (II)

No seguimento das suas elaborações filosóficas JCN cita Schumpeter para descrever o estado da “Ciência”, retirando um excerto de um livro desse autor intitulado “Capitalism, Socialism and Democracy”:

«A junção das ânsias extra-racionais que o retrocesso da religião tinha deixado errantes como cão sem dono, com as tendências racionalistas e materialistas da época, então inelutáveis, que não toleravam nenhum credo que não tivesse conotações científicas ou pseudocientíficas»

Que a Ciência se tenha tornado um estandarte da seriedade e da objectividade para alguns e que preenchesse lacunas ideológicas de outros, é uma coisa. Que a Ciência tenha alguma coisa a ver com isso, é outra! Se o rigor científico entrava na ordem do dia isso acontecia precisamente porque a Ciência era conhecida por ser rigorosa. O mesmo se passa com o advento do “magnetismo” espiritista que mais não é que uma tentativa de tornar científica a crença em entidades sobrenaturais numa altura em que se começava a explicar os fenómenos electromagnéticos. É normal que haja quem se aproprie de termos científicos para tornar os seu discurso mais credível…

E os dividendos tecnológicos da Ciência em geral são tratados por JCN de uma forma absolutamente tétrica! Para além de se referir a bombas atómicas num dos mais famosos lugares-comuns dos males para os quais a Ciência foi utilizada, JCN enumera toda uma lista de tragédias que supostamente nos foram dadas pela Ciência. É ainda difícil para algumas pessoas separar a Ciência e o conhecimento científico dos fins que lhes damos.
Assim JCN fala no napalm e no aquecimento global… O napalm é um cocktail explosivo, uma receita caseira para matar gente, inventada por militares, que nada tem a ver com progresso científico. O aquecimento global é, quando muito, um efeito da indústria e que, mais uma vez, nada tem a ver com conhecimento científico senão com o uso que lhe damos… E assim vai JCN denegrindo o progresso científico, empurrando-o para uma galeria dos horrores da História da Humanidade – no fundo, um terrível pecado do Homem, qual incauto Prometeu brincando com o fogo. Mencionando convenientemente os embriões congelados e a clonagem, esses espectros que teimam em assombrar as opiniões semanais deste autor.

13 de Dezembro, 2005 fburnay

Momento Zen de Segunda-Feira (I)

Para João César das Neves não há almoços grátis. Mas fantasias gratuitas, sem ponta por onde se lhe pegar nem qualquer consideração pelos leitores, há e com fartura.

O opinador do Diário de Notícias presenteou-nos desta vez com um artigo sobre Ciência… Ou melhor, sobre aquilo que acha que a Ciência é, num misto de contradições, absurdidades e tiros nos pés.

Este ano correu alegremente o Ano Internacional da Física. Centenas de pessoas e de cientistas, divulgando a Física, dedicaram-se a relembrar e a dar a conhecer o annus mirabilis de Einstein, 1905, em que este publicou três importantes artigos que iriam mudar a História da Física e da Ciência.

Começando logo por aqui, JCN fala-nos de quatro artigos. São três os principais, sendo cinco no total. JCN chama à publicação de Einstein um «facto espantoso, que revoluciona a forma como vemos a matéria». A matéria? Revoluciona a nossa visão do Universo, certamente, e da matéria em particular. Depois fala de «teorias da relatividade» (ênfase no plural) quando somente a Relatividade Restrita faz parte desse conjunto – a Teoria da Relatividade Geral só estaria completa posteriormente.

Isto mostra a completa ignorância de JCN sobre os artigos de Einstein e suas implicações. Não me passa pela cabeça exigir de JCN um conhecimento detalhado da Física subjacente mas pedia-lhe, no mínimo, algum cuidado na substanciação daquilo que diz. Uma rápida pesquisa na Internet seria suficiente para dissolver estas gralhas… Sugestão: procurar ‘world+year+physics’ no Google. Não é aterradoramente simples? Viva a era da informação…!

O aplicado elucubrador segue descrevendo o estado civilizacional da Humanidade, anterior a Einstein, fascinada com a Ciência e que tão prontamente se desiludiu com a chegada da nova Física e seus derivados tecnológicos. Quanto à pulverização das «certezas evidentes», JCN deve estar a referir-se à vitória das Mecânicas Relativista e Quântica sobre a Mecânica Clássica. A questão que se põe aqui é que a Mecânica Clássica era tida pelos cientistas da altura como poderosa o suficiente para descrever matematicamente o Universo. É certo que se enganaram – mas os corolários clássicos ainda são utilizados correntemente em diversas aplicações da engenharia. A forma como JCN descreve o processo de falsificação do conhecimento é típica de quem não compreende a Ciência, acabando na situação caricata de apontar defeitos onde eles não existem.

De seguida JCN diz-nos que «a era nascida em 1905 veria muitos cientistas, incluindo Einstein, ansiosos por desaprender resultados desse progresso». O que quer JCN dizer com “desaprender”? Se a leitura que pretende fazer é a de que os resultados de alguns proveitos técnicos gerados pelo conhecimento científico, como a bomba nuclear, criaram algum remorso em cientistas como Einstein, então JCN está enganado. Einstein nada teve a ver com a bomba. E por muitas questões que esse tipo de problemas traga à sociedade isso nada tem a ver com desaprender seja o que for. Por muito que todos os cientistas envolvidos no projecto Manhattan se tenham arrependido, o que eles criaram foi conhecimento – a bomba foi criada por militares e posta em uso por políticos.

12 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Crónicas do Cavaleiro da Pérola Redonda

J. C. das Neves brindou-nos hoje com mais uma das suas crónicas inenarráveis. Neste puro delírio tomista, o inefável cavaleiro da Pérola Redonda não defende directamente a sua dama, a Igreja de Roma e seus ditames, mas fá-lo indirectamente com um ataque ao «dragão» que, desde Agostinho de Hipona, ameaça a sua hegemonia e autoridade: o uso da razão, mais concretamente a ciência.

O fazedor de opinião do Diário de Notícias aproveita para o seu ataque inano à ciência o facto de que decorre ainda o ano Internacional da Física. Ano em que se celebra o centenário do Annus Mirabilis de Einstein. Denominado assim porque em 1905, ainda funcionário do gabinete de patentes de Berna, Einstein publica não quatro como o excelso professor indica mas sim cinco artigos memoráveis* que mudaram para sempre a ciência.

E aparentemente o professor estava um pouco baralhado quando debitou a opinação em análise porque não só Einstein não «concebeu em 1905, quase de raiz, a mecânica quântica» como praticamente até à sua morte manteve um conflito permanente com a mecânica quântica, MQ. Conflito cuja expressão mais conhecida é um artigo que escreveu em 1935 com Podolsky e Rosen, onde se propunham demonstrar a grande inconsistência da MQ. O assunto é conhecido, no meio científico, como o Paradoxo EPR (de Einstein, Podolsky, Rosen).

Depois deste pouco auspicioso começo, o «filósofo», ou melhor, «téologo» da ciência tenta incutir no seu leitor (nesta altura perdido de riso se tiver um mínimo de cultura científica) a dúvida sobre a bondade do conhecimento científico. Lançando-se em lucubrações sobre a a vontade de Einstein, que morreu a trabalhar na sua teoria unificada, em «desaprender» ciência, aparentemente por causa da bomba atómica. Lucubrações completamente sem fundamento e teria sido útil ao spin doctor do DN ler qualquer coisinha sobre Einstein antes de se lançar nas suas habituais efabulações.

Nas palavras de Einstein a um historiador «Sugere que em 1905 eu devia ter previsto a possível construção de bombas atómicas. Tal era impossível, dado que a possibilidade da reacção em cadeia dependia da existência de dados empíricos que não podiam ter sido antecipados em 1905… E mesmo que tal conhecimento estivesse disponível, teria sido ridículo tentar esconder uma conclusão particular da teoria da relatividade restrita. Uma vez que a teoria existia, a conclusão existia».

Uma dos mimos com que J. C. das Neves nos obsequia neste indescrítivel artigo é a promoção de um economista keynesiano a «um dos seus (ciência) mais astutos observadores». Nomeadamente um representante de uma ciência não exacta que se socorre de termos e conceitos de uma ciência exacta, a física, para elaborar uma versão «respeitável» da «teoria» dos ciclos que tenta explicar as crises que o mundo capitalista atravessa e conjecturar sobre as várias «forças» actuantes. Na realidade ainda hoje alguma economia pede emprestada respeitabilidade à física, sendo um dos campos da moda actualmente a econofísica, tema de um workshop na Universidade de Évora em 27 de Janeiro próximo. Parecer-me-ia um pouco arriscado propor como um astuto observador da «assustadora» (J.C. das Neves dixit) física alguém que se socorre desta para se impor no seu próprio campo…

Fiquei na dúvida se J.C. das Neves é frequentador do Diário Ateísta porque o seu parágrafo seguinte poderia ser debitado por um qualquer dos crentes que comenta todos os assuntos em apreço com alusões a Pol Pot, Mao ou Stalin. Ou seja, por uma razão qualquer obscura J. C. das Neves promove a ciência o marxismo-leninismo usando-o como mais um papão para denegrir a ciência, essa malvada relativista que ousou destronar as verdades «absolutas» da Santa Madre Igreja, por exemplo a insustentável leveza das almas nos limbos!

Os verdadeiros motivos de J. C. Neves na escrita deste conjunto de inanidades revelam-se quasi no fim da opinação. Num parágrafo em que mais uma vez mistura ciências exactas com ciências sociais (não exactas) o ilustre spin doctor tenta lançar a confusão sobre os temas «fracturantes» sobre que tantas vezes nos mimoseou com as suas pérolas redondas de raciocínio. Nomeadamente o aborto e a homossexualidade. Em que tenta menorizar os argumentos científicos a favor do aborto ou que desmistifiquem os preconceitos homofóbicos da Santa Madre Igreja.

Imediatamente antes do seu final apoteótico (ou apopléctico?), em que carpe ter a ciência no século XIX substituido a religião nas respostas às questões da humanidade e sugere que a ciência é mortal (!?) para o homem, J. C. das Neves tem um lapso de lucidez. Não obstante ter indicado o «culpado» errado, que na realidade é o ressurgimento de fundamentalismos religiosos anacrónicos, a sua análise do problema dos tempos modernos está certa: esta nova fase místico-religiosa traduz-se no crescimento do «desprezo pela atitude racional e avança o misticismo e a magia, prosperam os charlatães e a mixordice intelectual», como são exemplo a super abundância de milagres produzidos pelo anterior Papa ou a recuperação do exorcismo pela Igreja católica. E concordo em absoluto que «Estão em risco séculos de avanços do conhecimento». Mais concretamente todos os séculos que medeiam desde o Renascimento, em que saímos da longa noite obscurantista imposta pela Igreja de Roma, até hoje!

*Os cinco artigos são publicados a um ritmo alucinante. Assim, em Abril Einstein publica um artigo que será igualmente a sua tese de doutoramente sobre a determinação das dimensões de moléculas (e em que prova inequivocamente a existência destas, algo que não era consensual à altura); em Março foi publicado o artigo que lhe valeu o prémio Nobel em que explica o efeito fotoeléctrico; em Maio um artigo sobre movimento browniano; em Junho um artigo intitulado «Electrodinâmica dos corpos em movimento» em que apresenta aquilo que hoje em dia chamamos relatividade restrita e finalmente em Setembro um suplemento ao artigo da relatividade em que pela primeira vez aparece a equação que é talvez o ex-libris de Einstein: E=mc2.