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28 de Outubro, 2024 João Nascimento

Apenas Humano

Imagem criada com o DALLE-4

Escrevi este poema há décadas, quando finalmente percebi, com genuína satisfação, que eu era mais um dos que simplesmente não conseguem acreditar. Não só ansiava por viver sem ilusões, como sabia que devia fazê-lo – não podia ser de outra maneira. Nunca olhei para trás.


Sou humano, susceptível a doenças,

a enfermidades,

e ao inevitável fim.

Estou à mercê,

e à clemência,

do que quer que me infeste.

Estou cheio de falhas,

mentiras, e enganos.

Estou preso,

numa luta incessante,

comigo mesmo,

contigo,

e com o mundo à minha volta.

Os meus defeitos e imperfeições

perseguem-me,

e sempre o farão.

Sou a causa,

a raíz de toda a minha miséria.

Sou a razão pela qual podes magoar-me.

Sou o defeito,

o erro,

que vivo dia após dia.

Sou humano,

não devias confiar em mim.

Sou mortal,

não tenhas fé em mim.

Mas, tu também és humano,

com os teus defeitos,

com as tuas imperfeições,

que eventualmente me aceitarão.

Sou humano,

não há nada de extraordinário em mim.

Há 8 mil milhões de outros,

exactamente como eu.

Sou humano,

é o pior,

e o melhor em mim.

Sou culpado,

serei sempre.

Inventei,

desenhei,

e imaginei,

o Deus que me criou.

Sou apenas humano,

mas espero sempre mais de mim.

Tão frágil,

tão delicado,

e vulnerável,

magoado pelo simples existir.

Sou apenas humano,

não é fácil.

Sou humano, 

perdoa-me.

25 de Outubro, 2024 Eva Monteiro

Um Gesto de Altruísmo do Prof. Ricardo Oliveira da Silva

A AAP – Associação Ateísta Portuguesa teve recentemente o prazer de se fazer representar numa conversa online sobre o Ateísmo em Portugal e no Brasil. Esta conversa decorreu no dia 9 de Outubro no Canal de Youtube Ativistas Ateus do Brasil, com o objetivo de iniciar uma ponte entre as comunidades ateístas dos dois países.

Prof. Ricardo Oliveira da Silva

Desta conversa decorreu o contacto com o Professor Ricardo Oliveira da Silva que possui uma Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) e Mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). É Doutorado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Tem experiência na área de História, com ênfase em Historia das Ideias, Historiografia e teoria da História, História do Brasil republicano e História do Ateísmo. Atualmente é líder do Grupo de Pesquisa Ateísmos, Descrenças Religiosas e Secularismo: história, tendências e comportamentos, e faz parte do Grupo de Pesquisa História Intelectual, Produção de Presença e Construção de Sentido e do grupo História Intelectual e História dos Conceitos: conexões teórico-metodológicas. Esses grupos estão registrados no CNPq. É também membro do fórum acadêmico International Society for Historians of Atheism, Secularism, and Humanism (fonte).

Como autor prolífico na área do Ateismo, o Professor Ricardo Oliveira da Silva prontificou-se a disponibilizar aos nossos leitores algum do seu material sobre o tema, que aqui se reproduz.

A AAP agradece este gesto de incrível altruísmo que me muito ajudará a nossa comunidade a melhor compreender o ateísmo, em particular no Brasil.

15 de Outubro, 2024 Ernesto Martins

O Cristianismo não é a resposta; o Cristianismo é o problema – Parte 3/3

Nesta terceira e última parte do artigo reforço a tese de que o Cristianismo é mais um problema do que uma solução, usando, desta vez, dados que mostram o poder que esta religião tem de dividir os povos. Um olhar objectivo sobre o mundo actual, no que diz respeito em particular às condições de vida das populações nos países onde o Cristianismo é mais e menos dominante, permite também concluir que a religião não traz qualquer benefício para a humanidade.

Religião divide mais do que une
O poder da religião – especialmente os monoteísmos – de dividir os povos em lugar de os unir, não é uma novidade, estando plasmado em vários episódios da história. O que não deve surpreender, dado que é ao próprio Jesus Cristo que se atribuem as afirmações “Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada” [Mt 10:34] e, mais à frente, “Quem não é comigo, é contra mim…” [Mt 12:30]. O facto de muitos dos conflitos registados na história terem grupos beligerantes definidos em função de filiações religiosas é revelador da capacidade das religiões de dividir. Assim, católicos juntam-se apenas com católicos, protestantes com protestantes, muçulmanos com muçulmanos e hindus com hindus. Os conflitos nem sempre são explicitamente religiosos, mas a intolerância que divide diferentes comunidades religiosas é muitas vezes um produto das respectivas identidades religiosas.
O número astronómico de religiões existentes actualmente (só o Cristianismo conta com milhares de variantes [1]) é a prova evidente da capacidade da religião de dividir. A religião cristã tem um passado de conflitos sangrentos motivados em grande parte por diferenças teológicas que hoje parecem ridículas [2]. Só as doutrinas em torno da Trindade motivaram algumas das mais violentas perseguições a hereges nos primeiros séculos do Cristianismo. Hoje, diferenças doutrinais sobre a interpretação da Bíblia, sobre os sacramentos, sobre o papel dos clérigos e sobre as atitudes perante as mais variadas questões sociais, têm a capacidade de dividir os cristãos. Os católicos consideram que os protestantes terão a sua salvação comprometida por não respeitarem a autoridade do Papa. Os protestantes, por seu turno, acham que os católicos cometem um erro trágico ao adorar imagens e que a ideia da transubstanciação na eucaristia é uma grave blasfémia. Os cristãos ortodoxos consideram que os católicos estão errados, nomeadamente por pensarem que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho e não apenas do Pai e por ingerirem óstias sem fermento quando o correcto era que tivessem sido feitas com fermento. Isto só para nos mantermos dentro do Cristianismo. A religião Mormon (ou a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que não subscreve a doutrina da Trindade e considera três deuses separados), nos menos de 200 anos que conta de vida já se dividiu em diferentes seitas por causa de desentendimentos em torno da poligamia.
Não há dúvida de que as religiões dividem. Mas, vendo bem, estes conflitos e divisões não são de admirar numa actividade em que os credos centrais são extraídos ou inspirados em textos ambíguos, tradições difusas e revelações absurdas. O facto de pouco ser suportado em dados sólidos e argumentos racionais, e muito ser baseado na fé, torna os desentendimentos insanáveis. Sem uma base objectiva de evidências, o resultado é a divisão dos crentes em grupos e congregações separadas.
Hoje parecem haver também evidências do poder divisivo da religião ao nível das mentalidades. Segundo uma sondagem da Pew Research [3], a identidade cristã na Europa Ocidental está associada a níveis mais elevados de sentimento negativo em relação aos imigrantes e às minorias religiosas. Inquiridos que se autodenominam cristãos – quer frequentem ou não a igreja – têm maior probabilidade de expressar opiniões negativas sobre os imigrantes, muçulmanos ou judeus do que as pessoas sem filiação religiosa. Um outro estudo de 2022 [4] confirma que na Europa os cristãos tendem a expressar níveis mais elevados de sentimentos nacionalistas do que os nones. Pessoas sem filiação religiosa têm menor probabilidade de afirmar que a ancestralidade é condição necessária para a identidade nacional do que os que se autodenominam cristãos. A religião divide, de facto.

Religião não tem impacto positivo na sociedade
Que a religião é, na generalidade, benéfica para uma sociedade, é outras das ideias profundamente enraizadas na mente da população crente. As sociedades precisam da religião para prosperar, dizem eles. No entanto esta é uma crença mais baseada em wishful thinking do que num olhar objectivo sobre o mundo real. Se porventura se constatasse que as sociedades onde a vida é melhor são as mais religiosas, então poderíamos postular que a religiosidade é um factor determinante. O mesmo diríamos se as sociedades menos religiosas fossem bastiões de pobreza e crime. Mas o que se observa no mundo é precisamente o contrário.
Os países com a maior proporção de não crentes constituem as sociedades, em média, mais desenvolvidas, mais livres, mais saudáveis e mais pacíficas. Por outro lado as nações mais religiosas, as que mais orações dirigem aos deuses, são as mais violentas e opressivas e onde a qualidade de vida é pior em todos os aspectos. Os Relatórios do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (UNDP) calculam anualmente o chamado Índice de Desenvolvimento Humano (Human Development Index – HDI [5]), que quantifica o desempenho médio de uma sociedade com base em métricas como a esperança média de vida à nascença, a escolaridade, a literacia e o rendimento per-capita. O relatório de 2021 coloca no top 10 do ranking HDI (de um total de 191 nacões) países como a Suiça, Noruega, Islândia, Austrália, Dinamarca e Holanda, todos países onde os números de não crentes são dos maiores do mundo. Os 50 últimos países do ranking não apresentam números estatisticamente significativos de descrentes.
Um relatório da organização Save the Children, o State of the World’s Mothers Reports [6] publica regularmente o “Índice das Mães” (Mothers’ Index), que reúne os dados mais recentes sobre a saúde das mulheres, a saúde das crianças, o nível de escolaridade, o bem-estar económico e a participação política feminina, para classificar 179 países e mostrar onde as mães e as crianças se saem melhor e onde enfrentam as maiores dificuldades. No topo da lista dos melhores países para se ser mãe aparecem a Noruega, Finlândia, Islândia, Dinamarca e Suécia. No fim da lista aparecem Nigéria, Guiné-Bissau, Chad, Congo e Somália.
Segundo outras fontes [7], os países com a maior taxa de homicídios, onde a incidência do HIV é maior e onde as mulheres são mais oprimidas, são todos países muito religiosos. Finalmente também existem métricas para a felicidade e, mais uma vez, verifica-se que, em média, as sociedades mais felizes não são de todo as mais religiosas [8]. Os países do costume aparecem na lista daqueles em que os seus cidadãos são os mais felizes. Se considerarmos apenas os países mais desenvolvidos, os Estados Unidos sobressaem como o mais religioso mas também o país mais disfuncional, exibindo as maiores taxas de criminalidade, de doenças sexualmente transmissíveis, de gravidez e de abortos na adolescência. Foi a esta conclusão que chegou um estudo do investigador Gregory S. Paul [9].
Em conclusão, a correlação negativa existente entre a qualidade global de uma sociedade e a crença religiosa parece negar categoricamente a ideia de que as sociedades precisam de ser religiosas. Segundo a cosmovisão teísta, em que um deus omnisciente, omnipotente e sumamente bom responde às preces dos seus fieis, seria de esperar que a influência desse deus se fizesse sentir para o bem na vida desses fieis, e portanto nos locais onde eles vivem. Mas, objectivamente, não só essa previsão não se verifica como acontece precisamente o contrário.
É evidente que os problemas que afligem os países sub-desenvolvidos estão fortemente relacionados com os respectivos trajectos histórico-sociais, dependem de múltiplos factores e conjunturas complexas, e com certeza não caíram do céu pelo simples facto desses países serem religiosos. É provável que a religião seja endémica nestas sociedades pelo facto das populações pobres encontrarem nas crenças religiosas e nos rituais a consolação, o conforto e a esperança que lhes permite enfrentar estoicamente as dificuldades impostas pela insegurança das guerras, a sub-nutrição e as doenças. Portanto, não se pretende atribuir à religião a culpa de todos os males. No entanto o que estes cenários demonstram de forma conclusiva é que a religiosidade não é um ingrediente necessário na criação de sociedades onde as pessoas possam ser felizes e prosperar.
— EVM

Notas:
——
[1] https://www.gordonconwell.edu/blog/christianity-is-fragmented-why/
[2] Algumas das mais sangrentas acções militares exclusivamente entre cristãos: Cruzada Albigense (1208-49): 1000000 mortes; Guerras francesas entre católicos e protestantes (1562-98): 3000000 mortes; Guerra dos trinta anos entre católicos e protestantes (1618-48): 7500000 mortes. Ver: Matthew White, “The 100 Deadliest Episodes in Human History”, 2013.
[3] Pew Research Center May 29, 2018, https://www.pewresearch.org/religion/2018/05/29/being-christian-in-western-europe/. Segundo esta sondagem os países com o maior número de nones são os Países Baixos (48%), Noruega (43%), Suécia (42%), Bélgica (38%) e Dinamarca (30%).
[4] Key Findings From the Global Religious Futures Project, December 21, 2022, https://www.pewresearch.org/religion/2022/12/21/key-findings-from-the-global-religious-futures-project/
[5] https://hdr.undp.org/data-center/human-development-index#/indicies/HDI
[6] https://fsnnetwork.org/resource/state-worlds-mothers
[7] https://worldpopulationreview.com/
[8] https://www.worldlifeexpectancy.com/world-happiness-map
[9] Gregory Paul, “The Chronic Dependence of Popular Religiosity upon Dysfunctional Psychosociological Conditions”, Evolutionary Psychology, vol.7 nº3, pgs 398-442, 2009.

31 de Janeiro, 2024 João Monteiro

Pedir perdão

Em 2016 o presidente dos EUA, Barack Obama, visitou Hiroshima. Foi a primeira visita de um presidente norte-americano ao Japão depois da Segunda Grande Guerra (durante a qual, em 6 de Agosto de 1945, os EUA lançaram uma bomba atómica sobre Hiroshima destruindo a cidade e matando, instantâneamente, mais de 70.000 pessoas. Destruição atómica que se repetiu dias depois, em Nagasaki, causando mais de 60.000 mortos).

Estranhou-se que Obama não pedisse desculpa pelo facto de os EUA terem enlutado o Japão. Perguntado pelos jornalistas se pedia perdão ao Japão, Barack Obama respondeu que o objectivo daquela sua visita era “honrar todos os que morreram na Segunda Grande Guerra Mundial”.

Era aqui que eu queria chegar para dizer que pedir perdão por actos cometidos no percurso da História, se pode parecer um acto de contrição com alguma positividade pelo arrependimento demonstrado, já não me parece ter cabimento quando não passa de “uma acção puramente teatral”… e, no caso, também sem ressarcir o Japão pelos actos cometidos há mais de 70 anos… o que seria mais do que “teatro”… seria “fita”!

Também seria um pedido hipócrita, já que os actos bélicos dos EUA continuaram a ser praticados provocando sofrimento nas populações, como a História regista!

Os pedidos de perdão não eliminam os males provocados. O que é preciso é que aprendamos com a História e tenhamos inteligência e sensibilidade suficientes para não repetirmos tantos erros através do percurso que fazemos pelo mundo, escrevendo uma História da Humanidade nada dignificante.

Também a Igreja Católica, no seu Jubileu do ano 2000, pela voz do Papa João Paulo II, dirigiu dezenas de pedidos de perdão (a Deus!… Não à memória dos ofendidos!) dos quais destacarei uns poucos, respigados da imprensa da época: “pelos males provocados pela Igreja aos Judeus por parte do Papa Pio XII; pelo anti-semitismo no tempo de Mussolini; por todos os crimes cometidos pela Inquisição; por todas as vítimas abandonadas pela Igreja; pelos actos praticados pelo Vaticano contra os cientistas; por queimar vivos Giordano Bruno e João Hus; pelas divisões no seio das várias sensibilidades cristãs; pelas repressões aos Protestantes e Ortodoxos; pelos pecados cometidos contra o amor, a paz e os direitos dos povos, e pelos pecados cometidos com as mulheres, os pobres e os marginalizados; e, até, pela inoperância da Igreja perante o Ateísmo” (!). 

A Igreja Espanhola pediu perdão pela atitude nada evangélica demonstrada perante os elementos da ETA, e a Igreja da Argentina pediu perdão pelos pecados por ela cometidos durante a ditadura do general Videla. (Curiosamente a Igreja Católica Portuguesa não pediu perdão algum!… Nem, sequer, pelo mal que fez ao poeta Bocage).

Desde o início de 2000 até Junho de 2001, contabilizei 94 pedidos de perdão. E numa cerimónia litúrgica celebrada no Vaticano, o Papa pediu perdão pela soma de todos os pecados.

Pedidos de perdão que me parecem patéticos!

A Igreja, que se considera modelo moral, não devia tê-los cometido… mas cometeu-os! São factos históricos que o perdão panfletário não elimina. 

O importante é termos consciência do mal cometido e emendarmos procedimentos para que não tornemos a cometê-los.

Se assim se fizer, jamais haverá necessidade de se pedir perdão, vivendo-se em paz e de consciência tranquila.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

15 de Setembro, 2023 Onofre Varela

COMO SERÁ O FUTURO?

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Quando entramos no ano 2000, por ser uma data redonda e emblemática para os vaticinadores do futuro e da desgraça, ouvi e li que “este século será religioso, ou não será”. A frase é ambígua, à boa maneira das coisas que às Religiões pertencem. Desde logo importa saber o que se quer dizer com o termo “religioso”. Pode-se ser religioso sem ter fé numa divindade. E depois… o “não será”, significa o quê? Que o século pode não ser religioso?… Ou que não será século?!…

Nas conjunturas sociais graves, é comum os povos mais vitimados recorrerem ao guarda-chuva da fé para apaziguarem o espírito. É nesse sentido que a rotineira “volta a Deus” acaba por aparecer como tábua de salvação, sob uma forma ideológica que gera nos indivíduos mais dados à fé do que ao entendimento das realidades sociais, económicas e políticas, algum sentimento de segurança e consolo.

É uma característica do pensamento crente… de quem “vive por procuração”, enquanto mente cativa de uma entidade divina. Nesse sentido concordo com o escritor espanhol Gonzalo Puente Ojea, quando afirma ser “o ateísmo a situação intelectual mais coerente com a actualidade, porque recusa as atitudes de fidelidade a um deus que viola as exigências de discernimento da consciência, impedindo que o ser humano tome posse de si mesmo”. (Ateísmo y Religiosidad. Reflexiones sobre un debate. Editora Siglo Veintiuno. Madrid, 2001).

Os mesmos vaticinadores da desgraça também já afirmaram que o Islão irá dominar o mundo; que os árabes refugiados das guerras do Médio Oriente e da miséria dos países islâmicos africanos, invadiriam a Europa miscigenando-se connosco, e o futuro do mundo será islâmico (esperem aí…vou ali dar uma gargalhada e já volto! [não alinho com radicalismos, sejam rácicos ou outros]).

Eu não tenho nenhuma ideia do que será o futuro!… E os vaticinadores da desgraça, também não. Cada um pensa um futuro à sua medida, e por aí eu gosto de pensar que a Humanidade trilha o caminho da perfeição possível (mesmo tropeçando nas situações mais horríveis, como o terrorismo, a guerra e a sede de enriquecimento pela indústria do armamento e da agressão ao ambiente) e que será cada vez menos seguidora de religiões… mais agnóstica ou ateia.

Quando afirmo este gosto parece que estou a colocar-me ao nível dos religiosos e a assumir a minha costela de crente num futuro positivo. Porém parece-me ser um assumir de uma característica possível, porque está alicerçada na História. Os seres humanos de outrora eram bem mais religiosos do que os actuais… no Egipto faraónico os líderes políticos também assumiam a liderança religiosa. Depois da Revolução Francesa mudou-se o estado de graça da Religião e do paradigma das sociedades. Hoje as repúblicas e as monarquias europeias são laicas.

Comparativamente com a idade da Civilização, iniciada na Suméria cerca do ano 3000 aC, (o que lhe dá 5000 anos de existência), a Revolução Francesa (14 de Julho de 1789) aconteceu na semana passada; ainda cheira a pintado de fresco!… A Humanidade ainda terá de esperar tanto tempo quanto aquele que decorreu entre Ramsés II (tempo de Moisés) e a tomada da Bastilha, para que o apuro do pensamento prescinda da ideia de Deus e as igrejas possam encerrar por falta de clientela? Ou reciclarem-se em algo semelhante a prestação de consultas de psicologia?

Penso que o tempo em falta para se atingir tal apuro não será tão dilatado, porque a aprendizagem já conseguida acelerará o processo, iluminando consciências muito mais cedo, numa lógica de um futuro com dimensão humana mais dada ao raciocínio, abandonando o conceito de Deus… e não só; também abandonando conflitos armados que serão substituídos pela palavra na resolução de problemas.

Mas… esperar um futuro assim, tão positivo… também pode configurar um sentimento de fé!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV 

14 de Maio, 2023 João Monteiro

Jesus, onde estás tu?

Texto da autoria de Cláudio Tereso.

Olhando para trás é curioso pensar que foi a busca por Jesus que, em parte, me moldou e fez de mim o que sou hoje. A minha memória não é grande coisa, por isso não posso garantir que tenha sido o encontro com Jesus que me tenha mudado radicalmente, ou mesmo se essa mudança existiu, mas do que me lembro foi. Também é sabido que as memórias não são de confiança e que vão sendo reescritas na nossa cabeça à medida que puxamos por elas; portanto qualquer pormenor que tenha estado ocultado de mim nos últimos anos e que me venha, como por magia, à memória tem uma grande probabilidade de ser falso. Por isso, correndo o risco de não se ter passado exactamente assim, vou contar a estória como me ocorre.

Comecemos pelo início. No início deus criou os céus e a terra, ao que consta. Mas este não é o início que queremos. Tentemos de novo:

Sou o mais novo de quatro filhos. Os dois? ou terão sido os três? mais velhos foram submetidos à praxe da catequese e rituais afins mas quando chegou a minha vez, a minha mãe devia estar farta de os aturar a reclamar e já não teve energia para me submeter a esses costumes tribais. Também pode ter sido por termos mudado de local de habitação o que nos deixou mais longe da igreja. Não sei. Só sei que nunca vi nem nunca me apercebi de uma coisa chamada catequese. Eu não ia, não me lembro de ter amigos que fossem, era algo completamente fora do meu conhecimento. Na nossa casa não se ia à missa nem se lia muito, por isso cresci como se cresce no campo longe de todas as influências religiosas, políticas ou intelectuais.

Era um verdadeiro Tom Sawyer e pouco mais que brincar na rua me interessava. À medida que fui crescendo e até aos 18 anos quando fui para a tropa pouco mudou. Aluno razoável, ingénuo com amigos ingénuos, sem gostos musicais, culturais ou o que quer que fosse. Ia à escola, vinha da escola, jogava à bola na rua e lia livros da Marvel e do Tio Patinhas. Tenho uma memória muito forte de um momento em que a minha tótózisse é quase palpável: Um colega ia fazer o interrail. Coisa rara! Foi a única vez que ouvi falar nisso antes da minha idade adulta e na altura pensei: wtf! Corrijo, wtf ainda não existia. Hhmmm? Vai viajar de comboio pela Europa? Para quê? Qual o interesse disso? Esta malta com dinheiro tem ideias muito parvas. Foi assim que me mantive até à minha busca por Jesus. Quer dizer, não sejamos mais papista que o papa e deixemos os dramatismos; não tenho memória da evolução de todas as características que fazem de mim o que sou hoje e que me colocam a milhas do que fui até ao início da idade adulta, mas tenho a forte convicção que foi a busca pelo “senhor” que me deu o espírito crítico que acabaria por me trazer até ao activimo nas comunidades céptica e ateia, características que são uma parte importante da minha persona.

Intervalo! Deixem que vos diga que tenho zero interesse em convívios de amigos de infância ou adolescência. Na altura eramos todos putos parvos com um interesse em comum: a parvoíce. Cada um de nós seguiu o seu caminho e evoluiu em direções opostas. O que raio temos em comum agora? Claro que com alguns ainda existem interesses comuns. Com esses mantenho ligação. Os outros não me interessam. Há uma grande probabilidade de terem ido em direções incompatíveis com a minha. Dispenso correr riscos para rever pessoas que não são quem foram e que conheci quando era quem não sou. Vivam os amigos novos compatíveis com o eu actual. Fim de intervalo.

Voltemos ao cerne da questão. Algures nos vintes cruzei-me com o ‘senhor’. Era na altura apateista, ou seja, completamente ignorante de questões de religião. Não sabia, não queria saber… erro! Não querer saber precisa que exista algo para saber e que nos recusamos a saber, eu nem sabia que havia coisas para saber. Considero que o apateismo é, no que toca a crenças religiosas, a melhor solução para uma sociedade. Uma sociedade onde a questão de deus nem sequer é questão da mesma maneira que nas sociedades actuais não se coloca a questão se o sol vai nascer amanhã.

Bem, dizia eu, estava muito bem eu no meu apateismo quando um acumular de referências a Jesus me chamou a atenção. Claro que eu sabia o que eram os padres, a igreja Católica, jesus etc. etc, simplesmente não ligava nenhuma da mesma maneira que um gato ignora … vá.. tudo. Mas a determinada altura fiquei curioso: mas afinal o que há de tão especial nessa personagem para tanta gente falar dele como se ele fosse.. digamos… deus? Eu sabia que era o gajo na cruz e que tinha morrido crucificado, nascido de uma virgem e essas coisas básicas que até os católicos sabem, mas eu queria perceber um pouco mais. Porque essa loucura pelo moço?

Então o que decidi fazer? Ler um livro sobre o assunto, claro. O horror dos horrores! Ler um livro sobre Jesus Cristo? Um livro assim sem mais nem menos? Daqueles que se compram numa livraria? Sem o selo de aprovação da Igreja? A desgraça estava iminente!

Não me lembro onde o comprei nem que livro era, seria algo como “Jesus: quem realmente foi”. Também não me lembro do conteúdo, mas devia falar das inúmeras versões dos evangelhos, dos evangelhos ignorados e das más traduções e disso eu lembro-me! Ficou marcado a ferro e fogo na minha memória e fez emergir em mim uma bomba de incredulidade. Porra! Como é possível uma asneira destas? Anda tudo doido com este gajo e afinal um dos pontos mais vincados da estória dele é uma má tradução? Fiquei automaticamente ateu. Zás! Foste! Essa pequena descoberta fez de mim um super-ceptico. Raios! Se isto é mentira, o que mais será? Se anda toda a gente enganada com isto, com que mais andarão? Não sei se foi bem assim, mas é assim que me lembro. Realço que ser ateu nada ou pouco tem a ver com acreditar ou não na estória de Jesus Cristo, mas na altura, assim como muitos católicos hoje em dia, eu não sabia isso.

Desde essa altura já li a bíblia (coisa que curiosamente poucos católicos se interessam em fazer), li inúmeros livros e artigos científicos sobre o assunto, tirei cursos online, enfim uma perda de tempo gigantesca num assunto que não merece o tempo que lhe dediquei. Estou a brincar, claro que merece. Afinal é baseado nas estórias deste moço Jesus que a Igreja Católica e outras que tais continuam a tentar mandar nas nossas vidas.

E porra, é fascinante! Um dos maiores impérios que já existiu tanto em extensão geográfica como cronológica assenta numas historietas da carochinha que pouca ou nenhuma correspondência com a realidade têm. Não me digam que não é o golpe do século? que digo? Da história da humanidade!

E afinal qual foi a grande má tradução que me fez ver a luz? Foi uma coisa tão simples: no antigo testamento há uma passagem que fala em jovem e traduziram como… virgem.

Porra, afinal a mãe do gajo não era virgem, afinal era um gajo como outro qualquer, anda tudo parvo por coisa nenhuma! Pensei. Hoje em dia dou muito pouca importância a essa má tradução, os problemas com a bíblia são tantos que isso é apenas um pormenor.

Graças a esses “problemas” sou, hoje em dia, adepto da teoria do mito de jesus, ou seja que nunca existiu uma pessoa que correspondesse minimamente ao que é descrito nos evangelhos. Foi simplesmente a invenção de um herói por um povo oprimido como aconteceu tantas outra vezes na história, como por o exemplo o famoso rei Artur cujas lendas deram fama ao cálice da última ceia, o famoso Santo Graal.

Bem, isto tudo para chegar aqui, ao que queria efectivamente escrever e que, por artes mágicas, ficou um bocado maior. Podem ignorar tudo o que está para trás. Este texto devia começar assim:

Os evangelhos contam a estória de um tal Jesus de Nazaré, deus e filho de deus que foi crucificado e ressuscitou 3 dias depois. Tirando o que nos dizem os evangelhos o que sabemos exactamente sobre esses acontecimentos? Usar os evangelhos para confirmar a existência de Jesus é como usar os livros escritos por J.K.Rowling para confirmar a existência de Harry Potter. O que dizem os historiadores da altura? Porque é que uma personagem, tão importante segundo os evangelhos, é praticamente ignorada por todos os outros autores? Quem escreveu os evangelhos? Sabemos que os nomes a que estes foram atribuídos foram acrescentados posteriormente. Sabemos que há más traduções, sabemos que há partes acrescentadas posteriormente, sabemos que há muitos mais evangelhos que não foram consideramos verdadeiros porque continham relatos que não interessava a quem mandava na altura. Enfim sabemos muitas coisas que tornam toda a estória muito pouco credível.

Estes assuntos são alvo de muita informação na Internet, mas pouca coisa em Português de Portugal, lacuna que foi finalmente resolvida. O amigo Paulo no seu canal Quem Escreveu Torto por Linhas Direitas fez um vídeo de uma hora sobre o assunto. Vale a pena ver, mas fiquem avisados: o video levanta muitas perguntas, não só devido à quantidade de informação que apresenta, mas também porque, na minha opinião o Paulo dá como certas conclusões que não estão bem justificadas no video e que eu me sentia mais confortável que fossem apresentadas com menos certezas.

Vejam aqui: Terá existido Jesus da Nazaré

15 de Agosto, 2022 Carlos Esperança

Salman Rushdie – Vítima do fascismo islâmico

Os media iranianos celebram o ataque, identificam o agressor do escritor como seguidor do Hezbolá, referem a alegria popular pelo esfaqueamento repetido da vítima e acusam o escritor e os amigos de responsáveis pela tentativa de homicídio.

Não faltam manifestações de júbilo nas ruas islâmicas onde o ocaso da civilização árabe deu lugar à radicalização da religião, onde coexistem a pobreza extrema e a opulência, e o único bem que todos os homens fruem, de que não prescindem, é a posse de mulheres.

É fácil atribuir às mulheres o dever da revolta ou afirmar que são felizes na humilhação, mas é inaceitável defender o respeito das tradições e da fé que não toleram divergências.

Rushdie tinha 42 anos quando o seu romance, «Os Versículos Satânicos», foi declarado blasfemo pelo anacrónico Aiatola Khomeini. Condenou-o à morte, 1989, numa fatwa que despertou a fé dos muçulmanos e excitou a devoção, o ódio e a demência coletiva.

Liberdade religiosa ou política é o direito de ser a favor, indiferente ou contra. Não é o simples direito à genuflexão, ao beija-mão, ao dobrar da espinha. Quem aceita dogmas acaba de joelhos ou de rastos, a lamber o chão ou a mão de um clérigo.

A blasfémia e a apostasia são crimes medievais incompatíveis com os direitos humanos, nomeadamente a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. Esta última só existe se permitir abandonar a fé, mudar de religião, desinteressar-se ou criticá-la. A blasfémia é um crime sem vítima, uma ofensa a Deus, no jargão religioso, sem que o ofendido passe procuração para processar ou punir o autor da alegada ofensa.

A liturgia da fé é a «ordem unida» dos exércitos, um exercício que nos leva a abdicar da razão pelo passo certo. É preferível ferir os calcanhares do que acertar o passo ao toque do tambor ou à litania da religião.

A liberdade conquista-se quando conseguimos dizer não ao caminho que rejeitamos, às ideias de que discordamos e aos símbolos que repudiamos e, quando formos livres, dar-nos-emos conta de que só atingiremos a liberdade quando todos a conquistarmos.

Independentemente das motivações do frustrado homicida não se deve esquecer que há um prémio de cerca de três milhões de euros, criado por uma instituição islâmica para o assassinato do notável escritor inglês de origem indiana.

O direito à troça, à ironia e ao sarcasmo é tão respeitável como o direito à fé e à liturgia. A blasfémia é a catarse que emancipa e liberta.

Uma religião que manda matar quem não a respeita e quer obrigar o mundo a converter-se, não é uma doutrina salubre, é um frasco de veneno destapado.

Apostila – Quando o Aiatola Khomeini proferiu a fatwa contra o Salman Rushdie pelo abominável crime de…ter escrito um livro, teve do Vaticano, do arcebispo de Cantuária e do Rabino Supremo de Israel a compreensão pela sua piedosa demência.

O silêncio dos líderes islâmicos e dos dignitários atuais das religiões referidas é um ato de profunda e iníqua cumplicidade. Até ao momento desconheço qualquer reação deles ao cobarde atentado.

25 de Março, 2022 João Monteiro

Sobre a consagração da Rússia e da Ucrânia

Hoje teve lugar a Consagração da Rússia e da Ucrânia ao Sagrado Coração de Maria, numa cerimónia que teve lugar em simultâneo no Vaticano e no Santuário de Fátima. O Papa pediu a todos os bispos que estivessem presentes.

O padre Carlos Cabecinhas, reitor do Santuário de Fátima, explica do que trata esta iniciativa: “Um Ato de Consagração significa pedir a paz como dom de Deus, mas pedir também a Deus que toque o coração dos decisores políticos, para que encontrem caminhos justos para a solução dos problemas, que nunca podem ser a guerra. A guerra nunca é solução”.

Enquanto o papa presidia à consagração no Vaticano, o cardeal polaco Konrad Krajewski presidiu a cerimónia em Fátima. No seu discurso, o cardeal afirmou que a motivação desta iniciativa é “expulsar o demónio da guerra” e que os católicos têm “uma arma sofisticada: a oração, o jejum e a esmola” (…) “Convido-vos a usar esta arma e vereis que teremos um milagre”.

O Secretariado Geral da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) fez ainda um apelo: “Pede-se que todas as paróquias, comunidades, institutos de vida consagrada e outras instituições eclesiais assumam esta intenção de consagração nas celebrações desse dia”. E agora faço uma pergunta: Qual foi a personalidade pública e política que respondeu a este apelo? Provavelmente adivinharam: o senhor Presidente da República, considerando que o evento é um apelo à paz universal. O mesmo não foi sozinho, tendo o corpo diplomático também sido convidado.

Enquanto o Presidente estava num ato que só pode ser entendido como simbólico, porque na realidade é ineficaz se atendermos a uma relação de causa-efeito, os Chefes de Estado e de governo dos países-membros da NATO estiveram reunidos para discutir a invasão do governo russo à Ucrânia.

12 de Fevereiro, 2022 Carlos Esperança

A laicidade e a liberdade religiosa


A laicidade é uma exigência da liberdade religiosa, condição para que todos possam ter a sua crença, descrença ou anti-crença. Todos somos ateus em relação aos deuses dos outros, e os ateus só o são em relação a mais um.

Numa sociedade democrática todos os crentes devem ver defendido o direito à fé que perfilham e aceitar iguais direitos aos fregueses de outra fé ou de nenhuma. O Estado só pode cumprir cabalmente a função que lhe cabe se for escrupuloso na neutralidade que deve assumir, se ao Estado estiver vedado o direito de exercer qualquer poder religioso e às Igrejas o exercício de qualquer poder político.

A França, tal como Portugal, depois do 25 de Abril, garante a liberdade religiosa como direito constitucional. Quem conhece a história sangrenta das lutas religiosas na Europa, sabe que a paz só foi possível com a separação do Estado e Igrejas e a garantia da neutralidade religiosa dos Estados. A sua longa história de violência religiosa levou a França a adotar o forte compromisso com a manutenção de um setor público totalmente secular.

A lei de 9 de dezembro de 1905, em vigor, que aboliu a Concordata napoleónica e repôs a herança iluminista, determina:

Artigo 1º – A República assegura a liberdade de consciência. Ela garante o livre exercício dos cultos;

Artigo 2º – A República não reconhece nem contrata nem subvenciona qualquer culto.

Em 1905, a neutralidade religiosa imposta contra a vontade da Igreja católica, revelou-se de grande utilidade quando, além dos protestantes, muito minoritários, a concorrência era insignificante.

Hoje, perante religiões hostis ao ethos civilizacional europeu, herança do Renascimento, Reforma e Iluminismo, a Europa só pode preservar o legado democrático da Revolução Francesa e conter o proselitismo belicista de crenças totalitárias que a ameaçam, com as exigências da laicidade, e tratar os desmandos religiosos como casos de polícia.

Não foi por acaso que Emmanuel Macron, a propósito do 5.º aniversário dos atentados contra o Charlie Hebdo, nos tradicionais votos à Imprensa, declarou a partir do Palácio do Eliseu: «É importante que o nosso país não ceda a esta lapidação e à ordem moral, e que continuemos a criticar todas as formas políticas e todas as religiões. Somos um país onde a liberdade de blasfémia existe e queremos continuar a sê-lo». *

Em Portugal o anacrónico delito ‘blasfémia’, de sabor medieval, ainda existe no Código Penal. O bom-senso dos juízes privilegia a liberdade de expressão, mas é tempo de o abolir.
* Courrier Internacional n.º 288, fevereiro de 2020, pág. 8.

29 de Janeiro, 2022 Carlos Esperança

O sangue de João Paulo II, a publicidade e a santidade

Em janeiro de 2014, os media anunciaram o roubo «de valor incalculável» de uma relíquia. A polícia italiana lançou uma formidável operação, com a ajuda de cães treinados, para encontrar o frasco roubado com sangue de João Paulo II, com uma cruz de uma igreja medieval.

Só havia, em todo o mundo, três frascos com sangue de João Paulo II, papa a canonizar em abril desse ano, momento em que a raridade da relíquia atingiria valores máximos. A imprensa foi omissa quanto ao treino dos cães que ajudaram a polícia, sem dizer se eram adestrados a descobrir frascos, sangue ou cruzes. Esperava-se que a relíquia, tão valiosa, fosse recuperada das mãos dos ladrões. Outros precisavam dela para as rotas do turismo pio junto de um amplo recipiente para o óbolo, sem correrem riscos.

Que morbidez é essa que fez sangrar um papa para alimentar o mercado das relíquias? Se a moleza da fé embota a razão, por que motivo não lhe tiraram uma dose maior para baixar o preço? Na bolsa da fé, como na de outros valores, a escassez está na base da subida dos preços, mas, tratando-se de um bem intangível, a canonização não foi alheia à valorização da relíquia.

João Paulo II teve como profissão e estado civil a santidade em vida. Quanto à bondade, dividem-se as opiniões. Em relação ao negócio sinto uma verdadeira repugnância, pela exploração de um órgão do morto e fico a pensar, no meu pensamento de incréu, quanto valerão as vísceras e outros órgãos se, à semelhança do sangue, lhos furtaram à sorrelfa para alimentarem a devoção necrófila dos que julgam que a visita a uma relíquia conduz o peregrino ao Paraíso.

É preciso acreditar muito na santidade e duvidar ainda mais da inteligência.

Apostila – Ignoro se o frasco de sangue foi recuperado.