3 de Outubro, 2016 Carlos Esperança
A eutanásia e o terrorismo pio
Que a eutanásia é um assunto melindroso, que nos interpela até ao âmago, que nos leva a refletir sobre a vida e a morte, e nos levanta dúvidas e perplexidades, é uma evidência.
Que se discuta na base de uma campanha terrorista, com panfletos aterradores, a lançar insinuações sobre a possibilidade de os hospitais se transformarem em açougues, como se os médicos e enfermeiros fossem um bando de possíveis assassinos, é terrorismo que não tem pudor em praticar uma autodenominada “Federação Portuguesa pela Vida”.
A Bélgica admite a eutanásia a pacientes em “sofrimento físico e/ou psíquico constante, insuportável e sem alívio” e a Holanda permite-a “a doentes incuráveis e em sofrimento (a pedido do doente), condição que tem de ser atestada por mais de um médico”. Não se pode ignorar a experiência pioneira destes dois países, que já leva 14 anos.
A vida, sendo um direito inalienável, não pode ser uma condenação sem apelo. Ainda se ouvem os apelos aflitos de Ramón Sampedro, tetraplégico desde os 25 anos, que teve de esperar 30 anos para que uma amiga o apoiasse no suicídio. A Justiça absolveu-a, como se esperava, por ‘falta de provas’, como convinha numa Espanha católica e hipócrita.
O reconhecimento do direito à eutanásia não obriga a que alguém o aceite, mas impede que o proíba. Um direito individual é isso mesmo, uma decisão do próprio ou, estando incapaz, de quem o ame e tenha legitimidade para essa decisão, sob a responsabilidade de médicos quem possam e saibam avaliar o sofrimento e a irreversibilidade da causa.
A razão por que ninguém tem direito a impor a eutanásia, a quem quer que a não deseje, por maior que seja o sofrimento e a irreversibilidade da causa, é a mesma a que se deve submeter quem gostaria de a impedir a quem não suporte o sofrimento que o atormenta.
Os preconceitos não podem sobrepor-se à razão nem a alegada vontade divina à vontade humana. É um direito individual escolher como morrer sem que alguém tenha o direito de impor aos outros a morte que lhe deseja.
Se Deus está interessado em prolongar o sofrimento de alguém, por que motivo quem o ignora há de sujeitar-se à vontade dos funcionários que nunca viram o patrão? É curioso que sejam os países que quiseram a Inquisição os que mais se opõem à eutanásia. Gostavam de escolher quem matar.