O 1.º aniversário do pontificado do papa Francisco é o pretexto para acelerar a máquina de propaganda que, há um ano, ganhou novo fôlego, quando Bento XVI preferiu manter a cabeça e abdicar da tiara, do anel e do alvará pontifícios.
Hoje, um ano depois de lhe ter sido conferido o diploma para criação de cardeais, beatos e santos, a comunicação social portuguesa atesta que os autóctones o querem em Fátima no 1.º centenário das aparições que, em 1917, ajudaram a combater a República e, mais tarde, o comunismo, como se não houvesse portugueses indiferentes à agenda católica e às celebrações litúrgicas.
Francisco era o Papa de que a Igreja de Roma precisava para o transformar numa estrela pop, à semelhança do que havia feito com João Paulo II. Adoram-no, porque se chama Francisco, como o venerariam se tivesse escolhido o nome de Roberto; exultam quando diz a palavra ‘homossexual’, como sucederia de dissesse ‘valha-me deus’, em calão, à semelhança do soldador a quem cai um pingo de solda num olho; arfam beatos, quando fala, como palpitariam se ficasse calado.
Cria cardeais e não interrompeu a indústria da santidade. Defuntos antigos continuam a fazer milagres prodigiosos e a ser elevados aos altares. Pecadores endemoninhados são curados por imposição das mãos papais. Os exorcismos continuam a ser uma terapêutica pia, para os males da alma, como o chá de cidreira para as moléstias do corpo, em meios rurais, onde minguam drogas mais elaboradas.
O obscurantismo e a superstição permanecem, embalados em sorrisos, divulgados pela máquina de propaganda, enquanto os crentes veem, nas vestes talares, o sinal divino dos negócios pios.
Pouco há a esperar de um mundo misógino onde os celibatários se julgam guardiões da moral e juízes dos valores sociais. A igualdade entre homens e mulheres terá de esperar neste estranho mundo onde são femininas as vestes, masculinos os atores e coloridas as vaidades.
Para descontrair…
Um padre recebeu um pedido urgente para ministrar a extrema-unção e como não podia deixar o confessionário vazio, pediu ao rabino vizinho, seu amigo, que ficasse no seu lugar.
— Você também é um sacerdote do mesmo Deus e acredito que não haverá problemas. Ouça umas confissões comigo e você vê como é que se faz.
O rabino sentou-se ao seu lado e observou cuidadosamente enquanto o padre recebia as confissões.
— Padre, eu cometi adultério.
— Quantas vezes?
— Três vezes.
— Reze duas avé-marias, ponha cinco euros na caixa das esmolas e não peque mais.
Mais tarde, outra mulher confessa ter cometido adultério.
— Quantas vezes? — pergunta o padre.
— Três vezes.
— Reze duas avé-marias, ponha cinco euros na caixa das esmolas e não peque mais.
Mais algumas confissões e o rabino declara-se capaz de substituir o padre e, momentos mais tarde, recebe a primeira senhora no confessionário.
— Padre, eu cometi adultério — confessa ela ao rabino.
— Quantas vezes?
— Ora, uma vez!
— Então vá lá e faça mais duas vezes, que estamos com uma promoção especial esta semana: três por cinco euros!
Impotente para conter os ladrões que lhe assaltam as caixas de esmolas, o padre António Albino Marques decidiu-se pela radicalização: amaldiçoar os ladrões. As folhas do diário de inspiração católica retratam a impotência dos santos a quem
as esmolas são ofertadas. Eu digo impotência, mas bem pode ser uma questão de ética: santo que é santo, fica-se pelos milagres, não tem nada a ver com punições; e quanto a tomar conta das caixas de esmolas, por alguma razão os padres se dizem representantes de Deus na Terra. Ora, então é a eles que incumbe não só tomar conta dos óbolos oferecidos à santalhada, mas também apresentar as devidas contas.
Claro que nestas circunstâncias, o padre sempre pode alegar irresponsabilidade por incapacidade para conter os ladrões, e quem fica a perder é o santo contemplado, que vê a sua tença mitigada. Quer dizer, podia alegar, até agora. Porque sendo amaldiçoados, não sei muito bem o que vai acontecer aos ímpios prevaricadores, mas o mais certo é que mudem de profissão e enveredem pela política. Claro que deviam ser divinamente castigados, dado o teor sacro da actividade delituosa, mas, pelos vistos, Deus só tem andado a castigar quem tem comportamento sexual inadequado, ou quem se atira de um 100º andar. Mas tenho fé. Tenho fé em que os malandros vão ser severamente punidos, já que são conhecidos os poderes de uma maldição, mais a mais proferida por um padre. São, certamente, tão poderosos como as bênçãos, só que em sentido contrário.
Há poucas semanas critiquei uns argumentos absurdos que o filósofo Alvin Plantinga apresentou contra o ateísmo (1). Várias pessoas responderam a essas críticas mas, curiosamente, sem mencionar nada que resolvesse os problemas na argumentação do Plantinga. Simplesmente alegaram que eu não sabia nada da epistemologia que Plantinga defendia o que, além de falso é irrelevante para criticar o que ele disse na entrevista. Mas um post sobre uma ideia central naquilo que o Plantinga defende pode ajudar a perceber porque é que tenho tão pouca admiração por este filósofo.
Plantinga argumenta que é racional acreditar em Deus mesmo sem ter evidências propondo que “uma crença C é justificada para o sujeito S se e só se C for gerada por faculdades adequadamente funcionais num ambiente apropriado e de acordo com um plano bem sucedido para a produção de verdade” (2). Simplificando e ignorando algumas complicações filosóficas, uma crença é justificada se surge por um processo fiável nas condições certas. Assim, se Deus existir e tiver criado nos humanos uma predisposição para ter fé na sua existência e essa predisposição for fiável então a crença na existência de Deus será justificada pela fé. Mesmo que isto fosse uma epistemologia satisfatória não suportaria a conclusão de que é racional acreditar em Deus pela fé porque essa crença só seria justificada se Deus existisse. Na melhor das hipóteses será um argumento a favor do agnosticismo. Mas o problema desta tese de Plantinga é mais fundamental. Para que uma crença seja justificada não basta que surja por um processo fiável. É preciso também que quem adopte essa crença saiba que ela surgiu por um processo fiável.
Este problema é evidente num artigo mais antigo do Plantinga, onde ele propõe esta sua epistemologia como uma modificação do fundacionismo (3). Resumidamente, o fundacionismo defende que qualquer crença ou é justificada com recurso a outras crenças justificadas ou é uma crença básica, auto-justificada por ser auto-evidente e impossível de alterar. Por exemplo, se eu sinto que estou a ver um copo de cristal, a crença de que eu sinto que estou a ver um copo de cristal será uma crença básica porque é auto-evidente e não posso sequer considerar alternativas. Se sinto não posso crer que não sinto.
Plantinga tenta relaxar esta exigência e defende que para uma crença ser básica – i.e. não depender de outras crenças para se justificar – basta que surja nas condições certas. Por exemplo, se eu sinto que estou a ver um copo de cristal, nas condições certas, não só é auto-justificada a crença de que eu sinto que estou a ver um copo de cristal* mas também a crença de que eu estou realmente a ver um copo de cristal. Se a minha visão funciona bem, defende Plantinga, então justifica-se crer que o que eu sinto corresponde à realidade. No entanto, a crença de que eu estou realmente a ver um copo de cristal não pode ser básica porque só se justifica se eu acreditar também que a minha visão está a funcionar bem. Em pequeno, num estado febril e meio a dormir, tive uma visão vívida de um belo copo de cristal a flutuar à minha frente, reflectindo a luz em imensas cores. A crença de que eu tive essa visão pode ser básica mas não considerei justificável crer que se tratava de um copo de verdade porque, naquele momento, não acreditei que o meu sistema nervoso estivesse funcional. Plantinga quer varrer este problema para debaixo do tapete exigindo unicamente que o processo esteja a funcionar correctamente nas condições certas mas isso não basta porque o sujeito tem de o saber também. Suponhamos que eu vi aquele copo porque Deus fez um milagre e criou um copo mágico a flutuar à minha frente quando eu estava cheio de febre. Nessas condições eu estava a ver um copo real por meio do meu sistema nervoso, que Deus tinha concebido para identificar copos de cristal de forma fiável, em condições tais que tudo estaria a funcionar bem. Mas, mesmo assim, não seria justificado eu acreditar que o copo era verdadeiro se não sabia do milagre e julgava que estava a alucinar com a febre.
Resumindo, Plantinga tenta fazer aqui um atalho na epistemologia defendendo que alguém pode ter uma crença justificada apenas pelo processo como a crença surgiu sem precisar de justificar porque acredita que o processo é fiável. Isto não faz sentido. Se eu sinto que estou a ver uma árvore, em condições normais, tenho justificação para crer que é mesmo uma árvore mas porque tenho justificação para crer que a minha visão é fiável nessas condições. Por exemplo, pela consistência com que tenho conseguido identificar árvores no passado. Mas se vejo um fantasma, ou se sinto Deus, não posso justificar crer que estou a sentir algo real sem justificar primeiro a premissa de que o meu sistema nervoso é adequado para identificar correctamente estas entidades. E mesmo que se dê esta borla, Plantinga fica apenas com um argumento circular: se Deus existir, diz ele, justifica-se crer pela fé; mas se não existir então não se justifica. Isto só reforça a conclusão de que é irracional acreditar em Deus pela fé enquanto não houver confirmação independente da sua existência e da adequação da fé para apurar este tipo de factos.
*Ressalva: isto segundo o fundacionismo. Eu não concordo com a abordagem de tentar encontrar crenças básicas que não carecem de justificação porque até a sensação de ver o copo surge de correlações estatísticas num grande número de experiências que, ao longo da vida, foram moldando o sistema nervoso capaz de produzir essa sensação. Ou seja, a justificação, em última análise, não está em elementos atómicos mas na relação de grandes conjuntos de factores. Mas, como diria a grande filósofa Teresa Guilherme, isso agora não interessa nada.
1- Treta da semana (passada): os argumentos.
2- Plantinga, Tooley, 2008, Knowledge of God.
3- Plantinga, 1981, Is Belief in God Properly Basic?; Nous 15: 41-52.
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