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Categoria: Literatura

22 de Fevereiro, 2011 Carlos Esperança

C O N V I T E – Lançamento de livro

Onofre Varela é dirigente da Associação Ateísta Portuguesa

Este fim-de-semana no Porto
VENHA TOMAR UM CAFÉ COM ONOFRE VARELA!

O Novo livro de Onofre Varela, SOU GAJO PARA TOMAR UM CAFÉ, é apresentado, este fim-de-semana, no Porto, em dose tripla!
Assim, na 6ª feira, a partir das 21.30h, Onofre Varela estará no Centro Comercial Parque Nascente (no corredor em frente ao Jumbo), em Rio Tinto.
No sábado, às 17h, mais um café, desta vez na Fnac de Santa Catarina e no domingo, em vez de descansar, o autor/ator/ilustrador vai estar na Fnac do Gaia Shopping, também às 17h.

A anteceder todas as sessões de apresentação deste livro (de humor, pois claro!), haverá momentos de boa disposição com o próprio a interpretar alguns sketches teatrais. Porque tristezas não pagam dívidas (alegrias, ao que parece, diz Onofre Varela, também não. Por isso…)!

Não há, pois, desculpa para recusar o convite. Venha tomar um café (um cimbalino, como prefere dizer o autor) com ONOFRE VARELA!

o livro…
Sou gajo para tomar um café… e é mesmo. Ou, como prefere dizer, bem à moda do Porto, um cimbalino.

Neste livro, Onofre Varela convida o leitor a com ele partilhar episódios de humor. São histórias, a maior parte delas vivenciadas pelo autor, recheadas de boa disposição, mesmo naqueles dias em que tudo corre mal. E, já que tristezas não pagam dívidas (alegrias, ao que parece, também não), o melhor é enfrentar as adversidades com um sorriso nos lábios. Pode não resolver completamente o problema, mas acreditem que ajuda!
Ator e humorista, teme pelo seu emprego nesta área devido à temível concorrência dos políticos: “esses gajos cada vez me fazem rir mais”, diz o autor

o autor…
Onofre Varela nasceu no Porto em 1944, estudou pintura e exerceu a atividade de desenhador gráfico em litografia e agências de publicidade, antes de abraçar a carreira de jornalista (na área do cartune), em 1970,
no jornal O Primeiro de Janeiro. Colaborou com a RTP desenhando em direto a informação meteorológica no programa Às Dez e animando espaços infantis.
Foi caricaturista e ilustrador principal no Jornal de Notícias, onde também escreveu artigos de opinião, crónicas e entrevistas. Premiado em Portugal e no estrangeiro nas áreas da caricatura e da criação de
logótipos, expôs os seus trabalhos satíricos em Portugal, Espanha, França, Turquia, Macau e Brasil.
Publicou Cimbalino Curto, Lugar da Palavra, 2009, e O Peter Pan não existe, Caminho, 2007; é coautor de Cinco Enterros do João, Arca das Letras, 2006.

6 de Fevereiro, 2011 Carlos Esperança

A cárie

O senhor Salustiano era um homem de fé. Lembrou-se de que S. Lamberto era o padroei­ro dos dentistas e, por analogia, entendeu ele, dos sofredores dentais. Por isso, saiu do consul­tório e atravessou a povoação em direcção à igreja onde, naquelas circunstâncias de tempo, já pontificava o nosso conhecido padre José dos Santos Passos, segundo o qual os santos são intermediários entre os homens e Deus. Entrou directo na sacristia. Tinha pressa, porque o remédio que o den­tista tinha colocado no dorido dente corria o risco de ficar fora de prazo em curto prazo.

O padre José dos Santos Passos lia o breviário, e mal se sobressaltou quando se deu a entrada, algo bu­liçosa, do senhor Salustiano:

–         Boa tarde, caro paroquiano. É sempre um prazer vê-lo na Casa de Deus. Aliás, a si e a to­dos os paroquianos.

–         Boa tarde, padre.

Durante o trajecto, o senhor Salustiano delineara uma espécie de estratégia. Santos são san­tos, têm o poder de interceder junto de Deus, mas não é menos verdade que o mortal não pode estar à espera das dádivas divinas sem que haja uma contrapartida. Não é por mero acaso que muitas pessoas palmilham os caminhos até aos santuários, onde depositam os ex-votos – normalmente sob a forma de dinheiro ou objectos valiosos. Por isso, o senhor Salustiano sabia perfeitamente que não podia esperar um milagre e, depois de concedido, ir todo contente para casa como se nada tivesse acontecido. Era o que faltava!

Estava disposto, assim o tinha decidido, a mandar pintar a igreja – aliás a precisar de pin­tura urgente. Bastava, apenas, que aquela cárie dentária desaparecesse por milagre.

–         Diga-me, senhor padre: esta igreja tem alguma imagem de S. Lamberto?

José dos Santos Passos sentiu-se algo interdito. São Lamberto? Por que carga de água? Por acaso até nem era um santo com saída, o que estava a dar mais era os chamados “Santos Populares” ou, em alternativa, o S. Gregório, muito solicitado aos fins-de-semana, fora disso era mais santas, tipo Santa Filomena, Santa Maria Madalena… Agora São Lamberto???

–         Por acaso não… temos muitas imagens, São Bento da Porta Aberta, São Teotónio, por exemplo…Mas porquê?

–         Bom, é que São Lamberto é o padroeiro dos dentistas; ora, sendo padroeiro dos dentis­tas, certamente que não vai deixar de lado os que sofrem de cárie dentária…

José dos Santos Passos interrompeu-o:

–         Não tem lógica, a sua dedução, meu filho. Se São Lamberto é padroeiro dos dentis­tas, nunca pode ser, ao mesmo tempo, padroeiro dos sofredores, não é verdade? São interes­ses antagónicos. Se não houver quem sofra dos dentes, não são precisos dentistas para nada. Se São Lamberto é padroeiro dos dentistas, protege-os, nunca poderia proteger os que têm problemas dentários, pois se assim fosse estaria, naturalmente, a prejudicar os dentis­tas. E os santos podem ter os defeitos que quisermos, mas fazem da honestidade o seu pon­to de honra.

Naturalmente empolgado pelo seu discurso, José dos Santos Passos nem se apercebeu da barbarida­de que acabara de lhe sair pela boca fora. Os santos têm defeitos? E são santos? Valha-me Deus!

Adiante.

O senhor Salustiano, no entanto, não se dava por vencido:

–         Então diga-me, padre, a que santo terei de recorrer para curar uma cárie dentária?

José dos Santos Passos estupeficou-se:

–         …Uma cárie dentária???

–         Sim, padre. Uma cárie dentária. Sabe o que é isso, certamente.

–         Claro que sei, se bem que não por experiência própria, graças a Deus. Mas nunca ouvi fa­lar nesse tipo de cura… sinceramente… Quer dizer: pôr paralíticos a andar, pôr cegos a ver, ainda vá que não vá; agora curar cáries dentárias… não me parece. Aliás, repare: só são considerados milagres os factos que a medicina não consegue explicar.

Fez uma muito curta pausa:

–         Nunca nenhum santo era capaz de fazer concorrência à medicina convencional, veja lá se compreende! Se a medicina não sabe como curar, aí sim, entram os milagres em acção. Agora, havendo remédio terreno, para quê ir buscá-lo ao Céu?

O senhor Salustiano ainda ficou uns momentos a olhar, hesitante, para o padre. Depois, acabou por se despedir com duas decisões irrevogavelmente tomadas: a primeira, nunca mais pôr os pés na igreja e, pura e simplesmente, tornar-se ateu; a segunda, arrancar o maldito dente. Podia, até, arrancar os dentes todos. Tudo, menos a broca.

Hoje, o senhor Salustiano é proprietário de uma invejável placa dentária com a qual, nos tempos livres e quando está bem disposto, costuma tocar castanholas, batendo com a arcada in­ferior na superior.

Ou vice-versa…

In: “Enquanto As Armas Falavam”, de José Carlos Moreira.

Editora Lugar da Palavra.

31 de Janeiro, 2011 Carlos Esperança

Foram-se as indulgências (Conto)

Jerónimo Felizardo estava a aliviar o luto a que a perda da amantíssima esposa, Deolinda, o obrigara. Não se pode dizer que lhe fora muito dedicado em vida nem excessivamente fiel. Mas habituara-se a ela como um rafeiro ao dono que o acolhe.

Sentia-lhe agora a falta. Deolinda de Jesus dera-lhe tudo. Mesmo tudo. Até o que é obrigação e nela nunca foi devoção e, muito menos, entusiasmo. Deu-lhe independência económica, boa mesa, respeito e uma filha. Deixou-lhe uma pensão de professora, metade do ordenado do 10.o escalão, que acrescentava a outros proventos e o punham ao abrigo de sobressaltos.

Com a filha não podia contar. Fora para Lisboa frequentar a Universidade Católica, a cujo curso e influência deve hoje o desafogo em que vive e o lugar importante no Ministério. Metera-se no Opus Dei e enjeitou a família. Mesmo a mãe, a quem fora muito chegada, só lhe merecera duas breves visitas nos três anos de doença prolongada com que Deus quis redimi-la do pecado original.

Era natural que substituísse as visitas por orações, que não exigiam deslocações nem hora certa, que haviam de prolongar a vida e o sofrimento, assim Deus a ouvisse. E ouvi-la-ia de certeza porque, além de omnipotente e omnisciente, vinham duma devota fiel à instituição que o Papa amava quase tanto como à bem-aventurada Virgem Maria.

A poucos meses de fazer meio século Jerónimo empanturrava-se de comida que Carolina, afilhada do crisma de D. Deolinda, se esmerava a cozinhar com um desvelo que a filha nunca revelara. Bem sabia que a gula era um pecado capital mas que a prática e o exemplo eclesiástico largamente tinham despenalizado. Nem mesmo o Prefeito para a Sagrada Congregação da Fé, tão cioso guardião da moral e dos bons costumes, o valorizava demasiado. A gula não é propriamente a luxúria, que é das maiores ofensas feitas a Deus, pecado dos maiores e, de todos, o que mais contribui para a perdição da alma.

Em tudo o mais era Jerónimo um viuvo exemplar. Dera-se à tristeza e à oração. Arrependia-se das vezes em que não cumpriu o dever da desobriga, da frequência escassa à eucaristia, das missas a que faltou, em suma, das obrigações de cristão que não cumpriu com a intensidade, duração e frequência que recomendava a Santa Madre Igreja. Mas, de tudo, o objecto maior de arrependimento era o adultério que cometera e em que, sempre confessado, reincidiu.

Mas isso terminara há muitos anos. A infeliz que seduzira casara e virara fiel ao marido a quem agradecia tê-la recebido canonicamente apesar de saber que já não ia como devia. Conformado, não se importando de ficar com mulher que já não ia inteira, nunca suspeitou de ornamentos de homem casado, sempre julgou que o autor era um antigo namorado que a morte por acidente impediu de reparar a desonra.
Desse pecado se redimira já, pela confissão, penitência e promessa de nunca mais pecar. Agora, à castidade que se impunha, ao cumprimento dos mandamentos a que se devotara, juntava uma vontade forte de conquistar indulgências nesse ano 2000 do Grande Jubileu.

Bem sabia que as indulgências requerem sempre a confissão sacramental, a comunhão eucarística e a oração pelas intenções do Papa, condições sine qua non para a sua obtenção. Quanto às disposições para a sua aquisição não era difícil cumpri-las. Bastava peregrinar a uma Basílica, Igreja ou Santuário designado para o efeito, e eram várias as opções na diocese, e rezar o Pai-nosso, recitar o Credo em profissão de fé e orar à bem-aventurada Virgem Maria, tarefas de que se desobrigava com prazer e entusiasmo. Mesmo a recomendável contribuição significativa para obras de carácter religioso ou social estava ao seu alcance e não deixaria de fazê-lo.

Embora gozando de excelente saúde e de razoáveis análises nunca é demasiado cedo para o sincero arrependimento e cuidar da alma. Veio a calhar o ano do Grande Jubileu que Sua Santidade avisadamente instituiu nesse Ano da Graça de 2000.

Jerónimo tomou como bênção do Céu ter ficado Carolina a cuidar dele. Antes de se recolher ao quarto rezavam os dois, todos os dias, por D. Deolinda, Esposa e Madrinha, respectivamente, para que a sua alma mais célere entrasse no Paraíso, aliviada das penas do Purgatório.
Passava os meses dedicado à oração, à penitência e à agricultura, outra forma de penitência que alguns teólogos interpretam como a mensagem do anjo do 3.o segredo de Fátima. Disse-me um crente praticante, e não incréu militante, que a penitência que o anjo três vezes pediu era uma forma de exigir dedicação à agricultura, modo de empobrecer e salvar a alma, vacina contra os sectores secundário e terciário onde os homens perdem a fé e a Igreja os fiéis.

No primeiro dia de Maio, a seguir ao jantar, horas depois dos comunistas ateus se terem manifestado nas ruas de Lisboa e Porto, enquanto Carolina ficou a arrumar a cozinha, foi Jerónimo ao mês de Maria, acto litúrgico que na sua cidade de província sobreviveu à conversão da Rússia e à consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria.

À saída da igreja entrou no carro, dirigiu-se à quinta que distava duas léguas da cidade, deu um bocado de conversa ao caseiro e uma olhadela às vitelas, distribuiu-lhes ele próprio um pouco de ração, mandou verificar a pedra que tapava o buraco das galinhas para protegê-las da raposa, deu a bênção aos afilhados, filhos do caseiro, e regressou à cidade onde viveu em vida de D. Deolinda, por vontade dela que detestava a lavoura e o campo, e vivia agora por hábito e fidelidade à memória da falecida.

Ao regressar a casa admirou-se de ver todas as luzes acesas, excepção para o seu quarto que a luz do corredor iluminava discretamente.
Ia entrar em busca da santa Bíblia quando, sobre uma colcha de seda, na cama, deparou com o corpo esbelto de Carolina, esplendorosa escultura de 20 anos à espera de ser percorrida, vestida apenas de penumbra e longos cabelos castanhos esparsos sobre o peito, donde brotavam túmidos mamilos à espera de afago.

O quarto parecia iluminar-se progressivamente. Já uns lábios carnudos se ofereciam sequiosos e um corpo arfava em pulsações rápidas, num incontido furor de ser possuído, numa ânsia insuportável de ser saciado, primícias ávidas em busca de serem saboreadas.
Jerónimo sentiu sobrar-lhe roupa e minguar-lhe a resistência.

Foram-se as indulgências…

3 de Janeiro, 2011 Carlos Esperança

Momento de poesia

Dissertação sobre a profanação dos ícones…

Como disse Ortega Y Gasset, em matéria de arte,
amor ou ideias, são pouco eficazes os anúncios e programas,
e eu não tenho qualquer programa, nem venho aqui
anunciar nada que faça estremecer as convexidades labirínticas
dos cenáculos.
Vivo na desconexão grotesca de todas as realidades,
as existentes ou as simplesmente inventadas, e duvido sempre.
Duvido sempre, como se a dúvida galgasse todas as encostas
da vida e procurasse alcançar as asperezas das arestas nas
escarpas da verdade, numa exibição impudica da bebedeira
à beira de abismos esfomeados.
Por isso, eu sei que nunca serei encontrado no meio
das multidões ululantes, a anunciar alvoradas, crepúsculos,
em sintonia com a promiscuidade dos ícones ou a adorar
objectos siderais em danças mágicas com fetiches a iluminar
os caminhos aos rebanhos anémicos.
Peregrino pelas inquietações da minha cegueira
e procuro-me e regenero-me em cada nova encruzilhada
como se regressasse sempre à primitiva inocência.

Alexandre de Castro

25 de Dezembro, 2010 Carlos Esperança

Boas – Festas_1 (Crónica)

Voltar às origens na noite de consoada é a viagem marcada no calendário, imposta pelo hábito e repetida pela inércia. À medida que as coisas e os lugares se encaixam cada vez menos na memória mais intensamente os procuramos. Parte-se em busca do passado e teme-se a desilusão de não achar sinais. Mas volta-se sempre, quiçá com vontade de exumar memórias, de recuperar sonhos e afectos que nos fazem falta, como se no eterno regresso surgisse a fonte da juventude.

Todos os anos, quando Dezembro chega, o frio vem lembrar-nos a festa que se aproxima ao ritmo da nossa ansiedade, enquanto os apelos ao consumo nos seduzem, insinuando uma felicidade duradoura. Fazem-se compras sem ponderação e arquivam-se prendas à espera de destinatário. Os livros têm nesta época o lugar que mereciam durante o ano, viajam com as pessoas à espera de leitor, quedam-se em mãos que os afagam ou, simplesmente, arquivam-se no abandono da estante.

Depois de árduas discussões no seio dos casais decide-se o local da consoada em unânime contrariedade. Nunca durante o ano a diferença entre irmãos e cunhados ou pais e sogros se tornou tão nítida e fracturante.

A viagem é o regresso magoado aos locais e memórias de um tempo que já foi, por entre chuva miudinha e frio de rachar. Doem os ossos em intermináveis filas de trânsito antes de se ver iluminada a torre do campanário onde outrora soavam as horas de dias muito mais calmos.

Chega-se de noite e de mau humor com o vento gélido a arrefecer sorrisos compostos para a chegada e os quartos húmidos indiferentes aos nossos ossos e ao reumático.

A lareira é o destino e centro de um semicírculo de profundos afectos e sólidos rancores que se reúnem alinhados por ordem etária na casa dos mais velhos e são alimentados a filhós e bolos que líquidos capitosos ajudam a empurrar. É aí que se desembrulham as prendas embaladas em papel reluzente com laços artisticamente colados. Agradece-se com um sorriso de desprezo aquele presente desinteressante do parente que nos detesta. Fica-se deslumbrado com a oferta generosa que redime uma ofensa antiga e enternece-nos a simples presença de quem não pede desculpa por gostar de nós.

Recordam-se em silêncio os ausentes pela falta que fazem e a saudade que produzem e os presentes pelo incómodo que provocam e o fastio que acarretam.

Quase todos se empanturram na esperança de matar de vez a fome ancestral de gerações que permanece viva na memória de quem a herdou durante séculos. Gabam-se os pastéis de bacalhau recheados de batata a tresandar a óleo, a excelência do peru mal assado, a qualidade do polvo que saiu duro, repetindo-se discretamente a dose de bacalhau cozido, batatas e couves, regados com azeite de boa qualidade, numas merecidas tréguas ao bitoque e à pizza, enquanto se aguarda a panóplia de doces e frutos secos. São momentos para acumular prazer e peso enquanto a azia e os espasmos não devolvem o remorso e o incómodo.

Por uma noite repousam os guerreiros das batalhas adiadas do quotidiano, levam para o seio familiar uma ou outra intriga para não perderem o treino, cumprimentando-se com uma profusão de ósculos ora fraternos, ora de circunstância. E, por entre os votos canónicos de Boas Festas, recordam-se pequenos agravos e ruminam-se vinganças por umas palavras que não caíram bem, algum insulto durante a disputa do relógio de ouro do avô ou aquela terrina da Vista Alegre que espalharam a cizânia nas últimas partilhas.

Sobrevive do paganismo o festejo do solstício de Inverno. Fez dele a tradição judaico-cristã a festa da família. E quando a família se comporta como deve, a festa acontece e é um suave pretexto de encontros ansiados em volta de sabores que a memória guarda e de aromas que nos transportam à infância numa viagem carregada de afectos e saudade.

Que no dia certo haja festa em vossas casas.

Boas-festas, caros leitores.

24 de Dezembro, 2010 Carlos Esperança

O Cume_1 (Crónica)

A aldeia tinha água e luz, a primeira provinda exclusivamente de uma fonte de mergulho, donde jorravam excedentes para o bebedoiro do gado e para a presa onde as mulheres lavavam roupa, e a segunda, do Sol e das estrelas, reflectida pela lua, ou nascida na torcida dos candeeiros a petróleo ou no pavio de candeias de azeite. Mesmo à Sagrada Família que todas as noites viajava de uma casa para outra vizinha, em perpétuas voltas pela aldeia, era o azeite que lhe iluminava as formas e a virtude que as famílias contemplavam através do vidro da caixa de cerejeira. No verão as coisas complicavam-se, tendo as mulheres que deslocar-se à ribeira, para lavarem a roupa, a dois bons quilómetros de distância. Quanto ao gado lá se ia repartindo a água da fonte, bebendo de um balde, à tardinha, primeiro as pessoas que o quisessem e, a seguir, os animais, balde de novo mergulhado para trazer nova água que ora uma burra, ora uma vaca, sobretudo esta, rapidamente esvaziava. Se entretanto acontecia alguém mais querer dessedentar-se, o balde era primeiro enxaguado, essa água vertida numa pia para galinhas, para aproveitar, e, só depois, outra vez cheio, posto à disposição do sequioso que ali mergulhava a boca e o nariz, até mais não querer, dispensado do assobio que estimulava as vacas. As pessoas tinham precedência sobre os animais.

O forno cozia uma vez por mês, desamuado sucessivamente por todos e com a quantidade de lenha fornecida num sistema que sempre funcionara, na razão directa do número de pães de cada família, marcados para evitar confusões. Os tabuleiros vinham de casa onde fora peneirada a farinha, feito o fermento e amassada. Chegados ao forno abendiçoava-se a massa que o fermento e a oração fariam crescer, fingia-se, tendia-se e punha-se a cozer.

A criança que eu era no fim da década de quarenta recorda três homens a quem reconhecia importância – o presidente da Junta, o senhor do Correio e o sacristão. Hoje havia de julgar o alfaiate ou o merceeiro de maior relevância social mas, então, no meu reduzido universo de valores, com o senhor pároco a viver noutra freguesia, sem a obrigação de pedir a bênção a quem quer que fosse, nem a de beijar mãos, por não ser hábito doméstico e gozar do privilégio de ser filho da professora e de um funcionário de finanças, eram eles os mais importantes.

O presidente da Junta era o sr. José Simão. Tratava da horta como os outros, mas era presidente, o primeiro que eu conhecera. A professora precisava da sua assinatura no recenseamento escolar, mas era ele a deslocar-se à escola, acompanhado da mulher, que lhe desenhava o nome pois ele não o encarreirava – segundo ambos alegavam – apesar do treino a que se submetera, começando a derrapar no José, a que sempre faltava o o ou o s e, invariavelmente, o acento, para depois se lhe varrer o i ou o m e aquele endiabrado til que exornava o complicado Simão. Pronto, assinava a mulher, arrumava-se a questão, faça favor de desculpar, minha senhora, o seu marido vem sexta-feira, ainda bem, nesta altura do ano sai da repartição a horas do combóio, são dezasseis tostões, não precisa de vir a pé, são para riba de duas léguas, ainda chega de dia, até amanhã minha senhora.
Um casal simpático aquele, o único que cultivava linho na aldeia e que me deu a oportunidade de ver como uma frágil planta se transforma em fio. Admirei a barrela e a cardação, vi o que fazia a espadela e contemplei a planta que fora a acabar fiada na roca e dobada.

O do Correio era o sr. António Bernardo a cuja casa eu ia levar as cartas e perguntar diariamente pelo correio. Era um camponês que tinha um braço aleijado a que devia uma pequena reforma e o retrato de um jovem de vinte e poucos anos vestido de sargento, como compensação do ferimento na primeira grande guerra. Era o único lavrador da aldeia com três vacas, integralmente pagas, uma burra e algumas ovelhas. Presidia por tradição, que o alvará da Câmara sempre confirmava, aos actos eleitorais.

Um dia acompanhei a minha mãe ao sufrágio durante uma forte chuvada, o que levou o sr. António Bernardo a perguntar respeitosamente por que se tinha incomodado, com um tempo daqueles, coitado do menino, se até já a tinha descarregado, informação cujo alcance me escapou, limitando-se a recolher o voto e a pousá-lo sobre a mesa. Percebi que já não era preciso introduzi-lo pois já lá estava, não aquele, que era impossível introduzir antes de chegar, mas outro igual, que tinha o mesmo valor e igual intenção. Disse mesmo que já estavam descarregados todos os eleitores mas que a lei obrigava a manter a porta aberta, e a lei é a lei, não acha Sr.ª professora, e para a respeitar e fazer respeitar ali estava ele, ninguém melhor que ele, até já fora presidente da Junta antes do José Simão, por isso só quando a hora canónica chegasse é que se fechava a porta e, nessa altura, é que pediria à Sr.ª professora para preencher uns papéis que era preciso, que ele não se ajeitava e os que estavam com ele ainda menos, no tempo deles não havia escola, o trabalho não era muito, todos tinham votado, graças a Deus, mesmo o Germano que Deus tem, se fosse vivo também não deixaria de votar ou, se o tempo estivesse assim e andasse com o gado, não se importava que nós o descarregássemos.

Era um bom homem, a quem o sr. Prior confiava a orientação do terço, designado por mês de Maria, que em Maio todos os dias tinha lugar na aldeia, a mando de Nossa Senhora e a rogo da irmã Lúcia, pela conversão da Rússia. Devia ser por igual delegação de poderes que lhe cabia a orientação da novena que todos os anos,  quando a canícula fustigava o renovo, despovoava a aldeia para ser rezada junto a uma pia que ficava a mais de um quilómetro, na quinta do sr. Morgado. Lembro-me bem dessas peregrinações, que acompanhei várias vezes com devoção, e da eficácia demolidora de uma dessas novenas que transformou o normal pedido de chuva numa trovoada devastadora com os crentes a queixarem-se do excesso de fé, da molha e dos prejuízos.

O sacristão era coxo. O nome verdadeiro encontra-se, se acaso o soube eu, arquivado na desmemória de sexagenário. Todos o tratavam por Ti Mijinhas.

Sempre julguei apanágio do múnus o cheiro dele, antes de saber que o efeito conjugado da incontinência urinária e da relutância ao banho era a causa necessária e suficiente de um odor que as pituitárias da época, muito mais conformadas e cristãs que as de hoje, assinalavam com nauseada tolerância.
Era ele que ajudava o sr. pároco a paramentar-se, cargo que à época conferia algum prestígio, se encarregava de agitar a campainha quando o sr. Prior passava com a hóstia em frente do Santíssimo, no sentido ascendente e no descendente, estridente toque que me levou muitas missas e cuidada averiguação a localizar. Eu julgava que era o efeito da passagem da hóstia à frente do sacrário que produzia o som, qual célula fotoeléctrica, antes de ter descoberto que o mesmo se devia à campainha com quatro chocalhos cruzados, agitada pelo sacristão, a razoável distância, no momento adequado das exéquias.

Mas era a eucaristia que enobrecia o homem pela singularidade das funções. Cabia-lhe acompanhar com a patena a trajectória das hóstias que do cálice eram transportadas pela mão do oficiante até à língua dos devotos, espécie de rede protectora a impedir que o corpo de Cristo caísse desamparado por alguma manobra mais infeliz ou desajeitada do oficiante, mera precaução para um eventual acidente nunca registado. Nesses momentos até parecia que a perna mais curta do coxo, que o sacristão sempre fora, se adequava melhor à função do que se ambas lhe tivessem crescido iguais.

Era ele que transportava a caldeirinha da água benta com o hissope mergulhado à espera que o sr. prior o sacudisse vigorosamente sobre os paroquianos para os aspergir e abençoar. Cabia-lhe ainda acender as velas e apagá-las, guardar as alfaias, dobrar e arrecadar os paramentos. Os trabalhos menos nobres, a limpeza da Igreja, o tratamento dos paramentos, a mudança da roupa aos santos e outras tarefas menores, de grande interesse para o culto e razoável benefício para a alma, eram destinados a mulheres que disso se encarregavam em obscura dedicação.
Já depois de dita a missa, enquanto se rezavam as últimas orações, uma espécie de IVA para prolongar o santo sacrifício, lá ia o Ti Mijinhas de bandeja em punho pedir para vários fins, conforme o domingo. O mais usual era o “costolado da oração” que anos depois a minha mãe me esclareceria tratar-se do “apostolado da oração”, o que não alterava o valor do óbolo nem confundia a devoção daquela gente pobre.

Fica fora desta crónica a Ti Ismelindra, corruptela de Ermelinda, nome que ela própria desconhecia ter, parteira voluntária a cujo currículo adicionou dois irmãos meus que naquela aldeia encontraram a nossa mãe na altura de virem ao mundo.
Mas é sobretudo uma pequena população analfabeta que resistia à miséria e a cinco orações diárias, que circulava descalça sobre a neve e a geada, por cima de silvas e tojos, que nunca usou relógio ou tomou banho, que pedia brasas para acender o lume, cujas casas eram muitas vezes de terra batida e de paredes sem reboco, que, para se poder vestir, vendia os presuntos do porco que criava, os queijinhos que fazia, pequenos rolos de manteiga que enfeitava com o cabo de uma colher, os molhos de agriões e meruges colhidos nos regatos, os ovos, e calcorreava duas léguas, para percorrê-las de novo no regresso com o pecúlio rendido na praça da Guarda, é essa população que um dia hei-de recordar, menos na fome que a consumia e nas carências proteicas que lhe dilatavam o ventre dos numerosos filhos, mas na sua solidariedade inexcedível e no espírito esmoler que a exornava. Talvez um dia.

18 de Dezembro, 2010 Carlos Esperança

A visita pascal_1 (Crónica)

O Senhor Jesus Ressuscitado viajava, no Domingo de Páscoa, pelas casas da aldeia a recolher o ósculo e a esmola dos devotos. Onde não chegava antes do anoitecer ia no dia seguinte, com desgosto dos paroquianos que o aguardavam. A bênção valia o mesmo, é certo, mas perdia-se o tempo da espera e era diferente. Por isso, para não contrariar os mesmos, todos os anos mudava o itinerário.

Transportava-o o sacristão, que o entregava ao vigário em cada paragem, e era acompanhado por devotos que aliviavam a alma e recolhiam esmolas suplementares para os santos que exornavam a igreja local. Um garoto levava a caldeirinha de água benta que passava ao sacristão enquanto o padre se ocupava da cruz e recolhia-a depois deste despachar a tarefa e de se ocupar do hissope, num movimento de rotação, a aspergir com vigor, em cada lar, um círculo protector das investidas do demo, bênção que não deixaria de acautelar também o vivo que morava na corte, por baixo.
Era um tempo em que não havia vírus nem pneumonias atípicas, as pessoas viviam porque Deus queria e finavam-se quando o Senhor era servido, sem intromissão do médico a estorvar a divina vontade de as chamar.

Em todas as casas as vitualhas aguardavam a visita ao lado de uma garrafa de jeropiga rodeada de cálices. Entrava primeiro o padre, seguido do sacristão e do garoto que conduzia a caldeirinha. Aguardavam nas escadas os outros para depois os revezarem. Genuflectiam-se os da casa, por ordem cronológica, para beijar o pé do Jesus até chegar ao chefe de família que era o último a ajoelhar e o primeiro a soerguer-se. Borrifada de água benta a habitação, recolhida a esmola destinada ao Ressuscitado, a mais substancial, o padre bebia um trago de jeropiga e mordiscava um naco de pão-de-ló, por consideração, enquanto o sacristão aviava o cálice, de um sorvo, e se desforrava nos bolos. Às vezes demoravam-se mais um pouco para que o senhor padre rezasse uns responsos a rogo, geralmente por alma de quem tinha deixado com que pagar o latim.

Havia no séquito que aguardava nas escadas um homem por cada santo que ornava os altares da igreja, disponível para arrecadar a oferenda. Assim, enquanto o padre e o sacristão desciam, subiam eles para recolher, se a houvesse, a esmola que a cada santo cabia, consoante as posses e a devoção dos anfitriões. Creio que os turnos de acesso se estabeleciam em função do espaço e não da liturgia.

Mais de metade da paróquia percorrida, com o padre e o sacristão aguentando o múnus a pão-de-ló e regada a fé a jeropiga, a vingar-se o último, a conter-se o primeiro, a acelerarem todos para as casas que faltavam, o sacristão avaliou mal a distância que o separava das escadas na última casa onde entraram, abalroou o garoto que transportava a caldeirinha que logo a soltou, verteu a água e arremessou o hissope contra a parede. Foi grande o reboliço enquanto o sacristão e a cruz varreram enrolados as escadas sem que alguém do séquito lhes deitasse a mão, impávidos, como se evitassem estorvar se acaso fosse promessa a queda.

O padre, vermelho de raiva e da jeropiga, aguentou-se nas pernas e conteve a língua, ao cimo das escadas, enquanto, sem largar a cruz, se despenhou por entre as alas de acompanhantes o sacristão. Este recuperou rapidamente o alinho e endireitou a cruz, sem ninguém se aleijar, Deus seja louvado, e o padre despachou logo um paroquiano com uma jarra de vidro a caminho da igreja a sortir-se de água benta, com o aviso de se apressar, estava a fazer-se tarde, faltava ainda muito povo para aviar. Se recriminações houve ficaram reservadas para a discrição da sacristia.

No dia seguinte as conversas da aldeia começavam todas por Deus me perdoe, seguidas de persignações apressadas e de risos amplos, terminando em ansiedade pelo pecado cometido ou pelo temor da desobriga, mas ninguém resistiu a contar o sucedido e a comentá-lo, sendo mais forte a tentação do que a piedade.

17 de Dezembro, 2010 Carlos Esperança

Momento de Poesia

Dissertação sobre a morte de Joana d’ Arc…

Deixaste vencer-te pela desgraça que te bateu à porta,
quando te chamaram bruxa
e tu já sabias que aquele hálito a saber a podre
vinha para te anunciar a morte no patíbulo que
improvisaram para a História.
Não havia alternativa à tua rebeldia, que envergonhava
os homens que viviam da sorte incerta do jogo das espadas,
na sofreguidão do fragor das batalhas em campo aberto
ou cercando as muralhas das cidades, preparando
as tropas para o assalto final.
Por isso, obrigaram-te a vestir a roupa que usavam as mulheres,
antes de te queimarem viva, para que o destino se cumprisse
e o disfarce fosse esquecido,
e nem as cinzas do teu corpo foram poupadas, para que nada
restasse de ti, como se fosse possível imolar pelo fogo
a memória do teu povo.

a) Alexandre de Castro

15 de Dezembro, 2010 Carlos Esperança

Por quem andas de dó?_1 (Crónica)

Das andanças pelo país que cada promoção implicava na vida de um funcionário de finanças, contava-me meu pai que numa aldeia de Bragança, onde aguardou dois anos o regresso à Guarda e à família, era costume os homens exonerarem Deus da obrigação de os chamar à sua divina presença.

Eles próprios encarregavam-se de o fazer por mor da disputa das estremas de uma vinha ou da serventia que dava acesso a um lameiro; por velhas rivalidades de que os próprios esqueceram a origem e mantinham vivo o ódio; por causa da partilha da presa comum cuja água era escassa e muita a necessidade para o renovo.

Motivos não faltavam, nem vinho à mistura, para azedar os ânimos e brandir o sacho ou a roçadoira após breve troca de palavras e despachar para o outro mundo o menos lesto a sacar da arma ou mais desprevenido de munições.

Soía às vezes acabar conformado um cristão, vítima de moléstia que lhe levava a febre e o consumia, a quem aparecia o pároco com o Viático mas faltava o médico para o aliviar das dores e o salvar.

Não era diferente nas terras da Beira onde as bengaladas, acabado o vinho dos pipos, desfaziam a feira e rachavam cabeças com a facilidade com que nessa mesma manhã se negociaram as rezes e se cobrara o alboroque.

Pior era a navalha de ponta e mola trazida de Espanha, na candonga, e espetada à sorrelfa na confusão dos chapéus que voavam, das cabeças que se abriam e dos trambolhões que o desequilíbrio do corpo avinhado e o acidentado do terreno propiciavam.

Eram tempos duros e valia pouco a vida…

Nesse ambiente rural e violento ganha credibilidade o diálogo, naquela aldeia de Bragança, que meu pai me reproduzia. Perguntaram a uma rapariga que vestia de luto carregado:

– Então por quem andas de dó, Maria?
– Ai, por mê pai.
– Então quem to matou, Maria?
– Ninguém… foi Deus quem no apanhou à falsa fé na cama.

17 de Novembro, 2010 Carlos Esperança

A Senhora do Monte_1 (Crónica)

Nas aldeias da Beira Alta era hábito rezar, pelas intenções plenárias de cada mês, nas primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, ir ao confesso e à eucaristia e, assim, alcançar as indulgências exigidas para a salvação da alma. Podia parecer injusto pôr garotos a rezar por pecados dos adultos, mas já se sabia que outros garotos o fariam quando adultos se tornassem esses para apreciar os pecados. Ficavam as rezas para as mulheres, que sempre as fariam, para os que ainda não sabiam pecar e para os que, sabendo, já não podiam. Era assim, há meio século, e disso se não livrou a criança que fui. Além das devoções locais outras havia que se cumpriam em paróquias próximas, que os transportes não permitiam lonjuras, com dia certo e local aprazado. A Senhora do Monte era um desses destinos.

Guardo da infância o gosto por romarias. Os santos domiciliavam-se no alto dos montes para ficarem a meio caminho entre os devotos que lhes pediam e o céu que os atendia. Eram mensageiros dedicados, imóveis numa peanha, ouvindo queixas, aceitando petições, a aliviarem o sofrimento. Raramente eram solicitados além das suas posses e, se soía, resignavam-se os mendicantes. Quanto mais perto do céu, maior respeito infundiam, mais petições recebiam, maiores expectativas geravam. Eu ficava a imaginar do que seriam capazes os que habitavam no cimo de montanhas muito altas, que sabia haver, sem cuidar das dificuldades de acesso dos requerentes.

Durante o ano, os santos concediam graças que eram agradecidas em Agosto com foguetes, missa e uma romaria profana que irritava os padres e alegrava os santos. Mas, de tanto pedirem, foi-se Deus cansando de os ouvir, primeiro, desinteressaram-se os crentes de implorar, depois, ou, talvez, a sangria da emigração converteu em deserto o terreno fértil da fé. É com saudade que recordo as ermidas abandonadas que outrora atraíam à sua volta feiras e procissões em confronto dialéctico do sagrado com o profano numa síntese admirável de que só o mundo rural era capaz.

A Senhora do Monte pertencia à paróquia da Cerdeira. Às vezes os santos tomavam as dores dos paroquianos e geravam a desconfiança dos vizinhos, mas não era o caso, por ser de concelho diferente e não haver rivalidades entre as paróquias.

Saíamos da Miuzela do Côa, manhã cedo, descíamos a aldeia, passávamos pela capelinha de S. Sebastião, deixando à direita, encostada ao cemitério, a vinha do passal que, no tempo da República, Paulo Afonso comprou à autoridade administrativa, valendo-lhe a excomunhão eclesiástica, vingança do pároco que reclamava a vinha e o regresso da monarquia. Viveu o réprobo em paz, sem que o anátema o apoquentasse, até ao dia em que teve de pedir a desexcomunhão, para que o filho pudesse franquear o seminário, custando-lhe a canónica amnistia outra vez o valor da vinha.

À beira do caminho havia agricultores, inquietos com a romaria, a guardar os melões, que a rapaziada cobiçava, e, ao longe, entre giestas, lobrigavam-se cachopas, deambulando à espera do encontro apalavrado, talvez mesmo alguma coitanaxa aflita por tornar-se dona.

Íamos pela fresca e regressávamos tarde, de estômago menos vazio, com fritos e vinho a justificarem a jornada, esquecida a devoção, a tropeçar nas pedras em noites de lua nova. Atrás de nós via-se um clarão, vindo da Guarda, à distância de seis léguas, no alto do monte onde chegara a luz eléctrica, com a ermida de onde voltávamos perdida na escuridão da noite.

A Senhora do Monte há muito que não fazia um milagre de jeito mas tinha festa rija e um passado de respeito. Um dia o fogo subiu o monte impelido pelo vento e envolveu a capela, com gente aflita a orar. Abriram as portas e redobraram as orações, que em tempo de aflição se reza mais depressa para compensar a desatenção e acompanhar a ansiedade. Deixaram que a virgem visse o fogo e este a virgem. Foi então que as chamas baixaram e logo o fogo se deteve, enquanto, maravilha das maravilhas, prodígio nunca visto, começou o fogo a recuar e, à medida que a terra desardia, tornaram as plantas que a cobriam.

A Santa, por ter-se cansado ou perdido o jeito, renunciou aos milagres, mas os crentes não desistiram de a ver regressar ao ramo e fazer jus à glória antiga. Ainda assim, era muito solicitada por raparigas solteiras que lhe imploravam para as livrar da prenhez que em horas do demo pudessem ter contraído. Foi como contraceptivo de eficácia duvidosa que conheci a Senhora do Monte nos tempos em que calcorreei os caminhos que lá me levaram.