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13 de Outubro, 2014 José Moreira

Voto de silêncio

Era um mosteiro original, fundado por uma variante dos frades capuchinhos: os Capuchinhos Do Silêncio – Penitentes Pios, CDS-PP para os amigos. Enquanto noviços, os CDS-PP eram considerados assistentes operacionais, e era-lhe permitido falar; mas depois de passarem à efectividade, entravam em regime de reclusão e eram obrigados ao voto de silêncio. Ou seja, nunca falavam, e mesmo as orações, missa incluída,  eram celebradas em silêncio. Se por acaso, tinham necessidade absoluta de falar, por exemplo para dizer a um assistente operacional que não havia papel higiénico na cagadeira, socorriam-se de mensagens escritas.

Mas, como acontece com todas as regres, esta também tinha uma excepção: uma vez por ano, um frade, designado pela lista de antiguidades, tinha direito a dizer uma frase. Esse dia coincidia com a data da fundação do mosteiro, pelo que se tornava um dia especialmente festivo.

Ora, no aniversário que interessa para este artigo, a lista de antiguidades apontou Frei Gabriel da Anunciação como o contemplado com a faculdade de dizer de sua justiça. Havia alguma expectativa, porque, certamente, algo de importante haveria de ser dito. Eis, pois, que é chegado o momento solene, este situado logo a seguir à sobremesa e imediatamente antes do café e digestivos. Sorvida a última colher de pudim de Abade de Priscos, Frei Gabriel levantou-se e pronunciou: “A sopa estava salgada”. Depois, sentou-se e tudo se remeteu ao silêncio habitual.

Passou-se um ano. Desta vez, a lista de antiguidades apontava Frei Hermogeneges Andapolipepédico como o feliz contemplado. Chegado o momento, levantou-se e disse: “Não acho que a sopa estivesse salgada”. Ponto.

E mais um ano silencioso decorreu, sem ruídos nem sobressaltos. A lista de antiguidades tinha dado, no ano anterior, a volta completa, pelo que, agora, voltava a ser a vez de o frade superior, o frade de todos os frades, se pronunciar. A expectativa era enorme, já que Frei Adalbataberto era não só um exímio gestor de silêncios mas também conhecido pela sua rigidez de comportamentos e austeridade na imposição de normas Eis, pois, que é chegado o momento de Frei Adalbataberto se pronunciar, consumida que foi a última “barriga de freira” e com o café já escaldante na chávena. Levantou-se na sua rigidez esfíngica e pronunciou, implacável: “Não quero mais discussões à mesa!”

12 de Outubro, 2014 Ludwig Krippahl

De onde vem a ética?

O Jónatas Machado comenta regularmente no meu blog, como “Perspectiva” ou “Criacionismo Bíblico”. Infelizmente, os seus comentários são tão repetitivos e desligados dos posts que comenta que deixei de olhar para eles. Mas chamaram-me a atenção para uma excepção, no post sobre a igualdade de direitos, que é um bom ponto de partida para algo que me interessa. Escreve o Jónatas que «ficamos sem saber porque é que o facto as pessoas sentirem, desejarem, planearem, sonharem e pensarem lhes confere dignidade e direitos iguais. Especialmente quando se acredita que as pessoas são um acidente cósmico», pondo em seguida as seguintes questões: «Como é que um acidente cósmico pode reclamar dignidade intrínseca? […] E reclama dignidade diante de quem? Que norma obriga um acidente cósmico a reconhecer a igual dignidade de outra acidente cósmico?». Finalmente, alega que «O princípio da igualdade não faz sentido à luz de uma visão ateísta» e que «O princípio da igualdade é, na realidade, uma doutrina cristã, cuja origem está em Génesis. Ele baseia-se no facto de homens e mulheres terem sido criados à imagem e semelhança de Deus.» (1) Penso que quem não for fundamentalista religioso percebe que estas alegações são falsas. Mas, como de costume, o que me interessa mais é detalhar o porquê.

Comecemos pelo mais fácil. Se alguém me pisa eu digo “Au! Está a pisar-me!” É fácil perceber que a minha capacidade de sentir, pensar e falar bastou para que reclamasse dessa violação da minha integridade. É também natural que eu dirija a minha reclamação a quem me pisou. Este mecanismo é comum nos animais. Se o Jónatas pisar a cauda de um cão grande, o animal irá reagir sem dificuldade em saber contra quem e facilmente lhe ocorrerá como persuadir o Jónatas a não repetir a brincadeira. É verdade que isto não tem nada de ético, mas já lá vamos. O importante primeiro é perceber que o mecanismo para identificar estes conflitos, reclamar deles e coagir para que não se repitam é consequência natural de capacidades sensoriais, motoras e cognitivas comuns em várias espécies.

Quando animais destes vivem em grupos, a pressão para reduzir conflitos e maximizar benefícios condiciona padrões colectivos de comportamento. Assim, em galinheiros, matilhas de lobos e grupos sociais de golfinhos, por exemplo, surgem normas implícitas, aprendidas por cada nova geração pela socialização com os mais velhos, e que regulam comportamentos que vão desde quem pode dar bicadas em quem até estratégias complexas de caça e reprodução. Na nossa espécie, a capacidade de codificar estes padrões em linguagens e ritos cria a moral, um conjunto de normas e de regras explícitas que condicionam o comportamento de indivíduos em cada cultura. É comum invocar-se deuses para ameaçar infractores ou justificar as regras mas, em rigor, isso seria dispensável. Talvez dizer “se roubas cortamos-te as mãos” não seja tão eficaz como dizer “roubar é pecado aos olhos de Xumbundu, por isso se roubas cortamos-te as mãos e Xumbundu condenará a tua alma ao inferno das mil diarreias”. Mas a diferença, se houver, será meramente quantitativa. A ideia é a mesma: as normas surgem pela interacção dos elementos do grupo, esses elementos encarregam-se de coagir o respeito pelas normas e a moral que daí advém é apenas a representação simbólica de padrões que cristalizaram sem plano nem propósito. Com isto já se faz leis, religiões, costumes, castas, tradições e regras sociais complexas. Mas, como há muitos pontos de equilíbrio nestes sistemas complexos, a moral de uma sociedade pode ser muito diferente daquela que surge noutra e pode incluir racismo, escravatura, tortura, despotismo e outras injustiças terríveis, conforme calhe. Quanto a isto, a religião de nada adianta.

A ética é um bicho diferente porque não é feita de comportamentos, nem de normas, nem de regras, direitos ou obrigações. A ética é feita de perguntas. Quando Sócrates perguntou o que é a virtude, todos os seus contemporâneos julgavam que a resposta era óbvia. Mas não era. Nem é. Porque não devemos roubar? Quando é legítimo matar? Viver é um direito, um privilégio ou uma obrigação? Estas perguntas são importantes porque impedem uma adesão cega ao sistema moral que nos tenha calhado e permitem uma abordagem consciente e racional dos problemas. Eu considero que homens e mulheres têm direitos iguais porque considero que são equivalentes naquilo que importa para ter direitos, como sentir, pensar e dar valor à sua existência. O Jónatas acha que é por «terem sido criados à imagem e semelhança de Deus» mas essa premissa não tem fundamento factual, não passa de uma interpretação possível para a rábula da costela e nem sequer é consensual no cristianismo. Também não permite estender a noção de direitos a animais de outras espécies que, apesar de não serem semelhantes ao deus do Jónatas, partilham connosco muito daquilo que justifica ter direitos.

A ética serve para substituir os mecanismos cegos de estabilização de comportamentos pelo debate consciente e as racionalizações do status quo por justificações racionais. Os princípios que daí advêm depois podem ser transpostos para normas, como leis, formas de governo e afins, corrigindo gradualmente os erros do passado. Ao contrário do que o Jónatas defende, a religião não traz benefícios nisto porque é apenas mais um legado desses mecanismos primitivos que dominaram as sociedades até há poucos séculos. Os mesmos mecanismos que governam galinheiros e matilhas. E a ética não pode vir de Deus porque a ética não é algo que nos dão. É algo que temos de fazer por nós, pois exige questionar, reflectir e perceber os problemas de outras perspectivas. O único deus que poderia participar nesta actividade seria um deus filósofo, disposto a dialogar e a justificar as suas posições. Mas como um deus filósofo não é útil aos sacerdotes, as religiões só inventam deuses déspotas, prepotentes e preconceituosos, que nada podem contribuir para esta empreitada.

1- Igualdade e diferenças, segundo comentário.

Em simultâneo no Que Treta!

7 de Outubro, 2014 Luís Grave Rodrigues

A Mulher Católica

As principais religiões do mundo definem-se a si próprias como defensoras de princípios éticos de honestidade, de paz e de tolerância e amor ao próximo.
No entanto, o que é facto é que, na prática, TODAS elas – quer historicamente, quer ainda agora – acabam por ser acérrimas opositoras de quem não perfilha as mesmas ideias, ou de quem tão simplesmente pratica o culto ao seu Deus de modo distinto.
É mesmo das religiões que provêm os mais chocantes exemplos de intolerância e preconceito.

E, se a Igreja Católica Apostólica Romana não é excepção, ela caracteriza-se também pela mais profunda e abjecta homofobia e pela mais inqualificável misoginia. Provavelmente mais ainda do que as restantes religiões.

Se não vejamos:

Logo nos princípios fundamentais das religiões cristãs, transmitidos directamente e sem intermediários pelo próprio Deus a Moisés, consta como mandamento: «não cobiçar a mulher alheia».

Ora, quer isto dizer que o próprio Deus reduziu a mulher a um mero e passivo objecto de cobiça, sem autonomia de vontade para a negar ou para lhe resistir.
E quer isto dizer que não resta ao homem outra alternativa para resguardar da cobiça alheia a mulher de que é “proprietário”, não a vontade da própria mulher (que a vontade da mulher não é para aqui chamada), mas somente o último recurso: a vontade divina.
E como a autoridade suprema só tem de legislar em função daquilo que é necessário e que é previsível que aconteça, nem sequer se deu ao trabalho de prever um mandamento que, reciprocamente, proíba a mulher de cobiçar o homem alheio.
Obviamente que a mulher não tem capacidade suficiente para levar a cabo uma tarefa tão masculina como é essa de «cobiçar».
Como está absolutamente fora de questão a própria mulher querer vir um dia… a ser cobiçada…

Na verdade, se alguma coisa é característica da Igreja Católica é o modo como a mulher é encarada como algo sujo e pecaminoso, um ser de segunda categoria e absolutamente desprovido de raciocínio, e que deve ao homem obediência cega.
O próprio celibato do clero não visa mais do que afastar todos aqueles santos homens, representantes de Deus na Terra, dessa coisa abjecta que é a mulher, que só os distrai das sagradas tarefas de Deus e os aproxima inexoravelmente do pecado.

Principalmente desde o Século IV com Santo Agostinho (que deve ter sido um tarado sexual de primeira apanha), o próprio modo como a Igreja Católica encara o sexo – simplesmente como algo porco e um horrível pecado contra Deus – reflecte-se imediatamente no modo como é encarado o “objecto” desse sexo: a mulher.

Assim, como poderia a Igreja Católica permitir a ordenação dessa coisa suja e abjecta que é a mulher? A mulher nem sequer tem dignidade para ajudar à missa, quanto mais para ser padre!

Desde há séculos, a mulher não é mais do que o oposto polo aristotélico do homem, e não serve para mais do que, pela negativa, o afirmar positivamente. Como o mal afirma o bem; como o negativo afirma o positivo.
E não são raros os exemplos históricos das mulheres que, por falharem nesse seu sagrado desígnio, foram queimadas como bruxas. Bastava que alguém desconfiasse que pensavam por si, ou que tão somente demonstrassem qualquer aptidão artística.

As próprias mulheres que se aproximaram de Deus, na pessoa de Jesus Cristo, são tratadas pela Igreja Católica com um machismo e uma misoginia que não se entende que ainda prevaleça e se aceite nos nossos dias.

Teria sido absolutamente normal que Jesus Cristo, afinal um homem, tivesse casado com Maria Madalena, a quem teria tratado como sua igual, e que teria sido sua fiel e confidente companheira. E que o teria acompanhado nos momentos mais difíceis da sua vida, e que nunca o abandonou, nem mesmo na hora da sua morte.

Mas, como está absolutamente fora de questão que Jesus Cristo, Deus e filho de Deus, do alto da sua santidade de Espírito Santo se tenha alguma vez «conspurcado» pelo contacto com uma mulher, desde logo a Igreja Católica imediatamente reduziu a pobre Maria Madalena ao nível mais baixo do escalão mais baixo que já por si era como mulher: passou a ser uma prostituta.

Mas o exemplo mais paradigmático da misoginia da Igreja Católica é o que se passa com a própria mãe de Jesus Cristo, a Virgem Maria.

A Maria de Nazaré foi pura e simplesmente negado ser mulher.
E para que Maria pudesse ser mãe, mesmo sem ser mulher, foi então determinado que fosse virgem, obviamente por intermédio de um dogma, que é para não haver mais discussões.
De tal modo que ninguém se importou que com isso o carpinteiro com quem era casada fosse automaticamente transformado assim numa espécie de «corno manso», incapaz de consumar o seu próprio casamento.

Uma vez mais com a persistente ideia (que para mim é inegavelmente muito suspeita) de que o sexo é uma coisa abjecta e suja, a Igreja Católica passou a tratar a mãe de Jesus como a «Virgem», a «Imaculada» ou outros impropérios do género, fazendo-a subir aos Céus toda ela, em alma e corpo, com hímen e tudo, sem sequer lhe dar direito a ter tido uma simples relação sexual na sua vida terrena.

Porque, para a Igreja Católica, depois de ter tido uma relação sexual a mulher nunca mais será a mesma e não serve já para mais nada.
Ao contrário do que acontece com o homem que, como toda a gente sabe, está acima dessas coisas. Até o seu esperma é sagrado e não pode ser derramado inutilmente, sob pena de morte.

A mulher, não. Porque a mulher já foi «tocada». Já foi «suja». Já tem uma «mácula» que nunca mais sai.
E, nem que fosse só para ser mãe, uma mulher assim «manchada», já não poderia subir aos Céus.

E mais: assim numa coisa que parece muito próxima de uma vulgar e africana excisão ritual de clitóris, nem sequer foi dado a Maria de Nazaré o direito de subir aos Céus sem antes ter tido um orgasmo.
E agora é tarde, porque nos Céus não há cá dessas porcarias.

Porque, como é óbvio, Deus não quer.
Pois se Deus é pai, é filho e é espírito santo, então, e como toda a gente sabe, Deus… é HOMEM!

Uma coisa é certa: 
nunca deixará de me surpreender como é que uma MULHER, digna desse nome e orgulhosa da sua condição, pode em plena consciência intitular-se CATÓLICA!

7 de Outubro, 2014 Carlos Esperança

“EM VERDADE VOS DIGO” (2/5)

Crónica Ateísta de

Onofre Varela 

O que é a Verdade?

Espero que os leitores não vejam no título genérico desta rubrica uma provocação à sua fé, nem entendam que uso uma frase religiosa fora do contexto bíblico. As considerações de um ateu estão inseridas no contexto da Bíblia, porque um ateu é um crítico do conceito de Deus.

Logo, assuntos como a Bíblia, os Evangelhos, outros textos religiosos, históricos, científicos e filosóficos, mais os discursos de papas, bispos e sacerdotes, são o material das suas reflexões.

Escolhi a frase evangélica “Em Verdade vos digo”, referida por Marcos e Lucas, com a intenção de dizer o mesmo que Jesus Cristo (JC) pretendeu dizer quando a proferiu (a crer nos evangelistas). Era intenção de JC sublinhar a Boa Nova que apregoava, na contradição de textos e conceitos que os judeus aceitavam por verdade, ou de outros
que não relevavam como deviam. “Em Verdade vos digo” foi o modo encontrado por JC (ou que os evangelistas colocaram na sua boca) para reafirmar frases sábias inseridas no Levítico, como, por exemplo, “Ama o próximo como a ti mesmo”, que JC via sempre tão esquecida nas atitudes dos sacerdotes que se pretendiam modelos de comportamento. Do mesmo modo eu pretendo chamar a atenção dos religiosos de mente fechada a outras interpretações, para o facto de haver quem pense de outro modo com a mesma legitimidade que reivindicam para si. Note-se que a Verdade de algo é a sua essência, e esta raramente é consensual.

“A verdade é só uma”, diz o Povo, mas cada um tem a sua!… e nas religiões as verdades multiplicam-se. Os quatro evangelistas têm, cada um, a sua verdade para JC! É neste contexto de a Verdade não ser una, que os ateus defendem a sua, desde os tempos da Antiga Grécia.

O Ateísmo é uma filosofia que nega a existência real e concreta de uma divindade por não haver prova da sua existência, e não especula sobre a sobrenaturalidade. O ateu entende que Deus é um conceito, vive muito bem sem ele e assume-se responsável pelos seus actos, dá valor à sua vida e à dos outros, cultiva a Razão, a amizade e a entreajuda, e confia no método científico para construir modelos da realidade, rejeitando a fantasia da vida para além da morte.

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico)

3 de Outubro, 2014 Luís Grave Rodrigues

Teologia

1 de Outubro, 2014 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): a careca é uma cor de cabelo.

A crítica de Rui Ramos ao ateísmo de Stephen Hawking segue a fórmula do costume. Primeiro, se Hawking «acredita que Deus não existe» então, tal como o crente em Deus, tem «fé, embora diversa – a fé na inexistência de Deus.» Depois, que chegou à sua conclusão da mesma forma que o crente: «A questão é determinar de que modo, entre a fé em Deus e a fé na inexistência de Deus, Hawking passa de uma margem para a outra. A sua ponte não é o cepticismo, mas a ciência, ou melhor, uma variante muito especial da experiência científica, que funciona de facto como o equivalente laico da fé religiosa.» Finalmente, que a atitude de Hawking para com a ciência é igual à de qualquer crente. «Hawking sente pela ciência a devoção que qualquer beato dispensa ao seu todo-poderoso ídolo»(1).

Esta forma de criticar o ateísmo sempre me pareceu estranha pela admissão implícita de que a crença em Deus é estapafúrdia. Não é que discorde. Concordo inteiramente que é um disparate formar crenças acerca da realidade por meio da fé e da devoção beata. Mas é estranho julgarem que a falta de fundamento epistémico da crença religiosa é um bom argumento contra o ateísmo. No entanto, mais interessante é perceber porque é que as alegações de Ramos são falsas.

A fé não é o mesmo que a crença. Acreditar é simplesmente aceitar uma proposição como verdadeira enquanto que a fé é um compromisso pessoal de fidelidade e perseverança para com certas ideias (2). É perfeitamente possível acreditar sem fé. Eu acredito que Deus não existe da mesma forma como acredito que a Terra se formou há 4.5 mil milhões de anos, sem sentir qualquer dever de fidelidade para com estas proposições. E é também possível ter fé sem ter crença se a fidelidade a uma ideia não bastar para que se consiga acreditar. A confusão de Ramos entre fé e crença atropela a diferença entre a devoção do crente aos princípios da sua religião e a forma descomprometida como todos regularmente adoptamos e descartamos crenças conforme julgamos conveniente.

O contexto destas crenças também é diferente. A ciência procura a melhor explicação para os dados de que se dispõe. É verdade que isto só resulta se houver dados suficientes e, por isso, a ciência só começou a ter sucesso nos últimos séculos; sem saber nada sobre decaimento radioactivo, a erosão ou a formação do sistema solar não havia razões para acreditar que a Terra tinha 4.5 mil milhões de anos em vez de só dez mil. Mas, com o que sabemos agora, a melhor explicação fica tão entalada na estrutura interligada de observações e outras explicações que, a menos de uma pequena margem de erro, só o valor de 4.5 mil milhões de anos pode ser aceite.

A crença de que um deus inteligente e bondoso criou a Terra por milagre não sofre destas restrições. Em geral, os preceitos de cada religião são arbitrários e podiam ser qualquer coisa. Se criou tudo por milagre, tanto podia ter criado o universo há treze mil milhões de anos como podia ter criado tudo há dez mil anos em sete dias ou em sete minutos na sexta-feira passada. Milagre por milagre, também podia ter criado os fósseis, os vestígios de erosão e até as memórias que cada um de nós tem. Sem qualquer suporte empírico, só a fé leva o crente a decidir que a sua crença é mais acertada do que as dos outros.

O processo também é muito diferente. A ciência não é um «equivalente laico da fé religiosa». A ciência progride explorando e testando alternativas. É este processo de rejeitar o que se revela incorrecto que vai apertando o cerco às explicações admissíveis, deixando cada vez menos elementos arbitrários. Nas religiões, o primeiro passo consiste em afirmar algo como Verdade. E pronto. O resto é teólogos a inventar desculpas para as inconsistências e arbitrariedade da escolha inicial (3). É verdade, como menciona Ramos, que houve «séculos de meditação e de debate» acerca de Deus e outros deuses. Mas o debate e a meditação são inúteis se não se está disposto a descartar as hipóteses erradas.

Hoje é evidente que os deuses são mera ficção porque qualquer coisa que se tente explicar invocando um deus explica-se melhor rejeitando esse deus como fantasia, desde a formação das galáxias e a origem das espécies à existência do mal e a diversidade das religiões. Também não é a «pobreza da […] concepção de Deus» que faz diferença porque, por muito “rica” que seja, é uma concepção arbitrária, infundada e inútil para explicar seja para o que for. A ciência eliminou os deuses de todas as explicações para o universo que nos rodeia. Sobraram apenas as alegações que os crentes mantêm por fé. Mas, antes de nos metermos pela metafísica da existência dos deuses na premissa de que estas alegações correspondem à realidade, devemos primeiro determinar se é preciso deuses para explicar a fé dos crentes. Também aqui a ciência responde pela negativa. Há evidências claras de que é muito fácil aos seres humanos agarrarem-se a superstições e que a intensidade desse apego não é indicador fiável da verdade das crenças.

Não é preciso idolatrar a ciência para perceber que a fé não serve para compreender a realidade. É precisamente isso que Ramos argumenta contra Hawking, errando apenas por presumir que a posição de Hawking deriva da fé. Mas não é preciso fé para concluir que os deuses são tão fictícios quanto os unicórnios, os fantasmas e os dragões. Basta fazer o puzzle com as peças que encaixam.

1- Rui Ramos, O deus de Stephen Hawking
2- Catholic Encyclopedia, Faith.
3- A propósito disto, recomendo esta palestra de David Deutsch na TED: A new way to explain explanation

Em simultâneo no Que Treta!

30 de Setembro, 2014 Luís Grave Rodrigues

30 de setembro: dia mundial da blasfémia!


«O entendimento popular da blasfémia resulta provavelmente do mandamento bíblico «não tomarás o nome do senhor teu Deus em vão», muito embora nos últimos anos tal conceito se tenha estendido na consciência do público de forma a incluir imagens retratando o profeta islâmico Maomé.

Há seis anos atrás, no dia 30 de Setembro de 2005, o jornal dinamarquês “Jyllands-Posten” publicou uma série de cartoons retratando Maomé. O que se seguiu foi uma batalha de culturas entre o valor ocidental da liberdade de expressão e as rigorosas leis do Islão contra a blasfémia.

A religião exerce uma incomensurável pressão sobre a liberdade de expressão, graças à sua universal condenação da blasfémia.

A palavra “blasfémia” deriva de duas palavras gregas, significando βλάπτω “euu mal”, e φήμη que significa “reputação”, e tem vindo a ser tomada como «falar contra Deus», ou como a difamação da religião e de doutrinas religiosas.

Entre as mais fervorosas e mais fundamentalistas seitas religiosas a blasfémia pode variar entre beber uma cerveja até à própria negação da existência de Deus (coisas que eu já fiz no dia de hoje).

Eis o que Bíblia tem a dizer sobre blasfemos:

No Levítico 24:16: “Aquele que blasfemar contra o nome do Senhor será condenado à morte; toda a congregação deverá apedrejar o blasfemo. Tanto os estrangeiros como os cidadãos, quando blasfemarem o Nome, deverão ser condenados à morte”.

É manifesto que as três grandes religiões ocidentais têm uma opinião extremamente negativa da blasfémia, uma vez que a consideram uma ofensa capital.

As leis contra a blasfémia só servem para promover o medo entre a população e a obediência às autoridades religiosas.

Na Europa renascentista a cosmologia oficial da Igreja Católica defendia a visão aristotélica de um cosmos totalmente controlado por Deus, e que sustentava que todos os objectos celestes giravam ao redor da Terra.

Quando Galileu virou o seu telescópio para os céus e desenhou as quatro luas em órbita de Júpiter, ele estava a blasfemar contra a Igreja.

E esta limitada cosmologia defendia também que não poderia haver tal coisa como o vácuo.

Por isso, quando cientistas como Torricelli e Pascal começaram a bulir com a criação de vácuos, também eles estavam a blasfemar contra a Igreja.

George Bernard Shaw disse uma vez que «todas as grandes verdades começam como blasfémias», o que só por si poderia resumir de forma muito sucinta a busca ocidental pela Ciência.

Para as religiões que promovem a ideia de que um Deus criou o universo somente para os seres huma-nos, a ciência será sempre uma blasfémia, porque a ciência abre brechas na já frágil cosmologia filosófica que as religiões ensinam como verdadeira.

O «Dia da Blasfémia» é um dia de reconhecimento da importância da blasfémia numa sociedade que valoriza o direito à liberdade de expressão.

Sem liberdade para blasfemar, para falar contra as ridículas doutrinas religiosas que mantêm a sociedade na escuridão e na ignorância, não temos realmente liberdade de expressão.

Blasfemar é defender a ideia de que não há nada tão sagrado que não possa ser criticado, ridicularizado, ou até mesmo falado em voz alta.

Como ateu, cada dia é para mim o «Dia da Blasfémia» porque me recuso a colaborar com os dogmas que a religião vende».
Texto (livremente) traduzido do «Skeptic Freethought»