Na pequena aldeia, fazia um frio impressionante. Postado à janela da casa paroquial, o padre Benevides contemplava a neve que acabara de cair. O deserto da rua foi interrompido pela Luisinha que, mal agasalhada, puxava um corpulento touro pela arreata, apesar dos seus pouco mais que dez anos. Perante a cena, o bom padre não se conteve, e abriu a janela:
– Aonde vais, Luisinha, com este frio?
– Vou levar o touro ao senhor Cirpiano, para lhe cobrir a vaca.
Chocado com o que ouvira, o pio padre exclamou:
– E o teu pai, ou o teu irmão vais velho, não podiam fazer isso?!
– Não, senhor padre. Já experimentaram, mas não dá, tem de ser o touro mesmo.
A Europa, sob pena de renegar os valores, cultura e civilização que a definem, não pode deixar de socorrer e tentar integrar as multidões que fogem de países falhados, Estados terroristas e regiões que o tribalismo e a demência dominam.
A Europa, tantas vezes responsável por agressões devastadoras, cujas consequências ora a confrontam, não pode renunciar ao dever de solidariedade para com os acossados, não por expiação de culpas mas por imperativo ético.
Nunca a metáfora da bicicleta, caindo quando para, foi tão certeira como aplicada à UE, que não soube ou não quis federar as nações que a compõem com o aprofundamento da política comum, nas suas vertentes económica, social, fiscal, militar e diplomática, para quem, como eu, acredita num projeto europeu.
Mal dos europeus se o medo os paralisa e preferem abandonar os náufragos a assumir o risco de salvar um terrorista, mas, pior ainda, se descuram o perigo que a exigência ética comporta, se não souber distinguir os crentes, que precisam de ajuda, das religiões que exigem combate.
A Europa civilizada morre se renunciar à solidariedade que deve e suicida-se se não se defender da perversão totalitária de culturas exógenas que vivem hoje o medievalismo cristão e o pendor teocrático do seu próprio passado que o Iluminismo erradicou.
A civilização europeia será laica ou perece. Não pode ceder a poderes antidemocráticos, permitir a confiscação de espaços públicos por quaisquer religiões que incitem ao crime, em nome de Deus ou do Diabo.
O Islão, na sua deriva sectária, é puro fascismo a exigir contenção. Enquanto não aceitar a igualdade de género, o livre-pensamento e as liberdades individuais não pode ser tratado como as religiões cujo clero se submeteu ao respeito pelas regras democráticas e à aceitação do Estado laico.
A laicidade, paradigma da cultura europeia, é a vacina que salva o pluralismo religioso, preserva a sua civilização e evita a xenofobia que alimenta a direita antidemocrática que pulula nas águas turvas do medo e da demagogia.
Não se exige mais a quem chega do que a quem já estava, a submissão às leis do Estado laico e democrático.
Por
[Pode dizer que é um texto da autoria dos Irmãos Cavaco da escrita criativa, texto esse que integrará um livro de contos variados a publicar em breve…
Embora haja muitos pastores peregrinos, raros são os pastores de peregrinos. Flávio Manso é um deles.
Um dia, levado por um súbito assomo de crença, decidiu passar a apascentar os caminhantes impelidos pelo poderoso motor da fé.
Como voluntário da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima, em Viana do Castelo, conduz rebanhos de peregrinos ao longo das estradas nacionais e florestais, impedindo que se tresmalhem, que saiam do trilho, que sejam “aspirados” por pesados de mercadorias, que utilizem os SOS para “acicatarem” a líbido das amantes…
Condu-los com um cajado, reagrupa-os à “calhoada” quando se afastam do grupo e, sempre que atravessam cadeias montanhosas, coloca-lhes uma coleira de espinhos à volta do cachaço, para evitar que se tornem presas fáceis das famintas alcateias.. Os peregrinos “alzheimarados”, esses, são municiados com o respectivo chocalho.
Flávio não se poupa a esforços para que os seus rebanhos realizem, nas melhores condições possíveis e a médias assinaláveis, as longas e penosas transumâncias religiosas. Para tal, e depois de lhes ministrar workshops de marcha olímpica, organizou uma eficaz e cómoda rede de lameiros (devidamente mapeada), onde os caminhantes pastam num ambiente pousado e bucólico, hidratando-se nas bermas baixas.
Montou diversos pontos de tosquia ao longo da estrada, onde os peregrinos de pêlo mais comprido podem aliviar-se do excesso de carga capilar.
Transformou ainda uma série de casas de cantoneiro abandonadas em confortáveis currais. E que bem acantonados ali ficam os “papa-léguas”, vigiados por diligentes párocos que, atentos ao menor perigo ou movimento suspeito, cumprem na perfeição a exigente função de cães de guarda.
Mas tal como qualquer pastor, Flávio tem de fazer pela vida. Por isso ordenha as peregrinas mais carregadas de leite, fabricando com tão precioso líquido o saboroso queijo de leite de peregrina, pago a peso de ouro por retalhistas gourmet. E aproveitando o bigode dos peregrinos e o buço das peregrinas, que emprestam uma maleabilidade única à grossa lã caseira, confeciona resistentes peças de burel e de surrobeco.
Com a bênção e o apoio da Diocese de Leiria-Fátima, assim vai Flávio Manso cumprindo, como Bom Pastor da Igreja, a devota missão de guiar pelos caminhos da Fé os rebanhos de cristãos que Deus lhe confiou, recompensando os mais obedientes com periódicas visitas a lojas de turismo religioso, cuja perspectiva os deixa sedentos de consumir…
Enviado do púlpito do meu dispositivo Samsung
a) ………………….
Por
Paulo Franco
Está a acontecer, neste momento, a sexta extinção em massa no planeta Terra e a causa do problema está identificado: 7 335 milhões de seres humanos.
Se quisermos compreender porque é que o mundo chegou ao estado caótico em que se encontra, temos de olhar para o que nos definiu enquanto espécie: a evolução.
A evolução criou 3 grandes linhas condutoras do comportamento humano:
Ego, hedonismo e liberdade. E a avidez insaciável como procuramos satisfazer todas elas conduziu-nos ao abismo.
O nosso egocentrismo, o nosso hedonismo e a procura insaciável de liberdade são características que nos definem enquanto espécie, mas como nós somos apenas uma espécie entre todas as outras ligadas entre si por uma cadeia infindável que percorreu um longo processo evolutivo de milhares de milhões de anos, também as outras espécies partilham connosco estas características definidoras dos seus comportamentos.
Estas 3 linhas condutoras do nosso comportamento foram seleccionadas pela evolução precisamente porque são as que melhor servem os propósitos da luta pela sobrevivência, mas são também por causa delas que o mundo está a assistir silenciosamente à sexta extinção em massa e que, inevitavelmente, colocar-nos-á também a nós à beira da extinção.
Sendo verdade que, enquanto espécie, conseguimos o desenvolvimento que conseguimos graças a um esforço conjunto, nunca deixamos de evidenciar um tribalismo primário idêntico ao dos nossos “primos” pré-históricos. O sistema capitalista tem ajudado a aprimorarmos cada vez mais a nossa propensão natural para o individualismo(egocentrismo) e busca incessante de prazer (Hedonismo). Arrogantes e convencidos de que somos livres de dominar todo o planeta e todas as espécies, invadimos todo o território terrestre colocando em perigo milhões de espécies.
Como nós, mais do que qualquer uma das outras espécies, somos irrefreáveis no nosso hedonismo compulsivo, nada nos parece conseguir deter na avidez com que desbaratamos os recursos do planeta. Se a esta realidade, somarmos o facto catastrófico do excesso de população (mais de 7 biliões actualmente e previsão de 10 biliões para o ano 2100), a rápida desflorestação do planeta e o aquecimento global com as previsíveis alterações climáticas daí consequentes, poderemos compreender porque é que desde a extinção dos dinossauros à 66 milhões de anos que não se observava um tão rápido desaparecimento de espécies (100 vezes mais rápido do que seria natural).
Actualmente, todos os dias, milhares de pessoas fogem da guerra, da fome e da pobreza extrema e invadem os países europeus que fazem fronteira com o continente africano e asiático. Esta catástrofe humanitária é apenas uma pequena amostra do que acontecerá no futuro. Numa escala muito maior, milhões de pessoas terão de abandonar as suas casas devido à impossibilidade de lá poderem viverem.
Alterações climáticas, guerras, aumento do nível da água dos oceanos, escassez de recursos mínimos de sobrevivência serão as causas prováveis para esse terrível acontecimento.
Qual a solução? Só existe uma: encontrar mais 3 ou 4 planetas Terra e deslocarmo-nos parcialmente para lá. Jamais conseguiremos mudar a natureza humana. Podem fazer as campanhas de sensibilização que quiserem. Jamais o ser humano deixará de querer satisfazer o seu ego, nunca deixará de ser um hedonista compulsivo e um animal feroz ávido de liberdade.
“Vou dizer-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias”. (Albert Camus)
Há poucas horas, num grupo de amigos com os pés assentes debaixo da mesa, um comensal proclamava: “Este ano não vai haver Natal”. Ficámos estupefactos, mas o amigo explicou: “José está preso, Maria morreu, e Jesus foi lançado aos leões”.
Fim de citação.
Começo por dizer que não concordo muito com o termo “IVG”, já que uma interrupção pressupõe, em princípio uma retoma, ou continuação. Parece-me que o termo correcto seria CVG (Cancelamento Voluntário da Gravidez).
Adiante.
A chamada IVG tem servido, entre outras coisas, e principalmente neste espaço, para funcionar como arma de arremesso entre crentes e não-crentes (vulgo ateus, entre os quais me incluo, naturalmente) esquecendo-se, ambos os grupos, de que aceitar a despenalização do aborto, vamos chamar os bois pelos nomes, não é a mesma coisa que concordar com o aborto. Porque antes de “julgar” a Lei, é preciso analisar o “espírito da Lei”. E esse “espirito” (quem foi que disse que só os crentes é que têm espírito?) parece querer dizer-nos que se uma mulher decide abortar, não há nada a fazer: tomou a decisão, e vai levá-la por diante, concorde-se ou não com ela. Então, há duas hipóteses: ou a mulher pratica o aborto em condições de higiene e segurança sanitária, ou recorre a uma abortadeira de vão-de-escada, com as consequências previsíveis. Apenas e só. Partir para a conclusão de que o legislador e quem o apoia mé a favor do aborto porque concorda com esta lei, é o mesmo que dizer que ao despenalizar o consumo de estupefacientes o legislador apoia o tráfico de droga. E não venham argumentar que um aborto é um crime, porque só o é nos termos definidos em lei; outrossim não venham com o argumento de que se trata de um homicídio, porque esse também está tipificado em lei. Basicamente, homicídio é tirar a vida a uma pessoa, e um feto não é uma pessoa. Pelo menos, nunca assisti ao funeral de um feto (“fruto” de aborto, espontâneo ou não), nem ao baptismo de um ente antes do seu nascimento.
De qualquer modo, não é isso que está em causa, mas sim a diferença, que é grande, entre concordar com a despenalização do aborto e concordar com o aborto, “tout-court”.
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.