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Categoria: Literatura

27 de Maio, 2010 Carlos Esperança

O exorcismo da Celeste (Crónica)

Em terras da Beira, depois da guerra, a gratidão para com a Senhora de Fátima, pela afeição a Portugal, estendia-se ao Senhor Presidente do Conselho por nos ter livrado do conflito. No Cume sobrava piedade e faltava comida. Estavam no fim os anos quarenta e os Portugueses longe de começarem a ser gente.

A Celeste morava ao cimo do povo, sozinha, e cismava que se matava. Via-se que não regulava bem da cabeça e adivinhava-se a fome que a apoquentava. Suspeitaram os vizinhos de mau-olhado e a Ti Catrina, calhada nas benzeduras para tal moléstia, já a tinha ido visitar com outras mulheres embiocadas no xaile e os rostos sumidos na copa de enormes lenços pretos. Das conversas delas nada se disse mas ouviu-se na rua a ladainha:

«Dois to deram, três to tirarão,
Foi S. Pedro e S. Paulo e o apóstolo S. João.
Sant’Ana pariu Maria, Maria pariu Jesus;
Assim como isto é verdade,
Livre este corpo de ares, olhares e todo o mal.
Em louvor de Sant’Ana e Santa Iria…
Padre-nosso, ave-maria…»

Muitos padre-nossos e ave-marias depois, sem abrandar o mal, as mulheres mais velhas concluíram que deviam ser espíritos que atenazavam a bendita alma da Celeste, tão temente a Deus que ela era, mas nestas coisas de espíritos ruins são estes que escolhem a morada e, embora a oração lhes dificulte a entrada, está provado que não é intransponível a barreira.

A adensar a suspeita ouvia-se na habitação, durante a noite, o barulho de máquina de costura, que não havia, a trabalhar, a perturbar o sono e a aumentar a angústia. À porta juntavam-se pessoas vindas da igreja a ouvir o som que os espíritos produziam. Os poucos que não ouviram, apesar da atenção e do silêncio, conformaram-se com a deficiência auditiva e renderam-se à maioria.

O Senhor Padre pode ter desconfiado do diagnóstico, o Senhor António Bernardo dizia que ela não batia bem da bola, podia até ser dos espíritos, a senhora professora aconselhou um médico, que disparate, o que sabe um médico destas coisas e onde é que o há, mas o povo na sua infinita sabedoria já tinha o veredicto, eram espíritos, só podia ser, falava-se de uma avó falecida há muitos anos, a voz tinha sido reconhecida, faltaram-lhe algumas missas ao trintário na encomendação da alma, não se perde nada em benzer a casa e deixar algum latim – conformou-se, acossado, o Padre Pires –, dizem-se as missas em dívida e logo se verá.

A Celeste é mulher e é destino das mulheres serem possuídas, os espíritos malignos aproveitam e, depois de entrarem, são difíceis de expulsar. É um combate para senhores párocos, ou mesmo para um reverendíssimo bispo se as posses da vítima e a malignidade o aconselham. Pouco avezado a tais pelejas, mas com habilitações canónicas e compleição adequada à luta, bem se esforça o padre a desalojá-los. Quem julgue que a força da cruz e do divino devem bastar não conhece os espíritos e o furor que transmitem às mulheres possessas, levando à exaustão o exorcista que não raro precisa de várias tentativas para se fazer obedecer. Fracassa e fica extenuado, à primeira, o Padre Pires, valendo-lhe a gemada com vinho e açúcar que o aguarda, enquanto a ceia e o breviário lhe não retemperam as forças e devolvem a serenidade.

A Celeste não melhora. Continua a ouvir vozes que desconhece, definha. Alguns dias após, no regresso do Carapito, onde tinha ido levar o viático a um moribundo, volta o Padre Pires à peleja com o maligno. Pode ser que na vez anterior se tenha entupido o hissope, avariado o crucifixo ou faltado à água a bendição, quem sabe, o Senhor Prior não costuma partilhar as dúvidas, se dúvidas assaltam o ministro de Deus, isto é um incréu a pensar, a força da fé move montanhas, sempre ouvi dizer, a Celeste pode ter perdido a fé com a fraqueza, e sem fé não adianta, é um esforço inglório, o certo é que o Senhor Padre volta a entrar naquela casa, se pode chamar-se assim ao sítio, mal nunca faz, Senhor eu não sou digna de que entreis na minha morada, isto é uma forma de dizer, a Celeste refere-se a Deus que está em toda a parte, mas quando vem acompanhado do seu representante há-de infundir maior respeito, as pessoas humildes dizem estas coisas, o Senhor Padre mergulha bem o hissope, asperge-o com vigor, desenha cruzes, vai-se ao demo com o latim e as mãos, põe as pessoas a rezar o terço que a Irmã Lúcia recomenda contra o comunismo, que também resulta com os espíritos, tudo obra do demo, deixa a reza para os paroquianos e sai da refrega exausto à procura da gemada com vinho, açúcar e nódoas para a batina, sem saber se os espíritos encurralados no corpo frágil obedeceram à ordem de expulsão, onde resistiam acossados à parafernália de alfaias sagradas e pias intimações.

As pessoas esperam na rua alheias ao perigo de serem apanhadas para refúgio dos espíritos em fuga. Nessa noite a máquina de costura inexistente permanece silenciosa e quieta, calam-se as vozes das almas penadas, a Celeste dorme bem pela primeira vez em muitos dias, depois da canja que lhe levaram. Se os espíritos não saíram estão debilitados.

A Celeste, com pouco alento, é certo, volta à horta e à igreja, o exorcismo resulta. Finou-se algumas semanas depois, completamente curada e liberta de espíritos malignos…

in Pedras Soltas

2 de Abril, 2010 Carlos Esperança

Homem armadilha de deus armadilha de Homem (Crónica)

Por
Sílvia Alves

– E tu quem és?
– Eu sou filho de deus.
– Mau!
– Sou! E estou cansado de ser. Cansado das dúvidas, das gargalhadas, de levar com a porta na cara!
– Meu filho, a fé é uma coisa extraordinária mas nem sempre funciona: uns têm, outros fingem, uns vêem caminho outros vão atrás. Enganam-se uns aos outros, sempre pude contar com esses. Só não contei que tu crescesses, que tu próprio duvidasses e que a tua mãe se fartasse destes dois mil anos de sombra. Ela era feliz com esta história de nasceres em cada Dezembro, ser virgem, mãe…
– A chorar a minha morte em cada Primavera. Feliz? Condenada. Felizmente, desde que lhe enviaste o Gabriel, sabe mais de anjos que tu próprio. E achas que a minha vocação é o teatro? Figurante nu, numas palhas? Ainda hoje tenho alergia. E o suplício de, tímido como sou, andar por aí a falar com toda a gente. E a farsa da morte, julgas que não dói? Sinto dores nas mãos e nos pés, ao ver-me pregado em cruzes por todo o lado. Estou farto!
– A morte são apenas três dias.
– Pai, estou farto das tuas alucinações! Com a idade podias ter juízo.
– Desistir, queres tu dizer? Depois de todo o trabalho que tive? Não foram apenas sete dias da estreia, foi uma eternidade a pensar a encenação! Meu filho, porque me abandonas?
– Porque posso. Vou tomar uma mulher, levá-la ao céu como se não houvesse deus neste mundo nem no outro, apenas homens e mulheres.
– Não podes levar pecado para o céu.
– Não há céu sem pecado. Tu sabes isso melhor que ninguém.
– Achas que eles estão a gostar da peça?
– Sei lá, estão tão calados…
– Estes assuntos da religião são muito delicados.
– Está muito escuro. Aqui deste lado não se vê nada.
– Não me convém acender mais luzes, resulta melhor na penumbra.
– Qual é a próxima peça?
– É a mesma, só mudam os actores.
– Devias fazer algo novo.
– Então, tu dizes ser filho de deus?
– Serei, mas já nem eu tenho fé!
– Eu acredito em ti.
– E tu quem és?
– Eu sou deus.
– Mau!
– Sou! E estou cansado de ser. Cansado das dúvidas…

1 de Abril, 2010 Carlos Esperança

De um sócio da AAP: Mais um livro sobre ateísmo

O autor pretende demonstrar e analisar as muito relevantes diferenças existentes entre a doutrina da Igreja de Roma quando do seu início e a actualidade, relacionando-as como consequência da necessidade da sua adaptação à permanente  evolução dos padrões culturais das sociedades,  provenientes da sua evolução técnico-científica, e da perca pela Igreja, ao longo dos tempos, do poder necessário a uma obrigatória aceitação dogmática das suas decisões.

Desta forma, aparecem importantes contradições no discurso dos seus representantes, descredibilizando a Instituição, pois são postas em discussão temas base da sua construção doutrinal, como o Pecado Original. Mais ainda, os planos do Criador são objecto de totais ‘fiascos’, como a actuação do Homem, a revolta dos Anjos, o aparecimento do Demónio e do Inferno, e, mesmo, os incompreensíveis desvios religiosos verificados com o Seu Povo Eleito. Sem esquecer a tardia introdução da Morte na vida do Homem, e a autorização de Deus para as criaturas se poderem comer reciprocamente. Ou seja, um Deus supremamente bondoso e justo, acaba por criar um mundo com um grau de extrema crueldade.

Curiosamente, o material utilizado é, predominantemente, de origem católica, como a Bíblia Sagrada, o Catecismo ou obras do Padre Manuel Bernardes e Padre António Maria Bonucci.

Continuando, um passo importante na vida de Deus, foi  a sua formação na actual versão trinitária, por obra e graça de um imperador romano, Constantino, por motivos políticos. Conclua-se, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, apareceram apenas no século IV, e este acontecimento foi objecto de cismas, excomunhões e mortes, que, é entendido, envergonhariam qualquer instituição de segunda ou terceira ordem. Esta actuação dos seus representantes na Terra tem o correspondente seguimento nos séculos seguintes, e até aos dias de hoje, e é sumariamente apreciada em variados aspectos , embora de forma a poderem tirar-se as devidas conclusões, nada edificantes para o Papado e seus acólitos.

É, no final, analisada a perspectiva do Futuro em duas alternativas, a ‘científica’ e a ‘religiosa’, dando ao leitor, como aliás noutros momentos do livro, a possibilidade de fazer a sua opção.

Em conclusão, é uma obra que pretende responder a questões frequentemente colocadas, como se pode ler na sua contra-capa :
“Deus existe? Deus tem de existir para a compreensão do Universo?
A Criação foi obra de um Deus justo e misericordioso?
O Homem é a obra-prima da criação de Deus?
É aceitável a existência do Inferno e do castigo eterno?
Quais as causas da revolta dos Anjos, criados pelo Senhor?
Os milagres ‘oficiais’ são credíveis?
A actuação da hierarquia da Igreja de Roma teve dignidade ao longo dos séculos?
As religiões foram benéficas para a Humanidade, ou constituíram um travão ao seu desenvolvimento?
As respostas a estas questões são matéria de Fé, ou devem basear-se na Razão?

Estas e outras importantes questões são abordadas nesta obra de uma forma que se pretendeu tão objectiva e lógica quanto possível, tentando fornecer ao leitor, por meio da apresentação de pontos de vista opostos, os elementos indispensáveis à formulação da sua própria opinião.”

15 de Dezembro, 2009 Carlos Esperança

Citação

Nasce um deus. Outros morrem. A verdade

Nem veio nem se foi. O Erro mudou

(Fernando Pessoa)

12 de Novembro, 2009 Carlos Esperança

Casamentos homossexuais e direitos individuais (Crónica)

Recordo-me bem dos tempos do liceu, quando as hormonas nos impeliram para o bordel da cidade e estreámos a vida sexual pela mão, e o resto, da saudosa e experiente Libânia ou de alguma recém-chegada. O ritual iniciático era feito com medo da polícia. A nossa menoridade podia conduzir a meretriz à prisão e levar-lhe a multa as parcas economias.

Depois era o gozo da transgressão, mais pelo prazer de que os outros soubessem onde já íamos do que pelo deleite fruído onde fôramos.

Lembro o orgulho das prostitutas, com a caderneta que as creditava como profissionais, depois de o Dr. Pereira da Silva, Subdelegado de Saúde, confirmar na revista semanal a ausência de doenças que lhes impedissem o exercício do múnus nas casas da Rua Poço do Gado, a poucos metros do Largo de S. Vicente, na pia cidade da Guarda.

Não me recordo de coimas mas lembro-me de saltos atléticos pela janela das traseiras ao som do assobio do voluntário que ficava de plantão à polícia, normalmente um magala, atento à ronda militar e, por solidariedade com os estudantes, à PSP.

Era um tempo em que o amor era proibido, o puritanismo era indulgente para os rapazes e ferozmente repressivo para raparigas. As aulas de Religião e Moral eram um arremedo de educação sexual onde o padre Cabral e o padre Inácio alertavam para a cegueira e a tuberculose provocadas pela masturbação, para a virtude da castidade e o perigo da leitura dos livros interditos, referidos no «O Index Librorum Prohibitorum», catálogo de livros actualizado pelo Vaticano, e cuja leitura garantia as profundas do Inferno.

De todos os interditos, da moral que nascia na sacristia e desaguava na sarjeta das aulas de Moral, dos preconceitos e superstições, da violência do tempo e das gentes, recordo a sanha feroz contra os homossexuais, então chamados paneleiros, por ódio e por não ser ainda popular a palavra gay.

Na Guarda havia um que era conhecido, um homem amável e tímido, assustado, sempre à espera do perigo iminente, o Sr. Agostinho, de quem as pessoas se afastavam ou que bandos de energúmenos procuravam, para lhe dar uma sova. Às vezes aparecia com o corpo dorido e a face cheia de nódoas enquanto os delinquentes se gabavam da façanha num intervalo de aulas, no liceu. Nunca assisti a um gesto de censura ou a uma única palavra de piedade em defesa da pobre vítima dos fanáticos que lhe esmurravam a cara e o faziam sangrar por dentro.

Algumas vezes assisti à combinação de sovas a um ou outro condiscípulo acusado de tão infamante comportamento sexual e se nunca participei em tão bárbaras expedições punitivas devo-o mais ao medo às sanções domésticas e ao reitor do que aos escrúpulos morais, mas cresci a ruminar uma explicação para tal violência, para tão ignóbil insulto à liberdade individual, apesar de os tempos não serem favoráveis a quaisquer liberdades.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, era ainda recente e ignorada em Portugal. As diferenças eram aberrações a merecer castigo e anomalias a esconjurar.

Foi longo o caminho andado mas, algures, num recanto de Portugal há ainda resquícios do Antigo Testamento que passaram de geração em geração e levaram à dissimulação da orientação sexual de muitos infelizes aterrados com a fúria dos guardiões da moral. A vontade divina foi sempre a desculpa dos que fazem da intolerância profissão de fé e dos que temem tornar-se naquilo que odeiam.

Quantos criminosos não nasceram do medo e da violência de que foram vítimas? Hoje, nas escolas, os professores estão atentos a um fenómeno que sempre existiu mas deixou marcas indeléveis em muitas vítimas – a violência física ou psicológica, intencional e reiterada, praticada por um ou mais alunos, com o objectivo de assustar ou agredir outros alunos, incapazes de se defenderem. Há até um termo técnico para designar esse fenómeno – bullying – mas enquanto não houver percepção da violência homofóbica, previnem-se agressões físicas e verbais por outras razões e deixa-se à solta o bullying homofóbico que destrói a felicidade e o amor-próprio de todos os jovens que têm uma orientação sexual minoritária.

Por isso é tão importante eliminar a discriminação sexual com uma medida legislativa que devolva aos homossexuais o direito à felicidade sem constrangimentos e o escárnio que os persegue.

À memória do Sr. Agostinho, afável e honrado zelador do museu da Guarda, à guisa de reparação da vergonha e das tareias, das dores do corpo e do espírito, a legalização do casamento de indivíduos do mesmo sexo é a justiça póstuma à vítima com a qual não tive a coragem de me solidarizar.

28 de Outubro, 2009 Raul Pereira

Momento de poesia

A boa e descansada vida que levam os nossos frades-pios, digna de inveja por todas as considerações

Frade


Desde que nasce o sol até que é posto

Governa o lavrador o curvo arado,

E de anos o soldado carregado

Peleja, quer por força, quer por gosto:


Cristalino suor alaga o rosto

Do barqueiro, do remo calejado;

Do cascavel ao dente envenenado

Anda o rude algodista sempre exposto:


Trabalha o pobre desde a tenra idade;

O destro pescador lanços sacode

Para escapar da fome à atrocidade;


Todos trabalham, pois que ninguém pode

Comer sem trabalhar; somente o frade

Come, bebe, descansa e depois fode.


Antologia poética de António Lobo de Carvalho, poeta satírico vimaranense do séc. XVIII.

[via Torre dos Cães, há muito inactivo, para mal dos nossos pecados]

2 de Outubro, 2009 Carlos Esperança

Uma mulher é que não… (Crónica)

Quando a ditadura e a ICAR viviam em união de facto

Em 1962, Manuel da Silva Mendes, era Director Escolar interino do distrito de Castelo Branco, substituindo nas funções Liberato de Oliveira, de quem era adjunto, nomeado presidente da Câmara da cidade.

Foi como director que se deslocou à Covilhã para intimar os 45 professores do ensino primário, previamente convocados, a receberem o Sr. Presidente da República, com os alunos, num determinado dia em que Américo Tomás visitaria a cidade.

Silva Mendes tinha voz de falsete e pretensões humoristas: “Claro que os senhores professores estão dispensados de comparecer, se tiverem duas pernas partidas, com uma perna sã e uma muleta estarão presentes”. Perguntei-lhe, com mais insensatez do que coragem, se era ordem ou pedido, ao que o biltre me intimou a explicar a pergunta. Sem possibilidade de recuo, disse-lhe que, se era ordem, teria de a formalizar por escrito, mas, se era pedido, o declinava. Foram grandes o silêncio e o pasmo naquela sala, ante a vigorosa admoestação que precedeu o rol de qualidades que atribuiu ao chefe de Estado, qualidades que o Director interino foi eloquente a sumariar apesar da total ausência de mostras e do excesso de provas de sinal contrário. Terminou com ameaças, irado, a mandar-me rapar o bigode, perante 44 professores constrangidos e assustados.

No dia aprazado, salvei a honra recusando vassalagem ao biltre salazarista que viajava, vestido de almirante, a cortar fitas, improvisar discursos e maltratar a gramática. Defendi o bigode, apesar da frequência com que o Director interino passou a visitar-me e do reiterado argumento de que o adorno piloso dava mau exemplo aos alunos. Repetia-lhe que era improvável que crianças de 7 ou 8 anos deixassem crescer bigode, mas o que doía ao inveterado fascista era a certeza da minha antipatia pela ditadura que ele estremecia, as relações com opositores ao regime e a renúncia a dar a aula de Religião até aparecer um padre para me substituir.

Ainda hoje sinto o abraço da mãe de um aluno a agradecer-me, com lágrimas, por lhe ter poupado o filho à recepção ao Tomás que era odiado pelos operários têxteis dos Penedos Altos, Borralheira e Lameirão, donde provinham os meus alunos.

Nos dois anos lectivos, 1961/62 e 1962/63, coleccionei numerosos amigos e fiz três inimigos íntimos: o padre Morgadinho, que se julgava o braço armado da senhora de Fátima e me denunciou à PIDE, o tenente Gaspar que comandava a PSP e me acolheu várias noites na esquadra, para interrogatórios e conselhos, e o Director interino que regularmente vinha ameaçar-me com a demissão. O argumento era pouco convincente para quem recebia líquidos 1.492$30 mensais, remuneração suspensa de 14 de Julho a 1 de Outubro aos professores agregados, mas, a concretizar-se, suficiente para impedir definitivamente o acesso à função pública. O 25 de Abril viria repor a justiça mas, a uma dúzia de anos de distância, ninguém sabia.

Perante a ameaça de demissão, se continuasse no distrito, alguma forma havia de arranjar o Director interino com o desvelo do padre Morgadinho e do tenente Gaspar, decidi efectivar-me longe de tais biltres, enquanto o Silva Mendes foi sucessivamente nomeado Director Escolar, Presidente da Câmara de Portalegre e Administrador da Casa da Moeda.

Fiquei em primeiro lugar nas escolas a que concorri. As femininas e mistas eram interditas a professores mas, nas masculinas, as professoras só podiam ser colocadas se não houvesse candidatos masculinos. Como havia poucos professores, a colocação era facílima para os homens. Coube-me o 1.º lugar da escola masculina da Lourinhã, posto em primeiro lugar no boletim de concurso, e desloquei-me a Lisboa para tomar posse.

Recebeu-me o Director Escolar, Olinto de Araújo Vilela, com visível satisfação por empossar um beirão, espécime que no seu convencimento devia ser crente, de sãos princípios morais e admirador do Estado Novo. A PIDE tinha-se atrasado na informação.

Ficou descoroçoado quando lhe disse que não era crente e não exultava com a mobilização para a guerra que o regime mantinha em três frentes. Notei que a conversa, embora cordial, desagradava ao Director que dizia ter-me destinado o lugar de Delegado Escolar. Ainda lhe disse que as minhas opções ideológicas não me recomendavam nem da minha parte havia apetência por um cargo de confiança.

Queixou-se da decepção que eu lhe causava, a ele que era da União Nacional, da Legião Portuguesa e vereador de uma Câmara Municipal, no Ribatejo, cujo nome se me apagou nestas décadas.

Mantive-me respeitosamente silencioso, aliviado por ter descarregado a ira contra o Estado Novo, certo de que nada seria pior do que a ida para a guerra.

Houve um pesado silêncio entre ambos, pareceu-me uma eternidade, o Director coçou a cabeça e, por fim, disse: «Vai ser o Delegado Escolar da Lourinhã, uma mulher é que não».

Li em voz alta que seria fiel às leis da República e o mais que constava do diploma de funções públicas, custava uma fortuna, e ambos assinámos o auto com duas testemunhas que recrutou para a cerimónia.

Despediu-se, cordialmente, e disse-me: Então… até Outubro, senhor Delegado Escolar.
Não quis acreditar no que me anunciava, não havia em Portugal um Delegado Escolar menor de idade, nem percebia por que motivo me seriam atribuídas tais funções.

Em Outubro lá fui parar à Lourinhã e logo recebi a visita do Director que me vinha felicitar por ser o director da escola masculina e anunciar que já tinha mandado para o Diário do Governo a minha nomeação de Delegado Escolar.
De facto, com vinte anos, antes de atingir a maioridade, o meu nome veio publicado na 2.ª série do Diário do Governo nomeado Delegado Escolar da Lourinhã.

Só então me dei conta de ser o melhor professor do concelho. Era o único. Mais de oitenta professoras tinham um defeito de género que superava a minha inexperiência e quaisquer defeitos de um homem.

O pecado original perseguia as mulheres e a excelente profissional Maria da Conceição Carneiro foi exonerada para que eu assumisse um lugar que não queria e para o qual as mulheres eram inaceitáveis.

Uma mulher é que não.

30 de Setembro, 2009 Carlos Esperança

Memórias achadas (Crónica)

A certeza do encontro não atenuou o pasmo da chegada e a emoção da despedida num dia de Agosto que começou tarde demais e depressa se findou.

Aquele olhar carregava quatro décadas e meia de separação. Quem pensa que a ausência é esquecimento? É a memória fechada no baú do tempo e a separação um laço forte em estado de gravidez sem previsão de termo.

Saiu-lhe da carteira um artigo de jornal com uma foto, dobrada e tão puída, que logo se desfez por entre os dedos como um vestido de seda preso nos espinhos de um silvado.

Quando dobrou de novo o papel, pelos vincos rasgados, ele afastou o olhar para ocultar o efeito atordoador da surpresa, naquela forma natural, com tanta gente a ver, capaz de reacender as brasas da paixão que o tempo não apagou.

Tantos anos livre de quem não a mereceu e, agora, feliz, num reencontro afectuoso, braços abertos ao abraço que já não pode prendê-la, face oferecida aos lábios sequiosos, a depor um beijo terno de quem esqueceu ou já perdoou. Há vinte anos tinha havido um encontro, breve e alegre, de quem esquecera o rosto até recordar a suavidade da voz e o brilho do olhar, sobressalto aquietado pela constante interrupção do diálogo por uma multidão de convivas. Agora era diferente, não esteve na origem uma efeméride ou um desses acasos que surgem nas andanças da vida. Foi um encontro planeado, com desejo mútuo a torná-lo possível e a prolongá-lo com o pretexto de festejos populares. A vida é feita de acertos e desacertos, de enganos e ilusões, da ambição de agarrarmos quem estremecemos e do receio de nos prendermos a quem perdemos.

Na ditadura tudo era negado, éramos só nós tudo o que tínhamos, e nada ousávamos por ser proibido. Desse tempo, dessa saudade, ficou o remorso de não termos arriscado, o desalento de não crermos no futuro, a vergonha de termos sentido medo e a raiva de não o termos vencido. Do mundo que poderíamos ter construído restam a derrota, as feridas e as dúvidas sobre o futuro que seria. Não é possível voltar atrás e reiniciar, como se a vida pudesse repetir-se ou a mesma água do rio banhasse de novo o leito.

A vida não é o que olhámos, é o que vimos, o que lembramos, os silêncios resignados, respostas por achar para a rendição sem glória. Quem um dia desiste de lutar nunca mais sai vitorioso, ficou inacabado o voo de quem fechou as asas. Que importa a renúncia por amor ou o silêncio por devoção? O que não se diz no tempo certo não se repete depois. O Sol não surge com o crepúsculo embora a claridade nos faça sonhar com a madrugada que desperdiçámos.

Somam-se acasos e frases incompletas, sons que chegam sem liberdade, guardados por cumplicidades e disfarçados em pretextos. Sonhar é um direito que resiste ao tempo e à vontade, quimera que se inventa para afagar o coração e disfarçar o remorso.
Um dia, o telefone toca. Chega a voz esperada na véspera e ansiada na manhã seguinte, voz que acompanha a carruagem que se afasta a cento e trinta quilómetros por hora, tão tarde, para impedir o embarque, tão breve, com tanto para dizer, e tão triste, com o som a perturbar os sentidos e a dilacerar a memória. Que raio de sorte a do viajante que não pode inverter a marcha do comboio que o aprisiona, que desolação para quem deixou fugir o bálsamo para a ferida que não sarou.

O amor é um sentimento que resiste ao tempo e ao bom senso, capaz de comprometer o recato e a tranquilidade, roleta russa que compele ao disparo, com jogadores dispostos a morrer por se sentirem a sangrar por dentro e a esvair. O remorso, esse, é o espinho cravado na memória ferida.

Sabemos que amámos quando nos despedimos sem partir ou, partindo, ficamos presos. E quando, caminhando sem rumo, tropeçamos na memória.

20 de Agosto, 2009 Carlos Esperança

Com a corda na garganta (crónica)

O cavador, vergado ao peso da enxada e da fé, descansava ao domingo por imposição canónica e dos outros paroquianos. Choravam-lhe os filhos, com fome, e doía-lhe o mutismo da mulher. Vivia em aflição e, enquanto o padre transformava em benta a água vulgar e em hóstias consagradas as rodelas de pão ázimo, ia duvidando da fé.

Não o empolgava o latim, não se condoía do martírio de seu deus e descria da virtude do padre.

No domingo ansiava pela segunda-feira, esperando que um lavrador o chamasse para os trabalhos agrícolas, à espera de oito mil réis e da canada de vinho com que criava forças para, com a côdea de pão e o escasso peguilho, aguentar a jorna e a família.

Já por várias vezes temera ter de vender as cabrinhas que os filhos apascentavam à beira dos caminhos. Sem leite, queijo e cabritos que dali vinham, sem o toucinho que ficava da venda dos lombos e dos presuntos do porco que a mulher criava, como iria alimentar os seis filhos que ainda restavam dos dez que Deus quisera?

No Inverno não havia trabalho e era escassa a comida. Na panela fervia um coirato que acabaria repartido por todos para acompanhar as magras fatias do pão duro que restava da última fornada. O naco de toucinho, que saíra da salgadeira, escoltava o coirato para dar paladar às couves e batatas que ferviam na panela de ferro. Que raio de vida, a dos pobres. Era a vontade de deus que, assim, se cumpria.

Uma tarde, a mocha, a cabra que dava mais leite, pareceu doente. De manhã acharam-na morta, barriga inchada, quem sabe o que comera. O cavador teve de carregar com ela e enterrá-la, nem a pele lhe aproveitou.
Dois dias depois os sinos da aldeia tocaram a sinais. Perguntei quem tinha morrido, foi o Zé da Catrina, menino, devia estar doido, com mulher e seis filhos, fazer uma coisa dessas, não andava bom da cabeça. Prendeu na trave da casa a corda que lhe ficou da cabra e, com ela, fez um laço. Subiu a um banco e meteu-se dentro. Quando voltaram da missa, a mulher e os filhos foram dar com ele, com os olhos muito abertos, a língua de fora e o banco caído.

Ficou assim no dia seguinte, as moscas a poisarem nele, até chegarem as autoridades. Foi o maligno, murmurou-se na aldeia, só podia ser, o Zé era pouco devoto, abandonou deus, entraram nele os espíritos.

O padre recusou fazer o enterro. A Catrina  ajoelhou-se a implorar que o acompanhasse mas o sacerdote invocou o direito canónico. O coveiro abriu-lhe a cova longe dos outros mortos, num talhão ainda sem campas e por benzer, talvez para não atormentar os que morreram confortados com todos os sacramentos.

Já lá vão seis décadas, não sei se a terra comeu o Zé da Catrina de forma diferente dos que temeram a deus e cumpriram os mandamentos.