2 de Julho, 2008 Mariana de Oliveira
Fátima vista por Pessoa
O poeta português Fernando Pessoa encarava Fátima como o lugar mítico da construção do nacionalismo católico e monárquico que ele repudiava, sustentou hoje o historiador José Barreto, antes de revelar um texto inédito do escritor sobre aquele lugar de culto.
«É um texto irónico, a roçar a sátira anticlerical, em que Pessoa parece regressar ao seu radicalismo de juventude. A intenção não é propriamente anti-religiosa mas anti-católica – uma ‘nuance’ que se deve sublinhar”, disse José Barreto numa conferência sobre “Pessoa e Fátima. A prosa política e religiosa», proferida hoje na Casa Fernando Pessoa.
Começa assim: «Fatima é o nome de uma taberna de Lisboa onde às vezes… eu bebia aguardente. Um momento… Não é nada d’isso… Fui levado pela emoção mais que pelo pensamento e é com o pensamento que desejo escrever», diz o poeta.
O texto inédito descoberto pelo historiador e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa é apenas «o preâmbulo de um artigo maior que teria um carácter de estudo de caso, permitindo caracterizar aquilo a que Pessoa chama ‘esta religiosidade portuguesa, o catolicismo típico deste bom e mau povo’», explicou, citando o poeta.
«Fatima é o nome de um lugar da provincia, não sei onde ao certo, perto de um outro lugar do qual tenho a mesma ignorancia geografica mas que se chama Cova de qualquer santa», observou.
«Nesse lugar – esse ou o outro – ou perto de qualquer d’elles, ou de ambos, viram um dia umas crianças aparecer Nossa Senhora, o que é, como toda gente sabe, um dos privilégios (…) a que se não (…). Assim diz a voz do povo da provincia e a ‘A Voz’ (jornal católico e monárquico) sem povo de Lisboa», prosseguiu.
«Deve portanto ser verdade, visto que é sabido que a voz das aldeias e ‘A Voz’ da cidade de ha muito substituíram aquelas velharias democraticas que se chamam, ou chamavam, a demonstração científica e o pensamento raciocinado», ironizou.
Pessoa denunciava o aproveitamento da crença do povo por parte do poder político e afirmava: «o facto é que ha em Portugal um lugar que pode concorrer e vantajosamente com Lourdes. Ha curas maravilhosas, a preços mais em conta», escreveu.
«O negócio da religião a retalho, no que diz respeito à Loja de Fatima, tem tomado grande incremento, com manifesto gaudio místico da parte dos hoteis, estalagens e outro comércio d’esses jeitos – o que, aliás, está plenamente de accordo com o Evangelho, embora os católicos não usem lê-lo – não vão eles lembrar-se de o seguir!», comentou.
O artigo sobre Fátima – que teria sete páginas tipográficas, de acordo com o sumário que Pessoa deixou escrito – destinava-se a ser publicado no primeiro número da revista Norma, um dos três projectos editoriais de Pessoa no ano da sua morte, em 1935, um quinzenário sobre Literatura e Sociologia que não chegou a concretizar.
Fonte: Sol, 02 de Julho de 2008.