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Categoria: Literatura

25 de Outubro, 2024 Eva Monteiro

Um Gesto de Altruísmo do Prof. Ricardo Oliveira da Silva

A AAP – Associação Ateísta Portuguesa teve recentemente o prazer de se fazer representar numa conversa online sobre o Ateísmo em Portugal e no Brasil. Esta conversa decorreu no dia 9 de Outubro no Canal de Youtube Ativistas Ateus do Brasil, com o objetivo de iniciar uma ponte entre as comunidades ateístas dos dois países.

Prof. Ricardo Oliveira da Silva

Desta conversa decorreu o contacto com o Professor Ricardo Oliveira da Silva que possui uma Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) e Mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). É Doutorado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Tem experiência na área de História, com ênfase em Historia das Ideias, Historiografia e teoria da História, História do Brasil republicano e História do Ateísmo. Atualmente é líder do Grupo de Pesquisa Ateísmos, Descrenças Religiosas e Secularismo: história, tendências e comportamentos, e faz parte do Grupo de Pesquisa História Intelectual, Produção de Presença e Construção de Sentido e do grupo História Intelectual e História dos Conceitos: conexões teórico-metodológicas. Esses grupos estão registrados no CNPq. É também membro do fórum acadêmico International Society for Historians of Atheism, Secularism, and Humanism (fonte).

Como autor prolífico na área do Ateismo, o Professor Ricardo Oliveira da Silva prontificou-se a disponibilizar aos nossos leitores algum do seu material sobre o tema, que aqui se reproduz.

A AAP agradece este gesto de incrível altruísmo que me muito ajudará a nossa comunidade a melhor compreender o ateísmo, em particular no Brasil.

23 de Setembro, 2024 Onofre Varela

“A verdade liberta. A mentira prende”

Em 2007 a Editorial Caminho editou o meu livro “O Peter Pan Não Existe – Reflexões de um ateu”, obra que me ocupou cinco anos de escrita e, ao que julgava saber, a edição estaria esgotada… porém, dois amigos, num espaço de tempo curto e em livrarias diferentes, conseguiram o livro! Combinamos um jantar para dar à língua, recordar tempos passados e poder dedicar-lhes os dois exemplares do Peter Pan. Por essa razão peguei no exemplar que me resta em arquivo, abri-o ao calhas e, do que li, decidi fazer esta crónica.

Ao primeiro capítulo dei o título “A verdade tornar-vos-á livres. A mentira tornar-vos-á crentes”, frase que fui buscar ao Evangelho de S. João (8:32), para referir “crença e conhecimento”. A certo passo, digo assim: “Quem pensa que existe um ser supremo criador e dominador das vontades, não pode ser considerado menos, nem mais, inteligente do que aquele que não acredita em tal existência. Crença e conhecimento são matérias diferentes, antagónicas, mas que podem coabitar pacificamente no mesmo cérebro. O pensamento e a sabedoria são duas matérias primas da Filosofia e podem funcionar como terapia do espírito. Ambos «curam» ou aliviam algumas das nossas maleitas. Os nossos maiores males, quando não são de ordem natural, provêm de imposições alheias que resultam em aflições sociais e económicas, ditadas pelo meio onde nos inserimos e que nos faz sofrer. Deste sofrimento não podemos sair unicamente por nossa livre vontade (não é o mesmo que sair do autocarro). Somos vulneráveis e, por isso, também buscadores constantes da satisfação e do consolo que cada um pode encontrar em lugares distintos. O apuro dessa satisfação e desse consolo passa, inevitavelmente, pela qualidade do nosso pensamento e da nossa sabedoria. O apuro dessa qualidade, não se conseguindo no ensino oficial, terá de ser procurado por cada um, vendo, ouvindo, lendo e pensando. Quem assim não procede sujeita-se à educação padronizada que modela a sociedade em que o indivíduo se insere e que é, por mor de outros interesses que não os seus, nivelada pela matriz dos valores sociais estabelecidos – isto é: invariavelmente, por baixo – tornando-nos massificados, transformando cada um de nós num modelo estereotipado como alvo à mercê de quem vive da exploração dos nossos sentimentos programados”.

A melhor escolha na vida é cada um informar-se e ilustrar-se para poder pensar pela sua própria cabeça, não se deixando anestesiar por discursos de quem nos quer convencer, sejam agentes religiosos ou políticos. Tais agentes estão, continuamente, em “modo pré-eleitoral” tentando pescar adeptos para os seus grupos. Ao ouvirmos o palavreado que debitam nos vários púlpitos… temos de os peneirar criteriosamente… para (como se diz no meu meio) não sermos “comidos por lorpas”!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

19 de Agosto, 2024 Onofre Varela

“O Homem Criou Deus”

“O Homem Criou Deus” é o título do livro de que sou autor e foi editado pela Edium Editores em Dezembro de 2011. A obra, que estava esgotada, teve agora uma segunda edição revista e aumentada (muito aumentada!) pela Seda Publicações (herdeira da Edium), em Junho de 2024.

Adão era canhoto”, ilustração do autor para a capa do livro. Grafite e lápis de cor.

São 411 páginas (contra as 239 da primeira edição) onde discorro sobre o tema Religião de acordo com a minha ideia de não crente e como cidadão interessado no fenómeno religioso, assumindo-me crítico, não da fé (que é perfeitamente lícita) mas sim da exploração que dela se faz através de credos religiosos estabelecidos na sociedade, mas também da Política e da Economia, os outros dois poderes sociais que, somados à fé religiosa, constituem “a troica” que nos submete a situações indesejadas, mas que aceitamos docilmente pela “anestesia da fé” (seja em Deus ou nos gurus de seitas e partidos políticos). São situações de “escravatura mental” a que nos submetemos sem disso darmos conta.

Do sumário do livro destaco alguns temas:

A criação do conceito de Deus (criado por sentirmos necessidade dele, pois o Homem só cria o que necessita); Bíblia e História; a poesia contida no Génesis; os feitos de Moisés que a História não regista; fundamentalistas religiosos que atacam o Humor e assassinam Caricaturistas; o Mito e a Razão; o Sudário de Turim; a Arte e o Sagrado; Mulher, a eterna vítima das sociedades patriarcais bíblicas e corânicas; a desumanidade e selvajaria da Pena de Morte; as fantasias da Trindade e do Dogma; Jesus Cristo e o seu tempo, os Evangelhos e o seu valor social, hoje.

Deixo-vos três parágrafos do livro, como aperitivo:

«…Nas democracias é norma afirmar-se o respeito pelo outro e o reconhecimento dos direitos de todos, incluindo as minorias. Mas também é comum vermos esses direitos constantemente atropelados, com incidência no modo como se tratam etnias e as mulheres. Até no mercado de trabalho, nesta nossa sociedade tão ciosamente democrata e temente a Deus, as mulheres desempenham funções iguais às dos homens, com a mesma capacidade e perfeição, mas auferem menor ordenado pelo facto de serem mulheres! Em Janeiro de 2018 circulava nos media a ideia política de se igualar os vencimentos de homens e mulheres, alertando-se a opinião pública para o facto de os homens ganharem mais 17,8%…» (Página 268).

«…Hoje, quando assisto a uma missa, observando com olhos de antropólogo amador o que ali acontece, se diz e se sente, retrocedo para a Idade Média! Constato que a Igreja não ouviu os seus pensadores […] nem nada de mais actual transmitiu à sua clientela consumidora de missas, do que aquilo que vem transmitindo desde o tempo em que a ignorância imperava sobre os povos crentes anteriores ao Iluminismo… e os seus clientes continuam a afluir em rancho!… Isto parece-me negativamente impressionante e alimenta a minha preocupação e desconfiança no futuro próximo, por me aperceber da existência de tantos cérebros tão mal alimentados e desaproveitados! A qualidade do interesse intelectual da maioria de nós… também é mito…» (Página 351).

«…Se Jesus Cristo vivesse hoje não faria carreira no Vaticano, nem a sua doutrina seria aprovada após uma inspecção teológica de Ratzinger, nem como cardeal, nem travestido de Papa Bento 16. Jesus foi um político do seu tempo, protestante da religião judaica a qual pretendeu purificar. Hoje seria um feroz crítico do luxo que a Igreja ostenta desde a Alta Idade Média. Talvez por isso a Igreja dê uma grande importância a Maria, porque a sua imagem (ao contrário da do filho) não está comprometida com a Esquerda! Maria não cria problemas ao nível da política; e Jesus, tendo em conta a sua conduta social, até pode ser sindicalista e comunista!…» (Página 376).

Os interessados no livro podem encontrá-lo no Porto, na UNICEPE. Praça de Carlos Alberto, 128 A. Telefone 22 205 66 60 (na esquina da Praça dos Leões). Quem está longe do Porto pode contactar o editor: www.gugol-livreiros.pt

24 de Junho, 2024 Onofre Varela

O HOMEM CRIOU DEUS

O Homem Criou Deus, de Onofre Varela. Apresentado no ATENEU COMERCIAL DO PORTO por Renato Soeiro. Este sábado, 29 de Junho, às 16h00.

Obviamente o Homem já existia quando lhe ocorreu a ideia de criar um deus que o criasse. Sem Homem não haveria Deus.

Onofre Varela – O Homem Criou Deus
17 de Junho, 2024 Onofre Varela

A Liberdade Que Abril Nos Deu

Que Histórias se contam na Bíblia?

A minha experiência de ser silenciado pelo poder religioso e político em tempo de Democracia, aconteceu pela primeira vez em 1978 no jornal O Primeiro de Janeiro (PJ). Portanto, já com a Liberdade de Expressão instalada há quatro anos pela Revolução dos Cravos, e instituída há dois anos pela publicação da Constituição da República Portuguesa (1976).

Andava eu a ler o livro “A Bíblia e os Extraterrestres”, do advogado francês e perito em Língua Hebraica, Pierre-Jean Moatti, acabado de ser editado (pela Via Editora, Lisboa, 1978) e cujo conteúdo me remeteu para a leitura da Bíblia procurando comprovar as citações do autor.

Em Êxodo 19:16-20, é narrada a descida de Deus sobre o Monte Sinai do seguinte modo que me pareceu espectacularmente cinematográfico: “E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando” (?!). Fiquei curioso e intrigado!… Deus precisava de fazer um cagaçal de tal tamanho para se mostrar à malta?!… Esta imagem fantástica remeteu-me para a descida de uma nave espacial, com fogo e fumo dos jactos, mais um ruído de motores de tal modo ensurdecedor e potente que fez tremer o monte!…

Nesse tempo eu tinha iniciado uma rubrica onde escrevia semanalmente um texto com o título genérico OVNI’s EXISTEM, onde comentava as observações de Objectos Voadores Não Identificados, que estavam tão em voga e era raro o dia em que não houvesse notícia dando conta de uma estranha observação nos céus em qualquer parte do mundo.

Módulo Lunar, o engenho espacial que permitiu ao Homem pisar outro planeta. Repare-se no seu aspecto zoomórfico. O habitáculo e módulo de subida sugere-nos uma cabeça. As suas janelas triangulares são dois olhos de expressão agressiva, e a porta de entrada uma boca ameaçadora pronta a morder. O andar de descida é um corpo munido de possantes membros que o fixam ao chão.

Impressionado com a leitura da Bíblia e do livro de Pierre-Jean Moatti (que me remetia para a ideia de termos sido visitados, em tempo tão recuado, por seres oriundos de outras paragens cósmicas) publiquei no dia 5 de Novembro de 1978, o primeiro artigo de uma série de três, com o sugestivo título: “A Verdade da Bíblia (1) – Os Colonos que Vieram do Cosmos” com uma ilustração legendada (e publicada aqui).

Quando, no dia da publicação, entrei ao serviço no início da tarde, o director chamou-me. Na sua secretária tinha o jornal aberto na página onde saiu o meu artigo. Perguntou-me o que queria dizer aquele número um entre parêntesis. Ficou a saber que referia o primeiro artigo de uma série de três.

A sua reacção foi peremptória: proibiu-me de escrever mais sobre qualquer tema que abordasse a Bíblia, ou qualquer outro assunto relacionado com religião. Alegou ter recebido “telefonemas de leitores indispostos com o meu texto e não queria perder leitores”.

Assim ficou aquela série, de três artigos, pela publicação do primeiro!… Com o correr do tempo percebi que “os telefonemas de leitores indispostos com o meu texto” não era mais do que uma desculpa “de mau pagador”… fui-me apercebendo de factos que me levaram a concluir que aquilo não foi mais do que o cumprimento dos recados da Igreja levados ao director por um lacaio da seita Opus Dei que várias vezes por mês reunia com ele (e também com o director do JN) ao início das madrugadas!…

Tinham passado quatro anos após o 25 de Abril, e dois sobre a publicação da Constituição da República Portuguesa onde se afirmam as liberdades de expressão e de culto… mas o raciocínio daquele director ainda não se adaptara ao novo regime e parecia obedecer a ordens eclesiásticas.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

16 de Abril, 2024 Onofre Varela

Vamos enterrar Deus?

Não. Não vamos. O meu discurso de ateu não pretende acabar com a ideia de Deus. Não é essa a minha intenção nem tal coisa é possível. São bem profundas as raízes do divino na estrutura da mente e na história das civilizações. O Homem “criou Deus à sua imagem e semelhança” porque precisou dele… e contra tal necessidade não se pode lutar irracionalmente. Mas é sempre possível lançar na mente de quem ainda alimenta a curiosidade, a interrogação sobre o porquê das coisas, incluindo nelas a sua própria fé, não se deixando embebedar pelo “medo do castigo divino”.

A cabeça do crente é o verdadeiro “reino de Deus”… fora dela, não há Deus em lado algum, nem há castigos ou prémios divinos. Deus é um conceito civilizacional para ser guardado no baú dos avós como objecto de extrema importância na História do Pensamento… aí o devemos manter com a consciência de ter sido um elemento de peso na nossa evolução e na construção das civilizações, mas hoje não passa de elemento folclórico com valor antropológico. Pertence a uma “arqueologia do pensamento” e só é usado como artimanha fantasiosa pelos industriais da exploração da fé, no sentido de burlarem os necessitados da droga do divino na convicção de que a “necessidade de Deus” é fundamental para se “viver com decência religiosa”… o que me parece indecente!…

Gianni Vattimo em 1980. Adriano Alecchi /Alamy

Tal como diz o filósofo italiano Gianni Vattimo, “chega um momento em que [as religiões] já não são necessárias. E esse momento é a nossa época, porque, como pode ver-se em muitos aspectos da vida actual, as religiões já não contribuem para uma existência humana pacífica nem representam um meio de salvação. A Religião acaba por ser um poderoso factor de conflito em momentos de intercâmbio intenso entre mundos culturais diferentes” (Gianni Vattimo, filósofo e político italiano, no artigo de opinião: “É a Religião Inimiga da Civilização?” Jornal El País, 1/3/2009).

O sentido religioso não está morto nem morrerá jamais… ele é intrínseco ao funcionamento do nosso cérebro. Somos um ser religioso por excelência. Mas a “morte de Deus” vaticinada por Nietzsche é factível e pode considerar-se, já, nesta realidade actual: “o que está morto, num sentido mais profundo, são as religiões morais como garantia da ordem racional no mundo”, como diz o filósofo citado. Hoje o valor da prática de uma qualquer religião só é encontrado a nível da Sociologia, da Antropologia e da Psicologia, os ramos da Ciência que estudam os complexos sistemas de crenças que formatam as sociedades.

Desformatá-las desse modelo não é tarefa fácil nem é coisa que se consiga em duas ou três gerações. Aliás… entre nós podemos aquilatar dessa dificuldade olhando para o resultado da “Revolução dos Cravos” tão acarinhada há 50 anos pela esmagadora maioria dos Portugueses que tanto a desejavam como libertadora de uma ditadura. Duas gerações depois, os inimigos dos militares da Revolução e dos ideais que a fizeram, e que são amigos do regime deposto querendo recuperar sistemas sociais indesejados por quem respeita o próximo, sobem as escadas do poder empurrados, também, por seitas religiosas!…

É um fenómeno resultante dos problemas sociais que os governos que temos tido não foram capazes de resolver… e não os resolveram por uma questão muito simples: é que nas cadeiras do Poder nunca estão sentados os melhores de nós… são os mais “reguilas” (reguila é sinónimo de “burro-armado-em-inteligente”) que se perfilam nos actos eleitorais e são votados. E nós acorremos às assembleias de voto com a mesma convicção de “obrigação satisfeita” sentida pelo católico quando toma a hóstia na santa missa!…

Os cultos religiosos só são operantes porque há uma sedimentação do pensamento do divino como resquício do nosso primitivismo. Em alguns locais deste meu lindo país, quando me afirmo ateu pedem-me para “falar baixo”, olhando em todas as direcções para comprovarem a intimidade da minha declaração! É um medo patético semeado por quase nove séculos de monarquia de mãos dadas com a Igreja medieval, adubado por 40 anos de ditadura política de braço dado com a mesma Igreja, e pouco regado por cinco décadas de Democracia que se esqueceu de prolongar no tempo o Ideal Social da Revolução dos Cravos… a qual hoje é contestada, também, pelos piores de nós!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

23 de Junho, 2018 Vítor Julião

O gato do ashram

 

“Quando, às tardes, o guru se sentava
para as práticas do culto, o gato de ashram
tinha por norma vaguear entre os fiéis.
Como a estes distraísse,
mandou o guru que atassem o gato
enquanto o culto se desenrolasse.

 

 “Muito depois de o guru ter desaparecido,
continuavam a prender o gato
durante o culto já referido. E quando o gato morreu,
arranjaram outro para o ashram
para o poderem atar durante o culto vespertino.

 

“Séculos mais tarde, os discípulos do guru
escreveram tratados
sobre o imprescindível papel
desempenhado pelo gato na realização
de um culto como o estabelecido.”

 

Texto de Anthony de Mello (El canto del pájaro)

23 de Junho, 2018 Carlos Esperança

Terras da Beira (Crónica)

São cada vez mais os mortos que povoam os cemitérios e menos os vivos que ficam. Os jovens saíram pelas estradas que invadiram o seu habitat. Fugiram das courelas que irmãos disputavam à sacholada e à facada, dos regatos que secaram a caminho das hortas, da humidade que penetrava as casas e os ossos e da pobreza que os consumia.

Não há estímulo para permanecer. Não se percebe que as penedias tivessem custado vidas na disputa da fronteira, que homens se tivessem agarrado aos sítios e enchido de filhos as mulheres que lhes suportavam o vinho, a rudeza e os maus tratos.

Os tempos mudaram e os campos, abandonados, são pasto de chamas que lhe devoram a vegetação, no estio, e os entregam à erosão, no Inverno.

Os funerais são o momento de fazer o recenseamento dos que resistem. Nas missas, os padres, em via de extinção, debitam com ar sofrido a homilia, com pressa de passar à paróquia seguinte e sem coragem para falar do Inferno. Ora, sem medo, sem ameaças e sem convicção não há fé que resista ao ar lúgubre de uma igreja, ao frio do lajedo e às imagens que substituíram as antigas, que rumaram aos antiquários.

Falar de castidade a quem a idade condenou à abstinência, dos malefícios do aborto a quem passou há décadas a menopausa e na obrigação de aceitar os filhos que Deus mandar a quem já não é capaz de os gerar, é persistir em rotinas que a desatenção e a demência cultivam.

Vou frequentemente à Beira onde nasci. São poucas as pessoas que permanecem. O País inclina-se perigosamente para o mar com o interior despovoado, a caminhar para o deserto. Outrora, aquela zona foi um alfobre de gente; hoje é um cemitério de recordações, em vias de extinção.

A nossa incúria vai reduzindo Portugal a uma estreita faixa com mar à vista. Até o Presidente da República diz que devemos virar-nos para o mar. É uma forma de nos afogarmos de frente.

Publicado no JF em 21-09-2006

In Pedras Sousas – Ed. 2006 (esgotada)

20 de Maio, 2018 Carlos Esperança

A Senhora do Monte – Crónica pia

Nas aldeias da Beira Alta era hábito rezar, pelas intenções plenárias de cada mês, nas primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, ir ao confesso e à eucaristia e, assim, alcançar as indulgências exigidas para a salvação da alma. Podia parecer injusto pôr garotos a rezar por pecados dos adultos, mas já se sabia que outros garotos o fariam quando adultos se tornassem esses para apreciar os pecados. Ficavam as rezas para as mulheres, que sempre as fariam, para os que ainda não sabiam pecar e para os que, sabendo, já não podiam. Era assim, há meio século, e disso se não livrou a criança que fui. Além das devoções locais outras havia que se cumpriam em paróquias próximas, que os transportes não permitiam lonjuras, com dia certo e local aprazado. A Senhora do Monte era um desses destinos.

Guardo da infância o gosto por romarias. Os santos domiciliavam-se no alto dos montes para ficarem a meio caminho entre os devotos que lhes pediam e o céu que os atendia. Eram mensageiros dedicados, imóveis numa peanha, ouvindo queixas, aceitando petições, a aliviarem o sofrimento. Raramente eram solicitados além das suas posses e, se soía, resignavam-se os mendicantes. Quanto mais perto do céu, maior respeito infundiam, mais petições recebiam, maiores expectativas geravam. Eu ficava a imaginar do que seriam capazes os que habitavam no cimo de montanhas muito altas, que sabia haver, sem cuidar das dificuldades de acesso dos requerentes.

Durante o ano, os santos concediam graças que eram agradecidas em agosto com foguetes, missa e uma romaria profana que irritava os padres e alegrava os santos. Mas, de tanto pedirem, foi-se Deus cansando de os ouvir, primeiro, desinteressaram-se os crentes de implorar, depois, ou, talvez, a sangria da emigração converteu em deserto o terreno fértil da fé. É com saudade que recordo as ermidas abandonadas que outrora atraíam à sua volta feiras e procissões em confronto dialéctico do sagrado com o profano numa síntese admirável de que só o mundo rural era capaz.

A Senhora do Monte pertencia à paróquia da Cerdeira. Às vezes os santos tomavam as dores dos paroquianos e geravam a desconfiança dos vizinhos, mas não era o caso, por ser de concelho diferente e não haver rivalidades entre as paróquias.

Saíamos da Miuzela do Côa, manhã cedo, descíamos a aldeia, passávamos pela capelinha de S. Sebastião, deixando à direita, encostada ao cemitério, a vinha do passal que, no tempo da República, Paulo Afonso comprou à autoridade administrativa, valendo-lhe a excomunhão eclesiástica, vingança do pároco que reclamava a vinha e o regresso da monarquia. Viveu o réprobo em paz, sem que o anátema o apoquentasse, até ao dia em que teve de pedir a desexcomunhão, para que o filho pudesse franquear o seminário, custando-lhe a canónica amnistia outra vez o valor da vinha.

À beira do caminho havia agricultores, inquietos com a romaria, a guardar os melões, que a rapaziada cobiçava, e, ao longe, entre giestas, lobrigavam-se cachopas, deambulando à espera do encontro apalavrado, talvez mesmo alguma coitanaxa aflita por tornar-se dona.

Íamos pela fresca e regressávamos tarde, de estômago menos vazio, com fritos e vinho a justificarem a jornada, esquecida a devoção, a tropeçar nas pedras em noites de lua nova. Atrás de nós via-se um clarão, vindo da Guarda, à distância de seis léguas, no alto do monte onde chegara a luz eléctrica, com a ermida de onde voltávamos perdida na escuridão da noite.

A Senhora do Monte há muito que não fazia um milagre de jeito mas tinha festa rija e um passado de respeito. Um dia o fogo subiu o monte impelido pelo vento e envolveu a capela, com gente aflita a orar. Abriram as portas e redobraram as orações, que em tempo de aflição se reza mais depressa para compensar a desatenção e acompanhar a ansiedade. Deixaram que a virgem visse o fogo e este a virgem. Foi então que as chamas baixaram e logo o fogo se deteve, enquanto, maravilha das maravilhas, prodígio nunca visto, começou o fogo a recuar e, à medida que a terra desardia, tornaram as plantas que a cobriam.

A Santa, por ter-se cansado ou perdido o jeito, renunciou aos milagres, mas os crentes não desistiram de a ver regressar ao ramo e fazer jus à glória antiga. Ainda assim, era muito solicitada por raparigas solteiras que lhe imploravam para as livrar da prenhez que em horas do demo pudessem ter contraído. Foi como contraceptivo de eficácia duvidosa que conheci a Senhora do Monte nos tempos em que calcorreei os caminhos que lá me levaram.

Publicada no Suplemento de aniversário do JF, 28-01-2005

In Pedras Soltas – ed. 2006 (esgotada)

12 de Maio, 2018 Carlos Esperança

Duas mulheres, dois gestos de heroísmo silencioso (Crónica)

A brutalidade da violência contra mulheres, perpetrada por tribunais islâmicos, de que a condenação à morte por lapidação, em caso de adultério, é apenas a ponta do icebergue da crueldade atávica, aparece com medonha regularidade referida na comunicação social.
Entre a indignação e a revolta vêm-me à memória, vá lá saber-se porquê, dois transplantes de órgãos ocorridos nos Hospitais da Universidade de Coimbra, ambos no ano de 2001.

1 – Num qualquer dia de abril os médicos removeram uma fração de fígado de uma mulher saudável. Não foi divulgado o nome nem a idade. Foi apenas uma mulher com muito amor, autora de um gesto nobre, paradigma encantador a dar conteúdo à palavra Mãe. Sem hesitações. Sem medo. Determinada. Serena. Abnegada.
Muito perto, noutra cama, esperava o pedaço de fígado da dádiva uma criança para quem a porção de víscera era condição de sobrevivência.
No sofrimento foi possível a generosidade da mãe; na angústia a esperança da filha; na agonia a vida de uma criança.
É uma história de amor verdadeiramente visceral. É um grito de esperança a ressoar numa vida que não desistiu. É um hino de solidariedade escrito pela mãe que repetiu o parto e renovou a vida, poema de sangue escrito a bisturi com versos feitos de carne cosida com linha.
O tempo não será mais a medida destas vidas. Cada minuto foi uma centelha de eternidade. É preciso que os deuses tenham ensandecido para não recompensarem o gesto.
E nós, embevecidos com o milagre da cirurgia, nem nos damos conta do milagre maior que é o amor, sentimento que julgávamos já perdido algures entre a livre circulação de mercadorias e a acumulação contínua do capital.
Ficámos a saber que na bolsa de valores da consciência humana ainda há ações que valem a pena, porque são imunes aos humores e rumores do mercado, porque resistem à cotação do dólar e ao preço dos combustíveis fósseis, porque não dependem de ciclos económicos nem de jogos de poder.
Foi há mais de dois anos. Que será feito das vidas da mãe e filha esquecidas no turbilhão de escândalos e intermináveis guerras? Excetuando o arquivo da unidade de transplantes não é fácil que alguém as recorde. A memória regista mais facilmente o que há de pusilânime e fere a inteligência. E a maternidade é um ofício ancestral que se faz de graça e com naturalidade.

2 – Em outubro, outra mulher saudável e ainda jovem doou um rim. Um ato simples, apenas o risco assumido da própria vida na coragem de um gesto decidido. À espera, noutra cama, estava o filho.
Dentro de cada mãe há sempre uma mulher que emerge do estigma das milenárias burkas, qual águia presa ao chão sem poder voar, e que, libertando-se com um simples bater de asas, parte as grilhetas do medo e estilhaça a tradição.
Podem cobrir a cabeça de uma mulher com medo de que o pensamento a liberte, ocultar-lhe o corpo para lhe embotarem os sentidos, mas é a alma que alguns homens lhe querem aprisionada com receio de que desperte para o sortilégio da vida.
Quem é capaz de decidir do seu próprio sacrifício é porque encontrou o amor. Quem sabe do que é capaz o corpo, descobriu antes o que podia o espírito. A mãe que dá um rim ao filho doente é uma mulher corajosa.
Se a mulher foi criada a partir da costela de um homem ficou-lhe com a melhor. Quem lhe exige a submissão teme-lhe a inteligência ou duvida de si próprio. E nunca saberá amar.
Em Portugal, há apenas três décadas, a mulher precisava de autorização do marido para transpor a fronteira; a magistratura e a carreira diplomática eram-lhe inacessíveis; os direitos mais elementares eram-lhe recusados. Em nome da tradição e da moral.
Depois, foi uma longa e exaltante caminhada no país de Abril. De mãos dadas com os homens, seus irmãos. A caminho da libertação, homens e mulheres.
Hoje, um pouco por todo o mundo, subsistem sinistros guardiões de uma moral obsoleta qualquer, beatos implacáveis que sujeitam as mulheres à mais cruel e infamante das submissões. Quem lhes adivinha o rancor que os devora? Quem continuará a permitir-lhes a crueldade de que a mulher é a vítima predileta? Só a sofreguidão mística do paraíso pode conduzir à louca ambição de erradicar os infiéis, todos os infiéis, num proselitismo demente que atinge o êxtase na embriaguez da morte.
Em tais sociedades nenhuma mulher doará um rim. Não pode decidir como vestir-se e não lhe é permitido despir-se. Nem para doar um rim. Nem para amar. Nesses lugares a mulher não tem rins. Nem filhos. Simplesmente não existe, acorrentada pela violência da tradição e anulada pela atrocidade dos preconceitos.
Mas se à mulher é negado o direito à vida, o homem fica condenado à morte.
É por isso que precisamos de libertar-nos das burkas em que pretendem enclausurar-nos, da genuflexão a que querem submeter-nos, do livro único que querem impor-nos, dos lugares santos para que querem virar-nos. É a liberdade que é preciso conquistar e preservar. Para todos, homens e mulheres. Em todo o tempo. Em qualquer lugar.

Janeiro de 2004 – In Pedras Soltas (Ed. 2006 – esgotada) – Ortografia atualizada