Quando a morte era assistida, os moribundos saudáveis e era o clero a tratar da saúde, já havia a estranha devoção de negar a morte sem sofrimento.
A morte não era a pedido, o sofrimento era obrigatório, e já eram ruidosas e participadas as manifestações de júbilo do clero, nobreza e povo, unidos no delírio da combustão de judeus, bruxas, hereges, apóstatas e blasfemos.
Mais contido o êxtase, mantém-se a coerência.
Há argumentos respeitáveis de um lado e de outro, razões para reflexão e dilemas éticos, e todos conhecemos situações de indescritível sofrimento, dor lancinante e incapacidade física para lhes pôr termo e exercer o direito de decidir, situações que ninguém descreve melhor do que os crentes, “era uma esmola que Nosso Senhor o/a levasse”.
O que surpreende é a aceitação do direito individual de quem não tem condições físicas de o exercer, por quem pensa que a morte é o fim inexorável da vida, única e irrepetível, e a resistência dos que têm a certeza de que há outra vida e acreditam na ressurreição.
Vá lá alguém entender estes paradoxos!
Há quinze anos, num dia de fevereiro de 2005, lia e não acreditava. Voltava a ler. Julgava estar a perceber mal, e relia. Pensava que havia gralha, que o jornalista tivesse cometido um lapso e dissesse o contrário do que queria. Li uma última vez.
Senti comoção e a raiva. Sabia das baixezas de que os homens são capazes. Estive 26 meses na guerra colonial. Mas, talvez, a estupidez não seja o pior dos males. Pior só a estupidez e a crença reunidas.
Paulo, drogado, saído da prisão de Custóias há quatro meses, desempregado, fazia filhos em várias mães no Bairro do Aleixo, bairro de problemas e miséria da cidade do Porto. Uma das filhas chamava-se Vanessa. Tinha cinco anos e a vida para viver. Paulo matou-a à pancada.
A mãe de Vanessa mandou rezar-lhe missa do 7.º dia na igreja de Lordelo do Ouro, no Porto. Foi o mimo que lhe faltou em vida.
Copiei devagar o que li e reli na pg. 90 da “Visão”, desse dia. Domingos Oliveira, padre que celebrou a missa, por Vanessa, criança de cinco anos, morta à pancada pelo pai, disse na homilia: “matar uma criança no seio materno ainda é mais violento do que matar uma menina de 5 anos” e invetivou a sociedade “que favorece o uso de preservativos”.
Havia na demência mística do padre Domingos Oliveira uma tal insensibilidade, um tão grave insulto à memória de uma criança mártir, um desrespeito tão grande pela mãe que encomendou a missa e um tamanho ultraje à vida, que estupefazia e arrepiava.
Esse almocreve de Deus, apóstolo da fé, santa besta fiel ao Papa, padre católico, achava preferível matar uma criança de cinco anos à pancada do que interromper a gravidez de um embrião de cinco semanas.
Queriam que eu esquecesse esse facto cuja data exata não registei? Que esquecesse as Vanessas mortas aos cinco anos por pais violentos e drogados? Que ocultasse o nome dos padres que perpetuam a violência e os preconceitos?
Enquanto os padres se afadigam em missas de ação de graças para que Deus impeça os deputados de matarem velhinhos, celebra-se hoje, em pio silêncio, o 420.º aniversário da cremação em vida de Giordano Bruno. Ao contrário da eutanásia, a morte pelo fogo não era pedida por quem a sofria, e era obrigatória para quem a não pedia.
Era o tempo do 8.º Clemente do Vaticano, homólogo do antipapa com o mesmo número e nome, quando a Santíssima Inquisição, alarmada com a teimosia do herege em renegar a teoria heliocêntrica, a existência de outros mundos e a dúvida sobre a natureza divina de Jesus Cristo, decidiu a sua morte na fogueira purificadora.
Filósofo, matemático e teólogo, defendeu com exemplar coragem e convicção as ideias que tornava absurdos os dogmas, néscios os padres e ignorante a sua Igreja. Que podia esperar um filósofo que considerava infinito e inacabado o Universo cuja perfeição era a maravilha do Deus dos senhores padres inquisidores?
Era ousado, Giordano Bruno, um exemplo de amor à ciência e um caso raro de coragem perante o sadismo da Inquisição. Ao filósofo italiano, escritor e religioso, excomungado por protestantes e católicos, foi-lhe imposto ouvir de joelhos a sentença que o condenou à fogueira na presença de uma multidão ululante. Há algo mais estimulante para a fé do que queimar vivo um livre-pensador? E mais angustiante para os inquisidores do que o atrevimento do réprobo a afirmar perante os santos algozes, “Talvez sintam maior temor ao pronunciar esta sentença do que eu ao ouvi-la”.?
O cosmólogo considerava o Universo infinito e inacabado, como se Deus tivesse criado uma porcaria à espera de remendo, e contrariava os mestres escolásticos, que ensinavam que, se a Terra se movesse, as nuvens ficariam para trás, as folhas mortas voariam sempre para o mesmo lado e a pedra caída do alto de uma torre afastar-se-ia sempre da sua base. Haveria maior herege e heresia maior do que tais afirmações?
O cardeal Belarmino seguiu o processo onde a heresia e a blasfémia eram tão evidentes que a queima do herege foi saudada pelas almas dos bem-aventurados para quem a ignorância e a fé eram condição essencial para a salvação da alma. Acabou canonizado. Só o sofrimento é purificador.
Hoje, 420 anos após o auto-de-fé, permanece de pé a estátua em sua honra, num desafio ao Vaticano de onde numerosos papas, com incontida azia, quiseram derrubá-la.
Na praça onde foi imolado, onde peregrinam devotos da ciência e do livre-pensamento, ergue-se uma estátua em sua honra, na única praça de Roma sem igreja, onde a ciência é venerada em pedra e bronze, materiais mais perenes do que a metafísica.
Ir a Roma sem procurar a estátua de Giordano Bruno, é como ir a Paris e ignorar a Torre Eiffel.
Por
Onofre Varela
A Assembleia da República irá discutir, mais uma vez, o problema da despenalização da prática da eutanásia, em casos de processo de doença incurável e irreversível, a pedido do doente.
Não será uma decisão fácil por se tratar de apressar o fim da vida de alguém, mesmo sendo a pedido do próprio, já que o sentimento dos familiares também poderá ter peso no processo.
A lei que possa vir a ser aprovada nesse sentido, terá de ter em conta processos desonestos que visam, por exemplo, o recebimento de heranças indevidas num esquema de antecipação. O interesse material que se possa esconder por detrás de uma lei, obriga a que os legisladores tenham em conta toda a “reguilice” tão própria da nossa condição, não só a condição puramente humana, mas também a condição de latino e a de português.
Lembremo-nos de que, a nível mundial, Portugal ocupa a 30ª posição entre 180 países avaliados tendo em conta a corrupção em situações de suborno. Há, como exemplo, uma lista de casos recentes, incluindo nela os paquetes alugados para a Expo, mais os casos da Tecnoforma, da Bragaparques, do Freeport, dos vistos Gold… que atestam a nossa tendência para a vigarice.
No caso da eutanásia, a lei que a aprove terá de levar em linha de conta as indemnizações dos seguros de vida. Quem os tem, os seus beneficiários perdem o direito a eles pelo facto de a morte ter sido provocada? O paciente está obrigado à morte sofrida, recusando o direito à eutanásia, para não perder o seguro de vida?
Estes parecem-me ser os casos mais relevantes da implicação que a lei do direito à morte antecipada e medicamente assistida, terá na vida dos familiares daqueles que querem sair da vida mais cedo, evitando a morte sofrida anunciada pela irreversibilidade da doença.
O resto, principalmente a preocupação da Igreja, é mero folclore que nada conta para a validação da lei. Impor a uma comunidade a vontade de um sector, na convicção de usar um código moral ditado por uma divindade inexistente, é, também, uma “reguilice”!
A eutanásia não é obrigatória!… Só a pratica quem a deseja. Ao contrário da vontade da Igreja que quer impor a sua opinião a toda a sociedade, impedindo a liberdade de consciência de cada um. A consciência da Igreja, guarde-a ela para si própria e para os seus fieis defuntos. Não a imponha a toda a sociedade. A Igreja que olhe para si própria, para o historial que tem dentro do Vaticano, não só no decorrer de toda a sua história recheada de crimes vários, incluindo os de sangue, mas também para casos mais recentes.
Ao que parece (porque foi negada a autópsia) o Papa João Paulo I foi “eutanasiado” contra a sua vontade, pois morreu imediatamente após ter sido escolhido para a cadeira de S. Pedro. Ele teria demonstrado a vontade de fazer muito daquilo que Francisco I está a concretizar, e terá sido assassinado por isso mesmo. Será esta a verdade da morte de João Paulo I? A extrema-Direita sacerdotal está contra Francisco I pelas mesmas razões que levaram à morte de João Paulo I?
Leão Tolstoi, disse: “Deve valorizar-se a opinião dos estúpidos porque são a maioria”. Será por isso que a Igreja quer um referendo?!
(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)
Pode fundir o gelo da Antártida e o dos glaciares, a antecipar a submersão de países; os recursos do Planeta consumirem-se mais cedo em cada ano; os vírus tornarem-se mais mortíferos e frequentes; o apocalipse nuclear acontecer com a demência de governantes estúpidos e amorais, e é o exercício dos direitos individuais que muitos desejam negar, sendo, talvez a vontade do seu Deus.
Pouco importam os milhões de mortos por inanição, à míngua de água e alimentos; as vítimas das teocracias e ditaduras laicas; os mortos dos cataclismos naturais; os países dilacerados pelo racismo; os conflitos étnicos, religiosos e geopolíticos. É o direito de cada um decidir a morte, já que não é ouvido para nascer, que os incomoda. Os crentes, que negam um direito, esquecem que é Deus quem mata, sendo os homens instrumento?
A eutanásia não é decisão que possa ou deva ser tomada de ânimo leve. A posição que defendo, engloba as minhas opções filosóficas e, sobretudo, as minhas lições de vida.
Em 2011, tive uma experiência que é motivo de reflexão e se mantém presente quando abordo a eutanásia, 52 dias em coma induzido, com septicemia provocada por bactéria multirresistente, na sequência de uma colecistectomia laparoscópica. Estive dependente de uma máquina, aliás, de várias, com o prognóstico a piorar em cada dia que passava.
A eutanásia, como o divórcio, a IVG, ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é obrigação, é um direito individual. Cabe ao próprio exercê-lo ou não, e não aos outros impedi-lo. Por isso, os direitos individuais não devem ser referendáveis, tal como, em sentido contrário, a obrigatoriedade do ensino, das normas de higiene ou das vacinas.
Há 13 anos foi despenalizada a IVG e, ao contrário do que previa quem rejubilava com a pena de prisão da mulher que interrompia a gravidez, com riscos e traumas, calam-se agora com a redução drástica dos abortos, desolados com a melhoria da saúde pública da mulher e a sua autodeterminação sexual.
Há entre a lei que legalizou a IVG e a que definirá a eutanásia um paralelismo flagrante. As mesmas pessoas e os mesmos grupos de pressão voltam agora a exigir um referendo, com desprezo pela democracia representativa e pelos direitos individuais.
Os que menos respeitam a liberdade são os que mais querem impor o modo de a adiar e, se possível, de a impedir, para imporem as suas convicções totalitárias.
Quem ande distraído há de julgar que está em causa a eutanásia obrigatória e não o direito individual de a solicitar, com as precauções e ponderação que a lei há de prever.
Arrepia o terror dissimulado na pergunta que os bispos formulariam sobre um tema que exigiria, como resposta, Sim ou Não, para poderem privar todos da eutanásia:
“Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei penal em quaisquer circunstâncias»?
Não condenam a sua religião por manter a pena de morte no catecismo (que só o Papa Francisco condenou) nem a que impede o médico de salvar a vida da criança que os pais condenam à morte, negando-lhe autorização para uma transfusão de sangue.
É destas madraças que saem padres que afirmam «que “pedofilia não mata ninguém”, ao contrário do aborto».
A vida é um direito inalienável, e não a condenação perpétua.
Leva três lustros de defunção a principal protagonista do embuste internacional, com guião e encenação a cargo do cónego Formigão, considerado o 4.º pastorinho. A Irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado, Lúcia para os amigos, íntima da Senhora de Fátima, morreu carregada de anos e de visões a 13 de fevereiro de 2005.
Em 19 de fevereiro de 2006 foi trasladada para a Basílica de Fátima onde foi sepultada junto dos primos, Francisco e Jacinta, já adiantados no processo de santidade graças à precocidade na defunção. Chovia. As bátegas não pararam de fustigar os peregrinos. As novenas dos padres não conseguiram que S. Pedro contrariasse a meteorologia.
Não foi a inutilidade das rezas ou a ausência de Deus que dissuadiu os crentes, alagados de fé e chuva até aos ossos, de estarem presentes na segunda edição do funeral de Lúcia.
Não houve na reprodução das exéquias fúnebres a saudade genuína das prostitutas de S. Salvador da Baía a passearem o cadáver do Quincas Berro D’Água, nas ruas em cujos botequins devorou cachaça com a sofreguidão com que as beatas chupavam hóstias.
A freira, a quem o terrorismo religioso do catecismo induziu alucinações, nunca terá um Jorge Amado que a celebre em «A morte e a morte da Irmã Lúcia, vidente».
O Quincas, quando devorou, de um só trago, água em vez de cachaça, deu tal berro que passou a ser carinhosamente tratado por «Berrinho» e fez-se personagem de romance. Lúcia comungava por hábito e obrigação pia, mantinha olhos vagos e a postura de quem vive morta por dentro envergando como mortalha o hábito.
Quincas é o delicioso personagem que diverte e comove o leitor de «A morte e a morte de Quincas Berro D’Água», marginal que viveu a vida, pecador que amou e foi amado.
Lúcia é o exemplo trágico de criança pobre, fanatizada com orações e amedrontada pelo Inferno, que sonhou virgens nas azinheiras, cambalhotas do Sol no caminho das cabras, profecias de conversão da Rússia e churrascos de almas para absentistas da missa.
A criança adestrada em embustes sobre o Divino foi um cadáver de estimação, acolitado pela força pública, a viajar com padres, bispos, freiras e romeiros, num cenário com quatro missas, orações pias e um futuro promissor de oferendas de gente aflita.
Não foi o final da história de uma encarcerada de Deus, foi o início da caminhada para a santidade, à espera de milagres e oferendas que hão de alimentar funcionários de Deus e manter Fátima como uma das mais lucrativas sucursais do Vaticano.
A fraude não acabou, estreou um novo ciclo. Há15 anos iniciou a carreira da santidade.
A laicidade é uma exigência da liberdade religiosa, condição para que todos possam ter a sua crença, descrença ou anti-crença. Todos somos ateus em relação aos deuses dos outros, e os ateus só o são em relação a mais um.
Numa sociedade democrática todos os crentes devem ver defendido o direito à fé que perfilham e aceitar iguais direitos aos fregueses de outra fé ou de nenhuma. O Estado só pode cumprir cabalmente a função que lhe cabe se for escrupuloso na neutralidade que deve assumir, se ao Estado estiver vedado o direito de exercer qualquer poder religioso e às Igrejas o exercício de qualquer poder político.
A França, tal como Portugal, depois do 25 de Abril, garante a liberdade religiosa como direito constitucional. Quem conhece a história sangrenta das lutas religiosas na Europa, sabe que a paz só foi possível com a separação do Estado e Igrejas e a garantia da neutralidade religiosa dos Estados. A sua longa história de violência religiosa levou a França a adotar o forte compromisso com a manutenção de um setor público totalmente secular.
A lei de 9 de dezembro de 1905, em vigor, que aboliu a Concordata napoleónica e repôs a herança iluminista, determina:
Artigo 1º – A República assegura a liberdade de consciência. Ela garante o livre exercício dos cultos;
Artigo 2º – A República não reconhece nem contrata nem subvenciona qualquer culto.
Em 1905, a neutralidade religiosa imposta contra a vontade da Igreja católica, revelou-se de grande utilidade quando, além dos protestantes, muito minoritários, a concorrência era insignificante.
Hoje, perante religiões hostis ao ethos civilizacional europeu, herança do Renascimento, Reforma e Iluminismo, a Europa só pode preservar o legado democrático da Revolução Francesa e conter o proselitismo belicista de crenças totalitárias que a ameaçam, com as exigências da laicidade, e tratar os desmandos religiosos como casos de polícia.
Não foi por acaso que Emmanuel Macron, a propósito do 5.º aniversário dos atentados contra o Charlie Hebdo, nos tradicionais votos à Imprensa, declarou a partir do Palácio do Eliseu: «É importante que o nosso país não ceda a esta lapidação e à ordem moral, e que continuemos a criticar todas as formas políticas e todas as religiões. Somos um país onde a liberdade de blasfémia existe e queremos continuar a sê-lo». *
Em Portugal o anacrónico delito ‘blasfémia’, de sabor medieval, ainda existe no Código Penal. O bom-senso dos juízes privilegia a liberdade de expressão, mas é tempo de o abolir.
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.