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Categoria: Literatura

8 de Dezembro, 2013 Carlos Esperança

Areosa – Festas à santa errada (Crónica)

A paróquia da Areosa, que se avista do alto de Santa Luzia, em Viana do Castelo, sofreu com a notícia que o padre João Cardoso Oliveira teve a incumbência de comunicar aos fiéis e, num ato inédito, com a urgente necessidade de sacrificar a santidade por amor à verdade.

A arreliante troca de uma preposição, pela contração da mesma com o artigo definido, pode pôr em causa a devoção, o entusiasmo e a felicidade de quem atribuía à santa as vindimas fartas e a qualidade do vinho.

A santa devia ser a Senhora ‘de’ Vinha mas, vá lá saber-se porquê, obra do demo, quem sabe, por equívoco no nome acabou venerada uma santa que não era a autóctone – uma Senhora ‘da’ Vinha – a quem os devotos passaram a confiar a vinicultura quando a santa da paróquia, a verdadeira, tinha por vocação a pecuária.

Os paroquianos reforçavam com ave-marias a eficácia dos herbicidas e procuravam a sinergia da fé para erradicar ervilhacas, malvas, saramagos, urtigas, gramas, escalrachos e outras dicotiledóneas e gramíneas que retiram força à cepa e comprometem a vindima. A vera santa da Areosa tinha competência veterinária e especialização «ovínea», donde derivou o nome ‘de vinha’, que em latim se refere a ovelhas e originou o adjetivo ‘ovino’ do português atual e, por lapso, rezaram a uma santa errada, padroeira da vinha, que, afinal, protege a pastorícia.

Durante muitas décadas os paroquianos fizeram a festa e a procissão a uma santa que tutelava a pastorícia e veneraram como protetora e padroeira da vinha. Quantos terços, novenas e missas foram rezados par a proteger do míldio as cepas, e a santa a pensar na sarna, nos parasitas, picadas de moscas, claudicações, mamites e outras moléstias que apoquentam o gado ovino!?

Que utilidade tiveram homilias, festas e orações, para fins agrícolas, dirigidas à santa que só tinha olhos para os rebanhos? E as oferendas de lavradores que não tinham ovelhas e pagaram promessas feitas para proteção das vinhas? Quem os vai ressarcir?
A Senhora ‘da’ Vinha dá o nome à igreja da paróquia e a devoção levou os autóctones a homenageá-la com uma escultura em gesso que é, nem mais nem menos, uma videira, imune à filoxera mas não à provação do logro.

Quem sabe se a santa não continuaria a fazer milagres à altura da fé que se vai apagando lentamente sem provocar a comoção geral que o padre Oliveira, prior da Areosa, há 22 anos, terá de gerir!?

Ainda hão de maldizer o professor de História da Universidade do Porto, frequentador da festa, que se pôs a esgaravatar no Louvre, em Paris, e descobriu uma pintura do século XIV com a Senhora ‘da’ Vinha, sem parecenças com a Senhora ‘de’ Vinha, salvo na virtude que as há de igualar e não se vislumbra a olho nu.

Maldito o respeito que a Universidade, o Louvre e os professores passaram a merecer e que ofusca o apreço que às imagens pias era devido, com manifesto prejuízo do maior bem que a gente simples possuía – a fé. Por ora, não se adivinha o efeito devastador da investigação histórica, confirmada pelo pároco, na desorientação de uma paróquia tão piedosa, temente a Deus e orgulhosa da santa que era ‘de Vinha’ e que os paroquianos julgaram ser ‘da Vinha’.

JF – 13-08-09

 

29 de Setembro, 2013 Carlos Esperança

A Morte do Miguel ou as injustiças de Deus

No dia 27 de junho de 2007 o Miguel teve o seu funeral. Caíra no sábado anterior à saída do casebre. Quebrou o fémur e ganhou um hematoma na cabeça. Transportado ao hospital faleceu no dia seguinte.

O funeral foi na terça-feira. O Miguel teve missa, flores que os amigos lhe levaram e os responsos canónicos antes de baixar à cova. Já não o acompanharam os pais e avós, que partiram antes, mas estavam lá os amigos que com ele jogaram à bola na Praceta, colegas da escola primária onde começou e terminou os estudos.

Para os que acusam os jovens de egoísmo foi tocante ver os que vieram de longe, alguns bem instalados na vida, outros à procura de uma oportunidade. E eram muitos.

O Miguel é que não teve vaga. Não conheceu o pai, falecido quando ele ainda não tinha dois anos. A mãe esqueceu-o na amnésia da droga e não o recordou quando partiu sob o efeito de uma dose reforçada.

Os avós recolheram-no. Partiu primeiro a avó e não se demorou o avô. O Miguel ficou aos baldões da sorte, ao abandono, não lhe faltando os pontapés da vida nem a companhia de outros desgraçados.

Tinha 31 anos e mantinha os olhos de criança no rosto já cansado. Passou fugazmente por várias drogas mas foi no álcool que se fixou, em doses cada vez mais vastas. Se os amigos o saudavam, sorria com gratidão. E não deixou que lhe virassem as costas, foi-se afastando entre carros que arrumava e garrafas de cerveja que consumia.

Ainda teve tempo para fazer um filho. Foi amado. A mulher quis levá-lo para o cuidar, mas não quis ser fardo. Andou por aí, sem querer ser pesado, sem se queixar, a desfazer o fígado e a vida, a acelerar para o fim, com um sorriso que guardou para os amigos.

Na morte teve a mulher que o amou, vestida de preto, e muita gente: um arrumador de carros no intervalo da ressaca, o diretor de um estabelecimento de ensino superior, o dono do café, jovens que após os cursos foram pela vida mas voltaram à Praceta para dizer adeus ao Miguel e levar-lhe as primeiras flores que recebeu. E todos nos sentimos tristes, com vergonha de sermos felizes.

Chamava-se Luís Miguel Neves Caldeira, de seu nome. Era tudo o que tinha com a roupa que trazia e um velho rádio de que fez testamento oral. Dele só resta o rádio e o raio da nossa incapacidade para criar um mundo mais justo.

Vi o edital que anunciava a missa do 7.º dia para as 18H30, seis dias após a morte, pois o 7.º dia é quando um padre puder. Talvez a missa fosse pela remissão dos pecados de Deus. Para que outra coisa poderia servir?

29 de Agosto, 2013 Carlos Esperança

Pailobo – uma aldeia privada das suas gentes (Crónica)

Quando aos 8 ou 9 anos, montado na albarda de um burro com o dobro da minha idade e paciência, fazia sozinho uma longa jornada, havia de julgar-me adulto e envaidecido quando via alguém nos caminhos quase desertos que da Miuzela do Côa conduziam a Monte Perobolço, uma légua bem medida.

Só a inabalável afoiteza daqueles avós maternos, tão meigos e orgulhados do primeiro neto que lhes coube, permitia que confiassem à criança, a besta, a missão que levava e o dinheiro que pagava a mercadoria.

Partia de manhã, cedo, pela fresquinha, bem comido, com o burro aparelhada a preceito, a cilha bem apertada, não fosse a albarda virar-se, o cabresto ajustado e, sobre a manta garrida, os alforges destinados a regressarem cheios.

Já levava uma boa meia hora de caminho quando, montado na burra, passava o Noémi a vau, junto às poldras, a caminho de Pailobo. Era uma pequena aldeia com pouco mais de uma centena de habitantes onde logo era reconhecido e me perguntavam pelos avós, mas o peito inchava quando indagavam se ia sozinho, e viam bem que ia. A subida era íngreme, ou assim me parecia, desde a ribeira até à aldeia onde, à vinda, de tudo o que me ofereciam, aceitava, quando o sol abrasava, o púcaro de água fresca do cântaro de barro, da Malhada Sorda, que jazia na cozinha.

Pailobo era povoação pequena, comparada com a Miuzela, que tinha para cima de 800 pessoas, e era ponto de passagem obrigatório para quem se dirigia a Monte Perobolço, a menor distância do que a que a separava da Parada do Côa de cuja freguesia era anexa.

Em Monte Perobolço, saltava do burro, prendia o rabeiro à ferradura metida na parede, que servia de argola, e entrava no estabelecimento do Sr. José Simões que abastecia de tabaco as aldeias em redor. Era recebido com euforia, tão pequenino e vem sozinho da Miuzela, como vão os avozinhos, então a encomenda é grande, e lá puxava eu do papel onde a avó escrevia os nomes e quantidades de tabaco que pretendia.

As embalagens enchiam os alforges, do Kentucky, de 12 cigarros, conhecido por mata-ratos, com uma cinta onde se lia o preço de venda ao público, $80, até às caixas de 10 maços de 20 cigarros, de Português Suave, Paris ou Três Vintes (20-20-20), e aos mais populares Definitivos e Provisórios, grandes e pequenos, respetivamente com 24 e 12 cigarros. Onças de tabaco Superior e Holandês, com outros tantos livros de mortalhas, e cigarros de outras marcas, da Tabaqueira ou da Companhia Nacional de Tabacos, hoje desaparecidos e cujo nome fui esquecendo, completavam a encomenda.

Depois de criança voltei a Pailobo algumas vezes para comer as perdizes caçadas pelo Manuel da Cabreira, o famoso Manuel Caçador, a quem se pagava o dia de trabalho, os cartuchos, o chumbo, a pólvora e as buchas para abater à roda de vinte perdizes que a mulher, a Sr.ª Alice, estufava primorosamente . Era o tempo em que as perdizes eram mais numerosas do que os caçadores e, nessas tardes, com o meu tio Brardo, o Sr. José Rita, o Sr. Messias Pereira e outros acabávamos a tarde bem comidos e melhor bebidos a jogar à sueca e a conversar.

Depois dos 20 anos não voltei a tal aldeia. Soube da existência de um cemitério, velho anseio do povo, que o 25 de Abril concretizou, quando surgiu o primeiro defunto capaz de gozar o melhoramento, não porque tivesse sido notícia a obra, mas porque o morto, o António Pereira, tratado por Seabra, recusou um cemitério privativo, ou alguém por ele, e, como era hábito, foi para o da Parada, destino usual para a defunção das pessoas de Pailobo. Outros morreram e ficaram nas terras onde acabaram os dias, antes do Manuel Pereira, o Micas, ter inaugurado o cemitério que, desde aí, passou a cumprir a função.

Em 23 de agosto de 2013 voltei a Pailobo. O fogo andou lá, há pouco, e os lanchais que descem até ao Noémi estão ardidos, só mostram as pedras tisnadas, como tisnadas estão as pontas dos arbustos que atravancam o caminho para Monte Perobolço. Foi pior, há anos, quando um pavoroso incêndio ligou a Miuzela a Pailobo, sem poupar a capela de Santo Antão, alheio à santidade do edifício e à aflição das pessoas.

Hoje, a capela está fechada, como cerrada está a capela do Calvário onde o patrono que decorava a fachada, S. Sebastião, foi apeado, e fechado dentro, por mor dos ladrões que não respeitam a memória pia do que foi uma pequena aldeia com gente, hoje espalhada pelo mundo, a recordar a procissão de 16 de janeiro, quando o andor de Santo Antão ia em visita a S. Sebastião e voltava, depois da missa, com foguetes e cânticos religiosos.

Junto à capela do Calvário ainda resiste o Cruzeiro que os da Parada já levavam quando um trator lhes franqueou a passagem e os obrigou a devolvê-lo à peanha que o sustenta.

Na aldeia moram agora três viúvas, uma de 87 anos, que vive sozinha, e outra de 91 que está acompanhada de uma filha, também viúva, mas, durante o inverno passado, só um homem de 55 anos, padeiro em Pínzio, que no regresso vende, em várias aldeias, o pão que ajuda a fabricar, foi o persistente morador celibatário, duplamente solitário.

A Sr.ª Maria Romeira, viúva de Messias Pereira, cujos 91 anos já referi, disse-me que o José Rita e a mulher, nascidos em 1913, estavam no lar de Vela, no concelho da Guarda. É rija aquela gente e o coração não renega a aldeia de Pailobo onde, no posto escolar em ruínas, subia pela parede uma parreira com dois cachos em maturação tardia.

Nas casas abandonadas da aldeia saem dos telhados dezenas de antenas de televisão que o vento vai torcendo enquanto o silêncio toma conta do espaço onde a vida se extingue numa dolorosa metáfora do país que arde.

12 de Abril, 2013 Carlos Esperança

Crónica de fim de semana – Terras da Beira

São cada vez mais os mortos que povoam os cemitérios e menos os vivos que restam. Os jovens saíram pelas estradas que invadiram o seu habitat. Fugiram das courelas que irmãos disputavam à sacholada e à facada, dos regatos que secaram a caminho das hortas, da humidade que penetrava as casas e os ossos e da pobreza que os consumia.

Não há estímulo para permanecer. Não se percebe que as penedias tivessem custado vidas na disputa da fronteira, que homens se tivessem agarrado aos sítios e enchido de filhos as mulheres que lhes suportavam o vinho, a rudeza e os maus tratos.

Os tempos mudaram e os campos, abandonados, são pasto de chamas que lhe devoram a vegetação, no estio, e os entregam à erosão, no Inverno.

Os funerais são o momento de fazer o recenseamento dos que resistem. Nas missas, os padres, em via de extinção, debitam com ar sofrido a homilia, com pressa de passar à paróquia seguinte e sem coragem para falar do Inferno. Ora, sem medo, sem ameaças e sem convicção, não há fé que resista ao ar lúgubre de uma igreja, ao frio do lajedo e às imagens que substituíram as antigas, que rumaram aos antiquários.

Falar de castidade a quem a idade condenou à abstinência, dos malefícios do aborto a quem passou há décadas a menopausa e na obrigação de aceitar os filhos que Deus mandar a quem já não é capaz de os gerar, é persistir em rotinas que a desatenção e a demência cultivam.

Vou frequentemente à Beira onde nasci. São poucas as pessoas que permanecem. O País inclina-se perigosamente para o mar com o interior despovoado, a caminhar para o deserto. Outrora, aquela zona foi um alfobre de gente; hoje é um cemitério de recordações em vias de extinção.

A nossa incúria vai reduzindo Portugal a uma estreita faixa com mar à vista. Até o Presidente da República diz que devemos virar-nos para o mar. É uma forma de nos afogarmos de frente.

 

5 de Abril, 2013 Carlos Esperança

Sinos da minha aldeia – Crónica

Na aldeia o sino da torre ainda insiste nas meias horas e, com intervalo curto, na repetição das horas diurnas. Calam-no, de noite, para não perturbar o sono de citadinos em férias. O relógio comunitário ignora os seus homólogos, no pulso dos cidadãos, a sua fiabilidade e a facilidade da consulta.

À força de se repetir vão-se as pessoas esquecendo de escutá-lo e de lhe prestar atenção. Se acaso parar poucos darão pela falta e o abandono será o destino fatal que já o condena. Viverá enquanto não se partir a corda e o maquinismo não encravar.

Mingua nas presas a água que regava os campos à claridade da aurora. Secaram as fontes que alimentavam regatos, mantinham viçosos os prados e os defendiam da canícula.

Falta a água, seca a erva, ficam maninhos os campos. Os velhos vão mirrando enquanto os novos se fizeram à vida e abandonaram as terras e os pais.

Também na igreja o sino chama os paroquianos para os actos litúrgicos com o som triste de quem envelheceu com as pessoas e trina por hábito, sem convicção nem entusiasmo dos que ainda o escutam.

Só os emigrantes iludem, durante as férias, a solidão e abandono a que o interior de Portugal está votado. Foi longo o processo, mas eficaz, penoso e irreversível.

In Pedras Soltas (esgotado)

19 de Janeiro, 2013 Carlos Esperança

A festa de Santa Filomena – Crónica

No início da década de sessenta um brasileiro bem sucedido voltou ao Cume para rever amigos e embasbacar os autóctones com o sucesso. Trouxe presentes, distribuiu pentes e rebuçados, lançados aos garotos à rebatina e, à igreja, ofereceu um guião e dois pendões que mandou vir do Porto, uns paramentos a estrear e dinheiro suficiente para a festa de Santa Filomena.

A bem-aventurada tinha provas dadas na cura de animais, designadamente ovelhas, que a gripe dizimava e estropiava no inverno e, quanto maior a desgraça, mais crescia o pasmo pelas que escapavam e maior era a devoção. Tinha sido o caso, nesse ano, por causa das chuvas e dos sempre insondáveis desígnios divinos. Era a primeira homenagem pública, a augurar o início de uma tradição e de um amparo ainda maior. A festa há muito que a merecia a santa, mas os proventos da arrematação dos pés e orelhas de porco, de duas ou três dúzias de ovos e de alguns enchidos provenientes do pagamento de promessas, mal chegavam para lhe pagar a missa e comprar algum adorno.

Valera a generosidade do brasileiro que pôs os paroquianos em excitação, com recados enviados a parentes e amigos e data da festa anunciada.

Com farinha peneirada, ovos guardados e açúcar comprado, apalavrada a banda da Parada e encomendado o foguetório no Porto da Carne, a uma semana da festa, veio o pároco anunciar, durante a missa, que Sua Santidade tinha declarado falsa a santa, sacrílega a devoção e, assim, era impossível a festa. Manifestou tristeza suficiente, por solidariedade para com os paroquianos, que da decisão papal não cabia recurso. Ainda propôs outro santo, com certificado de garantia, de sexo diferente e idêntica virtude, para a substituir nos festejos. Deixou à reflexão dos paroquianos. E do brasileiro, subentendia-se. Qual quê? Goradas as expectativas, enxovalhada a crença, arruinadas as orações cuja permuta de intenções não admitia retroatividade, só restava um vago ressentimento e uma sensação de injustiça e impotência.

O brasileiro a quem a generosidade assegurara lugar cativo na primeira fila da igreja ficou lívido, primeiro, a vacilar na fé e nas pernas, ressentido depois e a remoer vingança.

Impediu-o o medo do Inferno e a inutilidade de demandar o papa de exigir a devolução do óbolo, ficando-se pela desolação e algumas obscenidades com sotaque, enquanto os paroquianos se dividiram entre o brasileiro e os sacramentos, a devoção e o padre, o papa e a santa, acabando por regressar ao redil e à fé dirigida de Roma. Apenas o brasileiro, por brio, passou a frequentar a missa em Vila Fernando, com outro padre, no tempo em que ainda se demorou. Manteve a devoção mas trocou de corretor.

Ninguém percebeu porque se demitiu do altar uma santa que lograra prestígio igual ao de santa Bárbara a amainar trovoadas e maior que o de S. Sebastião que, para além de mártir, não se lhe conhecia na paróquia outro feito que o recomendasse, não desfazendo, é claro, na seta que o trespassava em perpétuo sofrimento. Era difícil rezar a santos que não faziam milagres quando se apeava quem os fazia.

Creio que ao medo do castigo divino e à falta de alternativas se ficou a dever a persistência na fé, posta em causa de forma demolidora por motivos insuficientemente explicados e com despesas já feitas.

Não estralejaram foguetes, não se ouviram os acordes da banda, não se provaram as guloseimas. A imagem, ferida na estimação e na virtude, foi parar à sacristia, por decreto, condenada à solidão e ao esquecimento, à espera de que algumas gerações de crentes se finassem para reaparecer, quem sabe, com outro nome e renovados poderes. Assim a fé e a sociedade o consintam ainda. Os mordomos ficaram designados para as próximas festividades conservando o prestígio e as prerrogativas.

A santa e o brasileiro nunca foram ressarcidos da desgraça.

16 de Janeiro, 2013 Carlos Esperança

Jerónimo Felizardo, temente a Deus – Conto pio

Foram-se as indulgências…

Jerónimo Felizardo estava a aliviar do luto a que a perda da amantíssima esposa o obrigara. Não se pode dizer que lhe fora muito dedicado em vida nem tão pouco excessivamente fiel. Mas habituara-se a ela como um rafeiro ao dono que o acolhe.

Sentia-lhe agora a falta. Deolinda de Jesus dera-lhe tudo. Mesmo tudo. Até o que é obrigação e nela nunca foi devoção e, muito menos, entusiasmo. Deu-lhe independência económica, boa mesa, respeito e uma filha. Deixou-lhe uma pensão de professora, metade do ordenado do 10º. escalão, que acrescentava a outros proventos e o punham ao abrigo de sobressaltos.

Com a filha não podia contar. Fora para Lisboa frequentar a Católica a cujo curso e influência deve hoje o desafogo em que vive e o lugar importante no Ministério. Metera-se no Opus Dei e enjeitou a família. Mesmo a mãe a quem fora muito chegada só lhe merecera duas breves visitas nos três anos de doença prolongada com que Deus quis redimi-la do pecado original.

Era natural que substituísse as visitas por orações, que não exigiam deslocações nem hora certa, que haviam de prolongar a vida e o sofrimento, assim Deus a ouvisse. E ouvi-la-ia de certeza porque, além de omnipotente e omnisciente, vinham duma devota fiel à instituição que o Papa amava quase tanto como à bem-aventurada Virgem Maria.

A poucos meses de fazer meio século Jerónimo empanturrava-se de comida que Carolina, afilhada do crisma de D. Deolinda, se esmerava a cozinhar com um desvelo que a filha nunca revelara. Bem sabia que a gula era um pecado capital mas que a prática e o exemplo eclesiástico largamente tinham despenalizado. Nem mesmo o Prefeito para a Sagrada Congregação da Fé, tão cioso guardião da moral e dos bons costumes, o valorizava demasiado. A gula não é propriamente a luxúria que é das maiores ofensas feitas a Deus, pecado dos maiores e, de todos, o que mais contribui para a perdição da alma.

Em tudo o mais era Jerónimo um viúvo modelo. Dera-se à tristeza e à oração. Arrependia-se das vezes em que não cumpriu o dever da desobriga, da frequência escassa à eucaristia, das missas a que faltou, em suma, das obrigações de cristão que não cumpriu com a intensidade, duração e frequência que recomendava a Santa Madre Igreja. Mas, de tudo, o objeto maior de arrependimento era o adultério que cometera e em que, sempre confessado, reincidiu.

Mas isso terminara há muitos anos. A infeliz que seduzira casara e virara fiel ao marido a quem agradecia tê-la recebido canonicamente apesar de saber que já não ia como devia. Conformado, não se importando de ficar com mulher que já não ia inteira, nunca suspeitou de ornamentos de homem casado, sempre julgou que o autor era um antigo namorado que a morte por acidente impediu de reparar a desonra.

Desse pecado se redimira já, pela confissão, penitência e promessa de nunca mais pecar. Agora, à castidade que se impunha, ao cumprimento dos mandamentos a que se devotara, juntava uma vontade forte de conquistar indulgências nesse ano 2000 do Grande Jubileu.

Bem sabia que as indulgências requerem sempre a confissão sacramental, a comunhão eucarística e a oração pelas intenções do Papa, condições sine qua non para a sua obtenção . Quanto às disposições para a sua aquisição não era difícil cumpri-las. Bastava peregrinar a uma Basílica, Igreja ou Santuário designado para o efeito, e eram várias as opções na diocese, e rezar o Pai Nosso, recitar o Credo em profissão de fé e orar à bem-aventurada Virgem Maria, tarefas de que se desobrigava com prazer e entusiasmo. Mesmo a recomendável contribuição significativa para obras de carácter religioso ou social estava ao seu alcance e não deixaria de fazê-lo.

Embora gozando de excelente saúde e de razoáveis análises nunca é demasiado cedo para o sincero arrependimento e cuidar da alma. Veio a calhar o ano do Grande Jubileu que Sua Santidade avisadamente instituiu nesse Ano da Graça de 2000.

Jerónimo, tomou como bênção do Céu ter ficado Carolina a cuidar dele. Antes de recolher-se ao quarto rezavam os dois, todos os dias, por D. Deolinda, Esposa e Madrinha, respetivamente, para que a sua alma mais rápido entrasse no Paraíso, aliviada das penas do Purgatório.

Passava os meses dedicado à oração, à penitência e à agricultura, outra forma de penitência que alguns teólogos interpretam como a mensagem do anjo do 3º. ex – segredo de Fátima. Disse-me padre amigo, e não incréu militante, que a penitência que o anjo três vezes pediu era uma forma de exigir dedicação à agricultura, modo de empobrecer e salvar a alma, vacina contra os sectores secundário e terciário onde os homens perdem a fé e a Igreja os fiéis.

No primeiro dia de Maio, a seguir ao jantar, horas depois dos comunistas ateus se terem manifestado nas ruas de Lisboa e Porto, enquanto Carolina ficou a arrumar a cozinha, foi Jerónimo ao mês de Maria, ato litúrgico que na sua cidade de província sobreviveu à conversão da Rússia e à consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria.

À saída da igreja entrou no carro, dirigiu-se à quinta que distava duas léguas da cidade, deu um bocado de conversa ao caseiro e uma olhadela às vitelas, distribuiu-lhes ele próprio um pouco de ração, mandou verificar a pedra que tapava o buraco das galinhas, para protegê-las da raposa, deu a bênção aos afilhados, filhos do caseiro, e regressou à cidade onde viveu em vida de D. Deolinda, por vontade dela que detestava a lavoura e o campo, e agora por hábito e fidelidade à memória da falecida.

Ao regressar a casa admirou-se de ver todas as luzes acesas, exceção para o seu quarto que a luz do corredor iluminava discretamente.

Ia entrar em busca da santa Bíblia quando, sobre uma colcha de seda, na cama, deparou com o corpo esbelto de Carolina, esplendorosa escultura de 20 anos à espera de ser percorrida, vestida apenas de penumbra e longos cabelos castanhos esparsos sobre o peito, donde brotavam túmidos mamilos à espera de afago.

O quarto parecia iluminar-se progressivamente. Já uns lábios carnudos se ofereciam sequiosos, já um corpo arfava em pulsações rápidas, num incontido furor de ser possuído, numa ânsia insuportável de ser saciado, primícias ávidas em busca de ser saboreadas.

Jerónimo sentiu sobrar-lhe roupa e minguar-lhe a resistência.

Foram-se as indulgências.

23 de Dezembro, 2012 Carlos Esperança

O S. Roque (Crónica)

Ficou-me de criança a impressão de que a ermida do S. Roque, na margem esquerda do Côa, estava alcandorada num monte enorme e que ao sacrifício da subida se deveria a recompensa dos milagres.

Hoje, ao passar na A25, sobre a ponte rodoviária, surpreende-me lá em baixo uma capela exígua abandonada num pequeno cabeço, com a vegetação a apropriar-se da área da devoção e dos negócios. Onde está um chaparro negociava burros um cigano, onde a Lurdes começava às dez a aviar copos de meio quartilho, para terminar às 3 da tarde com o pipo e a paciência devastados, medram giestas e tojos e o abandono tomou conta do espaço onde estava sediada a feira e se realizava a festa.

Onde os solípedes e as pessoas alcançavam não sobem ainda hoje os automóveis.

Eu gostei, ainda gosto, de romarias. Mesmo com milagres cada vez mais raros, a acontecerem na razão inversa dos louvores, encontramos sempre caras que atraem afectos e nos devolvem memórias. Às vezes não são quem pensámos, os anos passam, são filhos, mas vale a pena, falam-nos do que nós sabíamos, são da terra que julgámos.

Há quase sessenta anos, o Rasga foi ao S. Roque com a mulher, ela cheia de fé, ele com muita sede, como sempre, até a cirrose o consumir. A feira e a romaria partilhavam a data e o espaço. Não sei das promessas dela, as mulheres lá tinham contratos com os santos, não era costume explicitá-los, ele tinha as mãos cheias de cravos, coisa de rapaz, julgava que era feitio. A mulher dissera-lhe que havia de ir ao S. Roque, o Maravilhas curou-se, o Ti Velho também, pelas outras aldeias ia a mesma devoção, os resultados eram de monta.

O Rasga até tinha pensado no ferrador, não para ferrar o macho, ele queimava os cravos, mas eram grandes as dores, ficavam as mãos com marcas piores que a cara do Medo com as bexigas, e a febre, às vezes, levava a gente. Já se acostumara, não valia a pena ralar-se, o pior era a mulher a azucrinar-lhe os ouvidos, tens de ir ao S. Roque, se trabalhasses em vez de beberes havias de ver o incómodo, eu faço-te companhia, és um herege, uma oração, uma pequena esmola, dois cruzados, um quartinho no máximo, o S. Roque não é interesseiro, vens de lá bom, levas a burra que já mal pega em erva, enjeita os nabos, não temos feno, há-de morrer-nos em casa, além do prejuízo vais ser tu a enterrá-la, podias vendê-la.

E lá foram os três, que a burra também contava, partiram quando a Lurdes e a Purificação já levavam uma légua de avanço, tinham bestas lestas e levantavam-se cedo, era mister que se antecipassem aos homens que quando chegavam logo queriam matar o bicho e os negócios não podiam fazer-se sem haver onde pagar o alboroque.

O Rasga, mal chegou, pediu três notas pela burra a um da Parada que lhe ofereceu duas, a mulher do da Parada ainda o puxou, homem para que queres a burra, o rachador do Monte meteu-se logo, isto não é assunto de mulheres, tinham que fazer negócio, tem que tirar alguma coisa, não tiro, dou-lhe mais uma nota de vinte, tiro-lhe essa nota, nem mais um tostão, e o do Monte a dizer racha-se, vários a apoiar, fica por duas notas e meia, o rachador a agarrar-lhes as mãos, estranha união, e a fazer com a sua um corte simbólico, deram as mãos estava feito o negócio, um tirou cinquenta o outro deu mais cinquenta, consumada a liturgia logo assomou meia nota de sinal, faltavam duas que apareceriam quando lhe entregasse o rabeiro, vai uma rodada, paga o vendedor que recebeu o dinheiro, primeiro um copo para o comprador, o rachador a seguir, depois para todas as testemunhas, outra rodada paga o comprador, outra ainda, esta pago eu, diz um da Cerdeira, não quero mais diz o de Pailobo, morra quem se negue, praguejou um da Mesquitela, olha vem ali o Proença da Malta, grande negociante, como está, disseram todos, uma rodada, pago eu, diz o Proença, mas a minha primeiro, exigiu o da Cerdeira com agrado geral, e ali ficaram a seguir os negócios, os foguetes e a festa, e a tirar o chapéu e a agradecer ao Proença quando este foi dar a volta pelo sítio do gado onde já se encontrava o Serafim dos Gagos a disputar-lhe o vivo e a pôr a fasquia aos preços.

Findas a feira e a festa, esta terminou primeiro, um dos padres ainda tinha de levar o viático a um moribundo de Pínzio, o Rasga e a mulher vinham consolados, ela com a missa e a procissão, ele com duas notas e meia no bolso e o buxo cheio de vinho, ela a pensar na vida e ele a cambalear.

Algum tempo depois perguntei ao Rasga o que era feito dos cravos. Ficaram no S. Roque, menino, ficaram no S. Roque.

In Pedras Soltas (Esgotado)

13 de Agosto, 2012 Carlos Esperança

A Virgem Maria (Crónica pia)

A Virgem Maria, farta das companhias e do Céu, onde subiu em corpo e alma, aborrecida do silêncio e da disciplina, cansada de quase vinte séculos de ociosidade e de virtude, esgueira-se às vezes pela porta das traseiras e desce à Terra.

Traz a ladainha do costume, a promoção do terço de que é mensageira e ameaças aos inocentes. Poisa em árvores de pequeno porte, sobe aos montes de altitude moderada e atreve-se em grutas, pouco recomendáveis para a virgindade e o reumatismo, sempre com o objectivo de promover a fé e os bons costumes, de abominar o comunismo e anatematizar os pecados do mundo.

A receita é sempre a mesma: rezar, rezar muito, rezar sempre, que, enquanto se reza não se peca. Não ajuda a humanidade mas beneficia o destino da alma e faz a profilaxia das perpétuas penas que aos infiéis estão reservadas no Inferno.
Surpreende que, sendo tão vasto o mundo, a Virgem Maria só conheça os caminhos dos seus devotos e abandone os que adoram um Deus errado e odeiam o seu divino filho que veio ao mundo para salvar toda a gente.

Fica-se pela Europa, em zonas não contaminadas pela Reforma, aventura-se na América Latina, eventualmente visita a África e nunca mais voltou a Nazaré e àqueles sítios onde suportou os maus humores do seu divino filho e as desconfianças do marido. Ficando-lhe as viagens de graça, por não precisar de combustível, não se percebe que não volte aos sítios da infância, não vá em peregrinação ao Gólgota, não deambule pela Palestina e advirta aqueles chalados de que o bruto e ignorante Maomé é uma desgraça que se espalhou pela zona como outrora a peste, que a única e clara verdade é o mistério da Santíssima Trindade.

Por ter hora marcada ou para não se deixar seduzir pelas tentações do mundo, a virgem Maria regressa ao Céu, depois de exibir uns truques e arengar uns conselhos, sem dar tempo a que alguém de são juízo a interrogue, lhe pergunte pela saúde do marido e do menino e lhe mande beijos para os anjos e abraços aos bem-aventurados que estão no céu.

Um dia a Virgem Maria, com mais tempo e autonomia de voo, encontra um ateu e fica à conversa. Há-de arrepender-se dos sustos que prega, das mentiras que divulga e chegar à conclusão de que o terço faz mal às pessoas, estimula o ódio às outras religiões e agrava as tendinites aos fregueses.

6 de Agosto, 2012 Carlos Esperança

Domingo de verão (Crónica)

Veio ameno este primeiro domingo de agosto com os corpos a aliviarem-se da roupa e dos preconceitos, mais recetivos às hormonas do que aos pios ensinamentos da Igreja.

As praias regurgitam de gente que, adorando o sol, procuram a sombra, divinizando a virtude se entregam ao vício, fazendo a apologia dos bons costumes se dão à relaxação, procurando nos corpos apetecidos o êxtase que o tato, a visão e o paladar propiciam.

Não há conselhos pios, homilias devotas, jejuns ou penitências que refreiem a louca sofreguidão do amor, rolando por entre rochas através da areia, corpos fundidos num arrebatamento, línguas sequiosas em busca da transfusão de saliva que, em vez de os aquietar, excita, partindo em busca de outras descobertas e novos fluidos.

Andam os padres um ano inteiro a pregar a castidade, as delícias do Céu e os castigos de Deus e vêm as hormonas, como tsunami fortuito, a ofender a moral e os bons costumes. Ficam as sotainas a apanhar mofo com padres dentro, desertas as sacristias com a água benta a cultivar bactérias e as igrejas abandonadas ou como meros adereços para fotos de casamentos.

As religiões inventaram deuses avessos ao prazer, alérgicos ao sexo e à carne de porco, seres misóginos que desconheciam a psicologia humana e o êxtase dos sentidos. É por isso que cobrem de ridículo os seus padres, a pregarem a moral para maiores de oitenta anos, enquanto nos cafés, esplanadas, jardins, campos e praias, corpos à solta partem em busca de outros, com mãos ágeis, fino olfato, olhos vivos e paladar guloso, percorrendo a geografia do prazer numa louca correria de quem sabe que a vida é breve e irrepetível.