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2 de Abril, 2020 Carlos Esperança

A Bíblia e os terroristas da fé

FREDERICO LOURENÇO, professor da Faculdade de Letras de Coimbra e ex-professor da Faculdade de Letras de Lisboa, distinguido pelo Prémio Pessoa, especialista em Estudos Clássicos,autor da primeira tradução integral da Bíblia a partir do grego, ficcionista, ensaísta, poeta e tradutor da Odisseia e Ilíada, dois textos fundamentais da cultura ocidental trazidos por ele para a língua portuguesa, deixou-nos no Facebook esta lição importante , cuja leitura recomendo vivamente:

Jesus e a teologia da doença

O surto de epidemias e pandemias proporciona sempre um pretexto para os fundamentalistas religiosos explicarem o que está a acontecer como castigo de Deus (li hoje de manhã um texto repugnante com esse teor sobre o coronavírus). «Pecados» vários da humanidade – ou de alguns sectores dela, normalmente minorias marginalizadas – seriam supostamente a «causa» da ira de Deus, que se manifesta sob muitas formas (como a Bíblia conta), desde dilúvios a guerras (a guerra é, na Bíblia, o método preferido de Deus para castigar o Seu povo: assírios e babilónios são instrumentalizados por Deus para castigar o povo judeu pelos seus pecados).

Ao contrário, porém, do que poderá parecer (se atendermos ao que dizem os fanáticos), não há assim tantas passagens na Bíblia que nos digam explicitamente que a doença é castigo de Deus. São basicamente duas:

1. «O Senhor atingir-te-á com tísica, febre, inflamação, delírio, secura, ardência e palidez, que te perseguirão até morreres» (Deuteronómio 28:22)

2. «O Senhor feriu o menino que a mulher de Urias havia dado a David com uma doença grave» (2 Samuel 12:15).

Uma passagem muito curiosa é Isaías 3:17, onde vemos uma gradação no entendimento deste problema nas três versões do Antigo Testamento. Na versão grega da Septuaginta, lemos «O Senho rebaixará as filhas nobres de Sião». Na Vulgata, lemos «o Senhor tornará calva a cabeça das filhas de Sião». Mas no texto hebraico, o que se lê é que «o Senhor ferirá com sarna a cabeça das filhas de Sião».

Claramente, a versão grega procura apagar aqui a ideia da doença como castigo – embora sem apagar a própria noção de castigo. Diz somente que o Senhor «rebaixará» as pecadoras; mas não diz que o método de rebaixamento é a doença (alopécia, na Vulgata; ou sarna, na Bíblia Hebraica).

A passagem do livro de Samuel acima citada («O Senhor feriu o menino que a mulher de Urias havia dado a David com uma doença grave») é, para mim, das mais desagradáveis de toda a Bíblia (livro onde não há falta, como sabemos, de frases desagradáveis). Mas uma das vantagens de, no mundo cristão, o Antigo Testamento estar encadernado juntamente com o Novo é a realidade saborosa de muitas passagens do Novo Testamento contradizerem flagrantemente o Antigo.

No início do Capítulo 9 do Evangelho de João, os discípulos de Jesus (formatados pelo judaísmo em que tinham sido educados) perguntam ao Mestre, a propósito de um homem cego desde a nascença, se a razão da cegueira era o pecado dos pais ou o pecado do próprio cego (bom, atendendo a que o homem nascera cego, os discípulos ainda acharam que ele teria pecado logo à nascença! – ou ainda no ventre da mãe, quem sabe [mas seria anacrónico pensar em pecado original, visto que a teologia cristã ainda não o tinha inventado quando João escreveu o seu evangelho]).

Jesus dá uma resposta lapidar, que é um autêntico sismo teológico: «nem este homem pecou nem os pais dele» (João 9:3).

A continuação da frase de Jesus comporta depois alguns meandros de pensamento, que desaguam na frase famosa «enquanto eu estiver no mundo, eu sou a luz do mundo» (João 9:5).

Mas antes disso, houvera ocasião para uma frase que lemos diferentemente nas diferentes Bíblias; uma frase altamente expressiva e que tem tudo a ver com o momento que atravessamos.

A maioria dos manuscritos do Evangelho de João põe na boca de Jesus a frase «cumpre-ME realizar as obras de Quem me enviou». É assim que lemos na Vulgata: «me oportet operari opera eius qui misit me».

No entanto, no texto grego do Evangelho de João tal como o lemos no papiro mais antigo (e tal como ele se encontra corrigido no Codex Sinaiticus, a mais antiga Bíblia completa que nos chegou) – Jesus diz «cumpre-NOS realizar as obras de Quem me enviou».

Fica a dúvida: Jesus terá dito «cumpre-nos realizar as obras de

Quem me enviou»? Ou «cumpre-me realizar as obras de Quem me enviou?»

A Bíblia favorita dos fundamentalistas protestantes (a King James Bible) afina pelo diapasão da Vulgata católica: «cumpre-me realizar as obras de Quem me enviou». A responsabilidade de fazer o trabalho de Deus está nas mãos de Jesus.

Mas em tempos de pandemia – e sabendo nós, pela boca de Jesus, que ela não se está a propagar para castigar os pecados de ninguém – faz-nos muito mais sentido aquele pronome grego (ἡμᾶς) que tão eloquentememente muda, no papiro mais antigo, o sentido da frase.

O trabalho de Deus está (também) nas nossas mãos. ἡμᾶς δεῖ ἐργάζεσθαι τὰ ἔργα τοῦ πέμψαντός με (hēmās dei ergázesthai tá érga tou pémpsantós me). «Cumpre-NOS realizar as obras de Quem me enviou».

Frederico Lourenço
· 15 de março ·

31 de Março, 2020 Carlos Esperança

OS amigos do Papa Pio XII

Por

ONOFRE VARELA

O Vaticano era uma região da cidade de Roma até se transformar num país independente (a Cidade-Estado do Vaticano). Mussolini, chefe do governo italiano, assinou, com o cardeal Pietro Gasparri, em Fevereiro de 1929, o tratado de Latrão, no qual a Itália reconhece a soberania da Santa Sé sobre o Vaticano declarado Estado soberano e independente. O Papa naquele tempo era Pio XI (1922-1939), a quem coube as honras de presidir ao novo país.

No início da década de 1944 era Papa Pio XII (1939-1958), e Mussolini tinha-se transformado no fascista aliado de Hitler no domínio que o Nazismo queria ter sobre toda a Europa.

A Segunda Guerra Mundial agravava a vida de todos os europeus, o Nazismo alemão de Hitler exterminava judeus em campos de concentração e em fornos crematórios, os japoneses entraram na guerra a favor dos inimigos da Democracia, e as tropas aliadas norte-americanas, inglesas, soviéticas e australianas tentavam travar o avanço do Nazismo, ajudadas em território francês pela Resistência.

Na Península Ibérica, Espanha, com o seu ditador Francisco Franco, aliava-se a Hitler, e em Portugal o ditador Salazar fingia-se oficialmente neutro mas apoiava o nazismo alemão, importando a filosofia da mocidade hitleriana que transformou em Mocidade Portuguesa, e destituiu Aristides de Sousa Mendes de cônsul português em Bordéus, por ter ajudado judeus na fuga ao nazismo libertando-os da morte.

Perante todo este horror que se abateu sobre os povos vitimados pela guerra, cabe aqui recordar que o Papa em exercício naquele tempo, Pio XII, se revelou ser um homem sem vergonha.

No seu discurso de Natal em 1942, condenou claramente o sistema político comunista, mas não condenou Hitler, nem estes seus cúmplices: Mussolini; Pétain [marechal francês, chefe do regime de Vichi, que perseguiu judeus e a Resistência, e que depois da guerra foi preso, julgado e condenado à morte. A pena foi transformada em prisão perpétua]; padre Tiso [ditador eslovaco, perseguiu judeus, ciganos e opositores]; Pavelic [ditador croata, promoveu o genocídio de sérvios, ciganos, judeus e opositores, com a cumplicidade activa do clero croata. Diz-se que os seus crimes chocaram, até, alguns nazis!]; Hideki Tojo [primeiro-ministro japonês. O Japão cometeu muitas atrocidades em territórios ocupados, como estupros, assassinatos em massa, experiências “científicas” horrendas, ocupação da Indochina, de Timor português e das Filipinas].

Todas estas personalidades cometeram crimes contra a Humanidade, mas não mereceram a desaprovação do Papa Pio XII, que apenas condenou as atitudes dos comunistas que, na época, até eram aliados das tropas ocidentais na luta contra o nazismo alemão… mas não eram católicos!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

29 de Março, 2020 Carlos Esperança

O antissemitismo cristão

Surpreende o vigor com que o cristianismo e, em particular, o catolicismo nega quase vinte séculos de antissemitismo militante, hoje menos virulento do que o islâmico.

Martinho Lutero que conhecia a Bíblia tão profundamente quanto a corrupção papal, dizia dos judeus: «são para nós um pesado fardo, a calamidade do nosso ser; são uma praga no meio das nossas terras». (1543)

Quanto à ICAR não é preciso recordar o tribunal do Santo Ofício, basta relembrar as declarações papais ou citar as abundantes e descabeladas manifestações de ódio que o Novo Testamento destila.

Eloquente, chocante e demente foi a atitude do cardeal da Alemanha, Bertram, ao saber da morte do seu idolatrado führer Adolfo Hitler. Já nos primeiros dias de maio de 1945, com a derrota consumada (a rendição foi no dia 8), ordenou que em todas as igrejas da sua arquidiocese fosse rezado um requiem especial, nomeadamente «uma missa solene de requiem, em lembrança do Führer». Entretanto o católico Salazar decretou três dias de luto pelo facínora.

Para alguns católicos e, sobretudo, para ateus, agnósticos e fregueses de outras religiões, é preciso dizer-lhes que, de acordo com a liturgia do requiem, uma missa solene de requiem se destina a que os devotos possam suplicar a Deus, Todo-Poderoso, a admissão no Paraíso do bem-aventurado em lembrança de quem a missa é celebrada.

Os quatro Evangelhos (Marcos, Lucas, Mateus e João) e os Atos dos Apóstolos são uma fonte de ódio antijudaico cristão, tal como o Corão para os muçulmanos. Felizmente, os cristãos, sobretudo os católicos, leem pouco a Bíblia e creem vagamente no conteúdo.

Em períodos de crise, há o risco de se agarrarem ao livro sagrado como os alcoólicos à bebida e, tal como estes, sem discernimento ou força anímica para renunciarem à droga, inibem-se pela habituação e dependência que os escraviza.

O livre-pensamento é uma tentativa séria para promover uma cura de desintoxicação, absolutamente necessária nesta Europa onde o antissemitismo desponta em numerosas manifestações de matriz nazi.

22 de Março, 2020 Carlos Esperança

Como se fabricam crentes

Nos primeiros dias de vida os pais entregam os neófitos ao padre, que lhes mergulha a fronha em água benta, limpando-os do pecado original quando ainda precisam de quem lhes mude a fralda.

Depois, crescem no temor a Deus, que rejubila se comem a sopa e se entristece quando adormecem nas orações.

Aos seis anos de idade, com muitas ave-marias e padre-nossos rezados, para que o Deus cruel e apocalíptico os livre das perpétuas chamas e do azeite fervente do Inferno, onde só há choro e ranger de dentes, as pias catequistas ensinam-lhes os dez mandamentos da Santa Madre Igreja e os do único Deus verdadeiro, privando-os de tempos livres.

Depois do exame de aptidão vem a confissão. Os pecados – ofensas feitas a Deus –, são ditos ao padre, punidos com penitência adequada e perdoados para poderem saborear o corpo de Cristo numa fina rodela de pão ázimo (sem fermento nem sal).

Com a missa semanal e a desobriga pela Páscoa da Ressurreição, como tarifa mínima, seguida de nova rodela mística, os cristãos ficam aptos para novos pecados que serão perdoados de novo e, assim, sucessivamente, vão mantendo viva a fé na vida eterna.

A comunhão solene é um momento alto, com a família a alambazar-se em hidratos de carbono. Por pudor, a ICAR deixou de os vestir de cruzados. A confirmação é imposta por um bispo que exibe o anelão de ametista e o faz oscular pelas crianças, indiferente aos micróbios que passa de boca em boca. O sinal da cruz é desenhado a óleo na testa do cristão pelo dedo do prelado ricamente paramentado e refastelado num cadeirão.

Nesta altura já as crianças de dez anos sabem que os judeus mataram Cristo, que a Santa ICAR está já tão cheia de santos, mártires e bem-aventurados como o metropolitano de Lisboa de passageiros, em horas de ponta.

A xenofobia e o racismo vêm na Antigo Testamento. O dever do cristão é converter os que estão errados (os outros) à verdadeira fé, a que vem de Roma através de breves, bulas e encíclicas. O proselitismo é um dever e quem não quiser salvar-se deve ser obrigado.

Os créus querem impor, como destino, o Paraíso, e os ateus opõem-se à obrigatoriedade.

16 de Março, 2020 Carlos Esperança

A fé é que os salva

Pela primeira vez na minha vida, na semana passada, fui a uma reunião da tão criticada Igreja Universal e partilhei as práticas e orações dos presentes.

De repente, o Pastor se aproximou do lugar onde estava, olhou-me fixamente e apontou-me o dedo.

Piedosamente, ajoelhei-me e ele colocou as suas mãos na minha cabeça e clamou em voz alta: Você vai caminhar!
Eu respondi-lhe baixo: mas não tenho nenhum problema de locomoção.

Ele ignorou minha resposta e quase gritando, voltou a exclamar: irmão, você vai caminhar!

Toda a Assembleia, com as mãos ao alto, começou a chorar: Você vai caminhar!

Mais uma vez, tentei explicar que não tinha nenhum problema com meus membros inferiores, mas foi em vão.
Cada vez mais forte e com mais energia, ele repetiu: Você vai caminhar!!!! , enquanto a Assembleia em transe gritava ainda mais forte: irmão, você vai caminhar!!!!

Optei por me calar e não dizer mais nada.

Quando o acto acabou deixei a Assembleia e, acreditem ou não, o maldito pastor tinha razão:

Tinham-me roubado o carro!!!!

13 de Março, 2020 Carlos Esperança

«Onde estava Deus?»

Por

ONOFRE VARELA

Perante um infortúnio, como a morte de alguém que queremos muito e desejamos eternamente connosco, ou após um cataclismo, seja natural ou motivado por uma guerra que ceifa vidas e destrói, há quem se pergunte: “Onde estava Deus, que permitiu tão nefasto acontecimento? Porque não evitou tal desastre se, afinal, ele tudo sabe e pode?”.

São perguntas lícitas que qualquer crente pode fazer, mas não há respostas para elas. Estas perguntas são formuladas por quem crê, na convicção de a divindade ser real para além dos seus pensamentos. Na verdade Deus não podia estar no local do acidente ou do crime, porque como ideia que é, só se encontra dentro da cabeça de quem nele crê. Fora da cabeça do crente não há Deus em lado algum.

Penso que esta pergunta trágica do crente que se sente frustrado por não ver a intervenção divina naquilo em que, segundo o seu entendimento, devia intervir, aconteceu aos judeus na segunda metade da década de 1940. Por essa altura o pensamento filosófico foi abalado por duas realidades brutais: duas guerras tinham preocupado o mundo, e a segunda delas carregava o peso do holocausto judeu, promovido pela Alemanha Nazi, mais o trágico fim do Japão no teatro de guerra, com o lançamento de duas bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, pelos EUA.

Quando os soldados das tropas aliadas entraram nos campos de concentração nazis, não queriam acreditar no que viam. Seres humanos esqueléticos e pilhas de cadáveres, era o que restava dos prisioneiros judeus.

O general Eisenhower fez questão de ver tudo com os seus próprios olhos e recomendou a quem tivesse máquinas fotográficas que registasse o maior número possível de imagens, pois haveria de surgir um dia em que alguém se ocuparia em negar o que eles testemunhavam.

Passado o natural estupor provocado pelo conhecimento das atrocidades cometidas na guerra, a realidade da condição humana, no contexto político, social e religioso da época, foi alvo de profundas reflexões que tiveram eco na década seguinte, prolongando-se para a de 1960, ultrapassando-a, até.

A religião, como refúgio das almas, não podia, naturalmente, estar ausente dessas reflexões que acabaram por promover mudanças de atitudes. Não era possível explicar o abandono dos mais fracos e desprotegidos, nem afogar a dor das vítimas. E os religiosos mais directamente atingidos pela tragédia da guerra, sentiam legitimidade para perguntar: Onde estava e que fazia Deus, quando os nazis eliminavam o seu povo eleito em câmaras de gás?!

Não era fácil responder às interrogações daqueles que se consideravam burlados no conceito que sempre lhes alimentara a esperança e que tão cruamente os desiludira!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

11 de Março, 2020 Carlos Esperança

“Santuário de Fátima é uma máfia poderosa”

Entrevista ao JN – Padre Mário de Oliveira

January 10, 2020

Dezasseis anos depois de “Fátima nunca mais”, o Padre Mário de Oliveira regressa à temática das aparições com o não menos polémico “Fátima S.A.”. O livro, que resulta de uma longa investigação feita pelo presbítero-jornalista, demonstra, segundo o autor, que “o Santuário de Fátima é uma máfia poderosa”.

Frontal e polémico, como é seu timbre, o popular Padre Mário da Lixa, como também é conhecido, acusa a Igreja de ter cometido em Fátima um “crime lesa-humanidade” ao criar uma “encenação-ostentação”, repleta de “vergonha, mentira e crime”. Em entrevista ao JN, adianta mesmo que as “aparições só têm servido para ludibriar as populações mais desamparadas”.

Jornal de Notícias: Por que diz que “Fátima, S. A.” é antes de mais um livro de humor?

Padre Mário de Oliveira: O terrorismo com que tive de lidar, à medida que mergulhava na chamada Documentação Crítica de Fátima (DCF), quase todos da responsabilidade do Cónego Formigão, é de tal monta, que, para poder prosseguir a minha investigação sem vomitar, tive de os ler na saudável chave de humor. A chave política e também teológica (Deus é Humor, tal como é Amor) mais eficaz que nos faz ver que, afinal, por baixo de toda aquela encenação-ostentação com que Fátima hoje se nos apresenta, a sua Senhora vai nua e deixa ver que tudo aquilo mais não é do que vergonha, mentira e crime.Direitos reservadosJN: O título remete para o livro “Vaticano S.A.”, de Gianluigi Nuzzi. Entre Fátima e o Vaticano, que diferenças estabelece?

Pe. MO: O título impõe-se-me, à medida que me adentro nos malabarismos do clero de Ourém, perfidamente orientados pelo Cónego Formigão, o grande inventor das “aparições” de Fátima, à imagem e semelhança das “aparições” de Lourdes, em França. Com isso, o Papa fez silenciar para sempre os teólogos católicos, o que perfaz um crime de lesa-inteligência e de lesa-humanidade, a juntar a tantos outros cometidos, ao longo dos séculos, pela Cúria Romana. O que move o Cónego Formigão é a restauração da diocese de Leiria e, simultaneamente, a recuperação do poder da Igreja Católica no país, manifestamente diminuído com a implantação da República de 1910. A qual não hesitou, e bem, em nacionalizar a maior parte do seu escandaloso património imobiliário espalhado por todo o país. E a prova do seu êxito é que, 100 anos depois, o Santuário de Fátima é hoje a poderosa máfia que se vê e que conta com a famigerada bênção da máfia-mãe de todas as máfias, a Cúria Romana.

JN: O Papa Francisco propôs-se moralizar as finanças do Vaticano. Tem esperança que suceda o mesmo em Fátima?

Pe. MO: Não duvido dos bons propósitos e das boas intenções de Jorge Bergoglio, mesmo depois que aceitou ser eleito Papa, com o nome de Francisco. O Papa Francisco bem pode correr e saltar, surpreender as populações com comportamentos insólitos, mas tudo isso só serve para entreter os grandes media e desviar as atenções de tudo o que de sinistro a Cúria Romana continua a fazer. Porque não é o Papa que manda na Cúria Romana, é a Cúria Romana que o elege que manda no Papa.

JN: O que mais o surpreendeu na investigação?

Pe. MO: Tudo me surpreendeu. Desde logo, a própria existência da DCF, compilada e autenticada com o aval pretensamente científico da Universidade Católica Portuguesa. Este meu novo livro é todo fruto desta DCF. Aliás, eu próprio não pensava voltar ao assunto Fátima, depois do meu primeiro livro, “Fátima nunca mais”. Quando, porém, me caem diante dos olhos e nas mãos os primeiros volumes da pretensiosamente chamada DCF, eu próprio nem queria crer no que ali nos é dado a ler. As aberrações teológicas são tantas e é tão medonha e criminosa a manipulação, primeiro, das três crianças, e depois, após a morte dos dois irmãos – Jacinta, sete anos, e Francisco, oito anos – da única sobrevivente Lúcia, 10 anos, ao longo de toda a sua vida histórica, por parte do clero de Ourém, que é preciso ler para crer. Salta depressa à vista que, até a imediata restauração da diocese de Leiria e a rápida nomeação do seu primeiro bispo residencial são feitas à medida, para, com elas, impor como dignas de fé, as supostas seis encenações teatrais, de maio a outubro de 1917. Porém, bastou a imprevista intervenção do governador do concelho de Ourém, Artur de Oliveira Santos, o único homem honesto no meio de toda aquela cretinice clerical, decidir levar para sua casa em Ourém, no dia 13 de agosto desse ano, as três crianças, Jacinta, Francisco e Lúcia, para que “a senhora que vinha do céu” faltasse à palavra dada no dia 13 de maio. Nunca, até hoje, o clero de Ourém e a generalidade da hierarquia da Igreja Católica, lhe perdoaram esta mais do que oportuna intromissão no seu teatrinho das “aparições”. E, para que as seis “aparições” iniciadas em maio e terminadas em outubro, sempre no mesmo dia, à mesma hora e no mesmo local, não ficassem reduzidas apenas a cinco, o Cónego Formigão, faz escrever um pequeno relato para memória futura, a dizer que a “aparição” referente a 13 de agosto veio a acontecer no dia 19, numa outra hora e num outro local. Caricato demais para merecer qualquer credibilidade por parte de alguém com o mínimo de bom senso e de honestidade intelectual.

JN: Encontrou algum condicionamento durante essa pesquisa?

Pe. MO: Objetivamente, não. Interiormente, sim. Sou presbítero-jornalista, formado-formatado durante 12 anos pelo seminário do Porto, filho do Concílio de Trento, como todos os demais seminários diocesanos, e trago comigo as marcas degenerativas do fator religioso, que essa formação-formatação impunha, impõe. A luta interior que tive de travar para expulsar da minha mente-consciência todas essas crenças infantilizadoras, foi e continua a ser titânica. Só a minha libertação interior me habilitou a mergulhar em todo o tenebroso labirinto que são os documentos que integram os volumes da DCF, e ver o humilhante e o inumano que tudo aquilo é.

JN: Foi há 16 anos que escreveu “Fátima nunca mais”. Lamenta que o livro não tenha provocado mudanças na gestão do Santuário?

Pe. MO: Obviamente que lamento. Não tanto por mim. Sim, pela instituição Igreja Católica Romana. A sua teimosia em fazer de conta que esse livro não existe só contribui para o acelerado processo da sua descredibilização, fruto da sua cegueira. Nem sequer a Igreja Católica se dá conta de que, com as sucessivas peregrinações a Fátima, como expressão suprasumo da fé católica, está hoje a ser a mais eficiente fábrica de produção de ateísmo e de ateus, mulheres e homens. Para sua vergonha. E para acelerada corrupção da sociedade. Consequentemente, não é de estranhar que esteja a ser lançada fora pelas gerações mais jovens.

JN: Como se explica que, perante as denúncias feitas, os donativos ao Santuário continuem a bater recordes?

Pe. MO: É a velha ‘estória’ da pescadinha de rabo na boca. As populações, milenarmente subjugadas, humilhadas, desamparadas, são criminosamente levadas a pensar-acreditar que, por si próprias, não podem fazer nada e que o alívio para os seus quotidianos de dores só pode vir de fora delas. As populações deixam-se arrastar para aqueles locais e aquelas instituições que lhes são criminosamente apresentados como libertadores. O desastre humano é total. Se repetido, ano após ano, geração após geração, o estado de degradação e desamparo agrava-se e as populações acabam por morrer no seu inferno de dores.

JN: Mesmo perante as provas mais irrefutáveis, julga que a atitude dos crentes face às aparições não se alteraria?

Pe. MO: Enquanto não desaparecerem as causas que produzem multidões e multidões de vítimas, de desempregados, de escravizados, de migrantes-refugiados, de assalariados, de analfabetos políticos, culturais, artísticos, as provas mais irrefutáveis apenas servem para radicalizar ainda mais os fanatismos religiosos, fruto de ancestrais e inconscientes medos que elas trazem nos genes, como outros tantos demónios mudos, que lhes roubam continuadamente a voz e a vez. A própria Ciência, se não é humilde e intrinsecamente cordial, acaba por se tornar perversa. Agride ainda mais as multidões condenadas pelo sistema de poder a terem de viver em labirintos sem saída.

JN: Acredita que, desta vez, foi muito mais longe na desmistificação das aparições?

Pe. MO: É, agora, sobejamente claro que Fátima e a sua senhora não têm nada a ver com Maria, a mãe de Jesus. Que tudo aquilo é negócio, pura idolatria. Se “Fátima, nunca mais” “matou” Fátima, “Fátima S.A.” faz a “autópsia” ao cadáver. Com um pormenor nada despiciendo. Neste meu novo  livro, tudo é devidamente fundamentado na DCF, disponibilizada e publicada pelo próprio Santuário, inclusive, com transcrições de partes significativas desses documentos.

JN: Mesmo para um cético, como é o seu caso, não acha que Fátima desempenha um papel fulcral na sociedade portuguesa?

Pe. MO: Quem o não reconhece? A questão que nos havemos de colocar é o tipo de “papel fulcral na sociedade portuguesa” que Fátima representa. E aqui tenho de dizer, sem que a voz me trema, que no que respeita à Igreja Católica Romana, Fátima é a vergonha das vergonhas. E se a fé católica romana é assim tão rasca, como a dos fatimistas, então, é muito mais digno ser-se agnóstico ou ateu. Já no que respeita ao turismo religioso, propriamente dito, é óbvio que, sem Fátima, as empresas que têm o mau gosto de se lhe dedicarem, sofrerão um rombo sem igual, se Fátima vier a cair em descrédito. Mas, também aqui, é bom sublinhar que se o turismo religioso é tão rasca como o que Fátima proporciona, os turistas só terão a ganhar, se passarem a viajar para o ar puro das montanhas, onde o veneno do mercado ainda não chegou, e para a simplicidade das aldeias do interior. Este tipo de turismo alternativo ao religioso faz muito melhor à saúde e sai muito mais barato. Mas não sou ingénuo. Sei perfeitamente que o mercado financeiro jamais vai por aí, tão pouco está interessado em que as populações vão por aí. De modo algum, quer populações com saúde e bem-estar, alegres e em relação umas com as outras. É por isso que, para as agências de turismo religioso do mercado financeiro, Fátima é o local ideal para manter populações deprimidas, tristes, alienadas, humilhadas, autoflageladas, geração após geração. O que não deixa de constituir um crime de lesa-humanidade que polícia alguma do mundo investiga, tampouco desaconselha. Até estimula e protege.

JN: Sem Fátima, a orfandade ou o desamparo espiritual não seriam ainda maiores?

Pe. MO: Pelo contrário. Tudo em Fátima é altamente deprimente. Orfandade. Desamparo espiritual. Só gente deprimida, órfã, desamparada espiritualmente é capaz de dizer que se sente lá bem. Como o dependente da droga se sente bem em locais fechados onde todos os que os frequentam são outros tantos consumidores compulsivos. Como o dependente do futebol dos milhões, se sente bem, sentado ou de pé, nas bancadas de luxuosas e grandiosas catedrais das respetivas máfias do dito, disfarçadas de clubes de futebol. Fátima é a negação de todos estes valores humanos. Em Fátima, o sofrimento é rei. A depressão é regra. O viver de joelhos é o objetivo último. Uma vergonha, uma degradação humana a céu aberto.

JN: Após este livro sente que pouco mais ficou por dizer sobre Fátima?

Pe. MO: As “aparições” só têm servido para ludibriar as populações mais desamparadas. São erradamente levadas a pensar que a solução para os seus graves e dolorosos problemas se resolvem com peregrinações a pé ou de carro para lá. Fátima não faz parte da fé católica, pelo que nenhum católico deixa de o ser, por não acreditar em Fátima. Vou ainda mais longe e afirmo, também sem que a voz me trema: um bom católico não deve acreditar em Fátima. Pelo que aqueles católicos, elas e eles, que acreditam e correm para Fátima, não passam de católicos medíocres.