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Categoria: Humanismo

12 de Dezembro, 2022 João Monteiro

Não tem nada a ver…

Texto de Onofre Varela, previamente publicado no jornal Alto Minho.

Este texto não tem nada a ver com falta de fé em Deus ou nos santos (ou talvez tenha!) e trata de um caso reportado pela imprensa há meia dúzia de anos. Vi-o no jornal Público do dia 25 de Setembro de 2016. A notícia pode ser contada assim: 

Nelson Ferreira nasceu em Angola e, em 1976, criança de cinco ou seis anos, veio para Lisboa na ponte aérea do IARN (Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais), ao abrigo do apoio prestado a quem queria abandonar Angola. Viajou na companhia da mãe e de seis irmãos, mas não sabia ser ela sua mãe, nem eles seus irmãos, porque aquela mulher sempre lhe disse ser sua tia, e as crianças seus primos. Ele e a “tia” eram negros. Os “primos”, brancos. 

O correr do tempo mostrou-lhe a falsidade do parentesco, e não tardou a ser abandonado pela progenitora. Enfrentou o dia-a-dia sozinho, e a necessidade de comer transformou-o num sem-abrigo inventando comida e consumindo droga, porque, quando drogado, o estômago não reclamava alimento. 

A sua vida estava ainda mais dificultada por não possuir documentos de identificação, os quais nunca teve. Aos 19 anos, farto daquela vida, e ansiando um futuro estável, arquitectou uma solução para concretizar o sonho de regressar a Angola, procurar família e fazer vida na sua terra. Urdiu um plano que, na sua jovem mente, não podia correr mal. Pensou que se cometesse um crime seria expatriado! 

Pegou numa pedra, partiu uma montra e esperou pela polícia. Foi preso. Contactadas as autoridades angolanas, não havia registo de nascimento daquele cidadão, pelo que não podia ser expatriado!… E porque cometeu o crime de partir um vidro em Portugal, não podia pedir a nacionalidade portuguesa, porque esta não é concedida a criminosos! A partir daí conheceu a cadeia por 17 vezes. 

Libertado condicionalmente por bom comportamento, encontrou-se perdido em Lisboa sem saber para onde ir. Na cadeia fez teatro. A actriz Mónica Calle encenou duas peças onde participou com excelentes resultados. Tinha um cartão da actriz e telefonou-lhe. Ela recolheu-o, permitindo que Nelson Ferreira dormisse no sofá da sala naquela noite. Depois se veria.

A partir daí já dormiu em casa de vários actores e participou em representações no Teatro S. Carlos. Quando não faz teatro, faz biscates e ganha para si, mas queria ter família, casa sua, e ser reconhecido como gente. Mas não tem e nem é!… Não passa de um apátrida, e se um dia é apanhado por uma rusga policial corre o risco de entrar de novo na cadeia por não ter documentos que atestem ser pessoa com direitos! 

A nossa sociedade “tão Cristã”, gerida por governos tão “Democratas-Cristãos”, não arranja solução para este homem que só reclama identidade e dignidade. Direitos que a hipocrisia social atropela. A abertura da Comunidade Económica Europeia ao capital selvagem, autorizado a delapidar o país e a explorar o Povo com salários baixos e trabalho gratuito, não tem olhos para este caso degradante, porque não lhe dá lucro. 

Os apátridas podem morrer na cadeia ou na indigência. Os nossos políticos, tão Democratas-Cristãos, comem todos os dias e dormem em camas fofas… para quê preocuparem-se? 

(Não sei se com o passar do tempo o caso foi resolvido. Espero que sim… que a notícia do Público tivesse alertado consciências e que Nelson Ferreira já seja considerado pessoa com a dignidade que, naturalmente, lhe é devida).

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

Imagem de Kira por Pixabay
30 de Agosto, 2021 João Monteiro

Comunicado – Direitos Humanos no Afeganistão

Associação Ateísta Portuguesa preocupada com o desrespeito pelos Direitos Humanos no Afeganistão

A Associação Ateísta Portuguesa, perante os últimos desenvolvimentos políticos no Afeganistão, vem demonstrar a sua preocupação com uma governação por Talibans e das consequências sociais que daí poderão advir.

A Associação Ateísta Portuguesa defende e promove valores que crê universais, como os direitos humanos, o livre-pensamento, a democracia, a laicidade ou a igualdade de género.

Estes valores poderão estar em causa no Afeganistão com a chegada ao poder de um regime conhecido por aplicar a sharia, ou lei islâmica baseada no Corão, representando por isso mesmo um atentado à laicidade que consagra a separação da religião do Estado. Recordamos que se o governo Taliban instituir um Estado de inspiração islâmica com a adoção da sharia, as outras religiões serão perseguidas e os ateus poderão ser executados, sendo essas atitudes uma afronta ao Humanismo Secular.

Também nos preocupa o retrocesso de direitos que irão afetar as raparigas e as mulheres afegãs, nomeadamente no acesso à educação, ao trabalho e à sua presença enquanto agentes na sociedade. Quando os Talibans governaram o país no passado, as raparigas eram impedidas de estudar, as mulheres de trabalhar e os seus direitos e liberdades estavam limitados.

Perante isto, a Associação Ateísta Portuguesa apela às instituições políticas nacionais e internacionais que tomem ações políticas que minimizem ou revertam algumas dessas ações, como por exemplo:

a)      Reconhecimento do governo apenas com a garantia do respeito pelos Direitos Humanos e do investimento na educação das raparigas e de iguais oportunidades profissionais para homens e mulheres;

b)     Estabelecer ligações diplomáticas e realizar trocas comerciais apenas se estiver garantido o respeito pelos Direitos Humanos;

c)      Acolher os refugiados que procurem asilo no Ocidente.

Bem sabemos que a situação histórica e política no Afeganistão nas últimas décadas é complexa e que não pode ser reduzida a simplificações. Também sabemos que a manutenção das forças militares dos Estados Unidos da América em território afegão era de duração limitada e que deveria haver uma passagem gradual para uma autonomia afegã. Porém, sendo pragmáticos e face à situação atual, há que estar atentos aos desenvolvimentos políticos naquele país e exigir, junto das instituições políticas nacionais e internacionais, o respeito pelos Direitos Humanos e pela dignidade de todos os cidadãos.

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Imagem de Amber Clay por Pixabay
30 de Abril, 2015 Carlos Esperança

Vaticano e terrorismo islâmico

Na sequência de uma gigantesca operação de combate ao terrorismo, foram detidos, em Itália, 18 suspeitos de planearem um atentado ao Vaticano. Os detidos, de nacionalidade paquistanesa e afegã, estariam ligados à Al-Qaeda.

As detenções, noticiadas no dia 25 de abril p.p., desarticularam uma célula que em 2010 planeou atacar o Vaticano e cujos elementos têm pesado cadastro ao serviço da fé e do terrorismo.

Não há multiculturalismo que resista a grupos de fanáticos, Estado de direito que pactue com terroristas travestidos de imigrantes, delinquentes da fé que não renunciam a impor preconceitos religiosos à sociedade civilizada e democrática que somos.

O Vaticano pode ser uma teocracia negociada entre Mussolini e um papa de turno, mas a sede do catolicismo romano é muito mais do que isso. É o santuário das artes onde se guardam tesouros, local onde o esplendor da arquitetura, pintura e escultura transforma um bairro eclesiástico de 44 hectares em memória da civilização e da cultura mundial.

O Vaticano preserva a Basílica de S. Pedro, a Capela Sistina e os Jardins; abriga o génio de Miguel Ângelo, Rafael, Giotto, Caravaggio e Leonardo da Vinci; guarda memórias das civilizações etrusca, egípcia e grega; é a apoteose do melhor que o espírito humano criou e que sobreviveu a Pio V, inquisidor e santo, avesso à nudez e às heresias, a papas incultos, à erosão do tempo e ao saque das guerras, da época pré-cristã aos nossos dias.

Um atentado contra o Vaticano é uma atrocidade boçal contra a cultura, a civilização e o património da Humanidade. Ali, entre as sotainas e a liturgia, com incenso e água benta, repousa a memória histórica da civilização, o génio dos maiores criadores e o esplendor da memória coletiva europeia e da Humanidade.

O Vaticano é um local de culto, não por ser a sede de uma religião, por ser um museu da cultura greco-romana. Quem ameaça o bairro carregado de arte e de história, não ofende só os crentes, declara guerra à Europa culta, civilizada e democrática.

E não pode haver indulgência.

27 de Dezembro, 2014 Carlos Esperança

Honre as crianças do Paquistão

ASSINE A PETIÇÃO

 Para o primeiro-ministro do Paquistão, principais países doadores e líderes mundiais:

Para honrar as mais de 100 crianças assassinadas em Peshawar, nós – jovens, professores, pais e cidadãos de todo o mundo – exortamos nossos governos a cumprirem a promessa, feita na Organização das Nações Unidas em 2000, de assegurar a todas as crianças que ainda não estão estudando o direito à educação antes do fim de 2015. Estamos unidos para acabar com as barreiras que impedem que meninos e meninas frequentem a escola, dentre as quais estão o trabalho e casamento forçados, conflitos e ataques contra escolas, exploração e discriminação. Todas as crianças merecem a oportunidade de estudar e alcançar seu potencial. Somos

Há dois dias, um bando entrou em uma escola e massacrou mais de 100 crianças no Paquistão. CEM CRIANÇAS! Que tipo de pessoa faz uma coisa dessas?Pessoas que veem escolas como uma das formas mais eficazes de evitar que jovens sejam recrutados para uma vida de violência. Além de ser o melhor antídoto contra a pobreza, a educação é uma das melhores táticas antiterroristas: ajuda crianças a sair do desespero e a aproveitar oportunidades. Vamos responder a esta tragédia com um pedido global, em massa, para colocarmos todas as crianças na escola.

Nossos governos prometeram matricular todas as crianças, do mundo inteiro, até o fim de 2015. Vamos tornar isso realidade agora mesmo, no Paquistão e em outros países: participe da campanha para honrar a memória das crianças de Peshawar. Nossa petição será entregue por Gordon Brown, enviado especial para educação da ONU, ao primeiro ministro do Paquistão e aos líderes que podem realizar esse plano. Assine agora.

16 de Dezembro, 2014 Carlos Esperança

A violência doméstica e os animais selvagens

Este crime silencioso não é exclusivo dos homens mas pertence-lhes o maior quinhão. É a velha prática que a sociedade, a Igreja, a família e as próprias vítimas consentiram, um hábito a que não faltava o pérfido adágio: «entre marido e mulher não metas a colher».

Quantas feridas, no corpo e na alma, quanta vergonha escondida com desculpas pueris, quanta violência reproduzida através dos filhos de cujos gritos e espetáculo se tornaram reprodutores!

A morte às mãos de um facínora que não controla o ciúme, que esquece o amor que um dia o arrebatou e o respeito constante que devia, é o retrato de uma sociedade medieval que recusa a modernidade sem longos estágios no cárcere.

A quantidade de mulheres agredidas, física e moralmente, humilhadas e assassinadas, é uma tragédia recorrente, perante a indiferença de quem esquece a mãe, irmãs e filhas, de quem não sublima instintos primários e faz da violência a catarse das suas frustrações.

A quotidiana divulgação da brutalidade a que as mulheres estão sujeitas é a nódoa que não se apaga, a vergonha que nos acompanha, a iniquidade cuja incúria nos remete para um passado medieval e para épocas históricas que a civilização devia ter erradicado.

Como é possível condenar metade da humanidade a um sofrimento acrescido, à exaltada manifestação da selvajaria masculina, reproduzindo os valores anacrónicos herdados da época em que a força física era condição de sobrevivência?

Maldita herança que o Antigo Testamento e os hábitos legaram. E malditos herdeiros.

12 de Junho, 2014 Carlos Esperança

E a eutanásia continua por discutir!

Era uns dias mais novo do que eu o marinheiro tetraplégico que queria morrer e não o deixavam. Há anos que aquela bela cabeça sem corpo pedia que o deixassem morrer. Vi-o várias vezes na televisão, lúcido e sereno, exigindo o direito à morte. «Sou uma cabeça sem corpo, tenho direito a morrer», repetia Ramón Sampedro, corajoso galego.

Sete anos depois da morte, decorrido o tempo para a prescrição do «crime», a amiga que o ajudou, Ramona Monteiro, revelou como o fez. A morte foi gravada por vontade de Ramon, que demorou anos a cumprir um desejo, dolorosos anos de sofrimento que a hipocrisia judaico-cristã queria prolongar enquanto «Deus quisesse».

Tetraplégico desde os 25 anos, lutou na justiça pelo direito de morrer dignamente. Dada a sua incapacidade física para suicidar-se, Ramon desejava que seus amigos e familiares o pudessem ajudar a morrer sem que cometessem algum delito.

Suicidou-se em 12 de janeiro de 1998. Soube-se depois que a morte foi mais amarga do que previra o lúcido suicida e do que julgara a abnegada mulher que o acompanhou nos três últimos anos de vida.

O cianeto não terá proporcionado uma morte tão rápida e doce quanto a eutanásia exige mas foi o produto que Ramon conseguiu. Enquanto morria os olhares de amor ficaram como última carícia de quem partiu e de quem ficou, com o aviso de quem se despediu: «depois de beber não me beijes os lábios».

E a eutanásia continua por discutir.

 

8 de Março, 2014 Carlos Esperança

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

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Nutro pelos dias do calendário, que a sociedade de consumo reverencia, saudável horror e desprezo visceral.

No dia da mulher vacilo e soçobro. Evoco mãe e irmã e esmoreço; lembro companheira e amiga e descoroçoo. Recordo as mulheres, vítimas de todas as épocas, e enterneço-me.

Recordo a oração matinal dos judeus que convida os homens a bendizer Deus por tê-lo feito judeu e não escravo…nem mulher. Recordo a Tora que decidiu a inelegibilidade [da mulher] para funções administrativas e judiciárias e a incapacidade de administrar os próprios bens.

Lembro a submissão que o islão impõe, a burka que lhe cobre o corpo e oprime a alma, a lapidação, as vergastadas e a excisão. Os machos são superiores às fêmeas, «porque Deus prefere as homens às mulheres (IV, 34)».

A cultura judaico-cristã é misógina, submete e explora a mulher. Destina-lhe a cozinha e a procriação, a obediência e a servidão. É a herança que Abraão lhe deixou.

Quando a mulher irrompeu com a força contida por séculos de opressão, avançou nas artes, na ciência e na cultura, com o furor do vulcão que estoirou os preconceitos.

Antes do 25 de Abril, em Portugal, a mulher carecia de autorização do marido para transpor a fronteira, não tinha acesso à carreira diplomática ou à magistratura, nem à administração de bens próprios.

Não há países livres sem igualdade entre os sexos.

A libertação da mulher é uma tarefa por concluir, contra o peso da tradição, a violência dos homens, o abuso das Igrejas e os preconceitos da sociedade.

Hoje, dia internacional da mulher, é dia para, homens e mulheres, pensarmos que somos iguais. Todos os dias. Em qualquer lugar. Sempre.

19 de Dezembro, 2013 Carlos Esperança

A mulher, a eterna ameaça e vítima ancestral

Há dias publiquei uma foto de Annette Kellerman (1886/1975) a promover o Direito das mulheres ao uso do maiô, em 1907. Era um fato de banho que apenas deixava o pescoço e os braços à mostra. Valeu-lhe a prisão.

A nadadora australiana, atriz e escritora, foi presa por atentado ao pudor. Não podia ser o que descobria a causa de tão cruel punição, era o medo da emancipação, da igualdade de género que, durante milénios, justificou a violência das instituições contra a mulher, como se a humanidade pudesse existir sem ela, como se cada um de nós pudesse nascer, sem ser asfixiado, de pernas atadas, como os homens a queriam.

No Concílio de Niceia (séc. IV), discutiu-se com “seriedade” e “pureza de intenções” a questão de saber se as mulheres tinham alma, e hoje, quando cada vez menos pessoas se interessam pela existência da alma, a mesma Igreja discute a alma do zigoto.

Almas do diabo!

Maria Montessori (1870/1952), pedagogista e pedagoga, mulher que estudei por dever profissional, foi das primeiras educadoras de crianças deficientes e a primeira médica italiana. As dificuldades que teve de vencer, as provocações e o assédio de que foi alvo!

A frequência de classes com homens, na presença de um corpo nu, era inadequada. Foi obrigada a realizar as dissecações de cadáveres sozinha, depois do horário dos colegas. Aos 18 anos, esta mulher era a minha heroína. O seu currículo na pedagogia científica e na filosofia educacional rivalizam com a coragem cívica. A sua biografia e bibliografia equivalem-se.

Na ditadura clerical-fascista de Salazar a mulher só podia ausentar-se para o estrangeiro com autorização do marido. Este administrava-lhe os bens, abria-lhe a correspondência, exercia um direito. A violação não era crime.

Quem tem medo da mulher não tem confiança em si. Quem quer aprisionar-lhe a alma não sabe ser livre. Ninguém é livre se exercer a escravatura. Temos sido um mundo de escravos na ilusão de que a violência é uma forma de liberdade e uma manifestação de poder, desconhecendo que na desigualdade de géneros se encontram as amarras que nos tolhem, a desonra que nos diminui, o opróbrio que nos envenena.

As religiões são as principais responsáveis e guardiãs das posições misóginas.

29 de Setembro, 2013 Carlos Esperança

A Morte do Miguel ou as injustiças de Deus

No dia 27 de junho de 2007 o Miguel teve o seu funeral. Caíra no sábado anterior à saída do casebre. Quebrou o fémur e ganhou um hematoma na cabeça. Transportado ao hospital faleceu no dia seguinte.

O funeral foi na terça-feira. O Miguel teve missa, flores que os amigos lhe levaram e os responsos canónicos antes de baixar à cova. Já não o acompanharam os pais e avós, que partiram antes, mas estavam lá os amigos que com ele jogaram à bola na Praceta, colegas da escola primária onde começou e terminou os estudos.

Para os que acusam os jovens de egoísmo foi tocante ver os que vieram de longe, alguns bem instalados na vida, outros à procura de uma oportunidade. E eram muitos.

O Miguel é que não teve vaga. Não conheceu o pai, falecido quando ele ainda não tinha dois anos. A mãe esqueceu-o na amnésia da droga e não o recordou quando partiu sob o efeito de uma dose reforçada.

Os avós recolheram-no. Partiu primeiro a avó e não se demorou o avô. O Miguel ficou aos baldões da sorte, ao abandono, não lhe faltando os pontapés da vida nem a companhia de outros desgraçados.

Tinha 31 anos e mantinha os olhos de criança no rosto já cansado. Passou fugazmente por várias drogas mas foi no álcool que se fixou, em doses cada vez mais vastas. Se os amigos o saudavam, sorria com gratidão. E não deixou que lhe virassem as costas, foi-se afastando entre carros que arrumava e garrafas de cerveja que consumia.

Ainda teve tempo para fazer um filho. Foi amado. A mulher quis levá-lo para o cuidar, mas não quis ser fardo. Andou por aí, sem querer ser pesado, sem se queixar, a desfazer o fígado e a vida, a acelerar para o fim, com um sorriso que guardou para os amigos.

Na morte teve a mulher que o amou, vestida de preto, e muita gente: um arrumador de carros no intervalo da ressaca, o diretor de um estabelecimento de ensino superior, o dono do café, jovens que após os cursos foram pela vida mas voltaram à Praceta para dizer adeus ao Miguel e levar-lhe as primeiras flores que recebeu. E todos nos sentimos tristes, com vergonha de sermos felizes.

Chamava-se Luís Miguel Neves Caldeira, de seu nome. Era tudo o que tinha com a roupa que trazia e um velho rádio de que fez testamento oral. Dele só resta o rádio e o raio da nossa incapacidade para criar um mundo mais justo.

Vi o edital que anunciava a missa do 7.º dia para as 18H30, seis dias após a morte, pois o 7.º dia é quando um padre puder. Talvez a missa fosse pela remissão dos pecados de Deus. Para que outra coisa poderia servir?