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Categoria: Humanismo

3 de Novembro, 2024 Onofre Varela

Halloween, o dia das Bruxas

As pessoas da minha idade que celebram o dia 1 de Novembro, atribuem à data duas recordações, sendo uma histórica e outra religiosa: a primeira, é o dia do terramoto que destruiu Lisboa no ano de 1755, e a outra é o “dia de todos os santos”, no qual a tradição manda lembrar os mortos da família numa romagem de saudade ao cemitério onde estão sepultados, dando uma ajuda ao negócio das flores que nesse dia triplicam ou quadruplicam o preço, de acordo com a regra económico-capitalista “da oferta e da procura”.

A estes dois eventos soma-se mais um que não era atendido na cultura portuguesa do meu meio social no tempo da minha meninice e primeira juventude, tendo sido importado de países ocidentais anglófonos. Refiro-me ao “Halloween”.

Celebrado na noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro, o Halloween é uma festa americana das crianças que escolhem guarda-roupa de fantasia fantasmagórica para, assim trajadas, baterem à porta de vizinhos, amigos e familiares, pedindo guloseimas (gostosuras) e fazendo travessuras se não forem atendidas.

A origem desta tradição, que pede uma decoração das casas usando abóboras-lanterna, o acender de fogueiras e o contar histórias de assombração, pode ser encontrada em rituais celtas ligados ao fim do Verão e às colheitas agrícolas, e remonta ao século XVIII nos territórios pagãos da Irlanda e da Escócia, cujos rituais foram exportados para o território norte-americano pelos colonos imigrantes que se fixaram na terra dos “peles-vermelhas” (que são os históricos, legítimos e verdadeiros donos daquelas paragens geográficas).

Imagem gerada por IA da Stockcake

Mas a história do Halloween tem uma origem mais alongada no tempo se lhe juntarmos as tradições semelhantes dos povos celtas que habitaram a Gália (França) entre os anos 600 aC e 800 dC. A par do folclore, misto de religioso e pagão, há uma história bem mais dramática ligada à data do “Dia das Bruxas”. Isto dito assim até parece comédia ligeira e faz sorrir… mas vivido no seu tempo constituiu intenso drama sentido pelas mulheres perseguidas por superstição, estupidez e vingança torpe.

Numa sociedade dirigida por homens, tradicionalmente as mulheres nunca foram consideradas na exacta medida da igualdade que naturalmente têm perante os homens. Remetidas para uma escala menor, as mulheres ainda hoje (na nossa sociedade ocidental considerada tão “avançada”), auferem vencimento inferior aos homens que executam a mesma tarefa. (“Desigualdade salarial entre homens e mulheres voltou a aumentar”. Notícia de 9 de Julho de 2024, no jornal Público).

Tempos houve em que qualquer mulher que fugisse do padrão comportamental estabelecido pelos machos da sociedade, passava a ser considerada “bruxa” e, como tal, era perseguida, insultada, presa, torturada e morta violentamente, incluindo ser queimada viva.

Para que uma mulher fosse considerada bruxa bastava que ela mostrasse ser mais inteligente do que os homens que lhe eram próximos. Mulheres que exerciam actividades sociais de relevo, como prestar ajuda a parturientes e preparar medicamentos tradicionais, como hoje se encontram nas ervanárias, podiam ser designadas como bruxas por terem conhecimentos importantes para a época… e no extremo seriam perseguidas pelo complexo de inferioridade dos homens que, na convicção de mostrarem a sua “grandeza enquanto machos”, só sublinhavam a sua extrema pequenez perante as mulheres.

A sociedade machista não tinha estereotipado tais características para as mulheres… por isso, qualquer uma que saísse do padrão subserviente e temente ao homem, estava sujeita à perseguição porque, acreditavam eles, ela “teria feito um pacto com o diabo”. A partir daí podia ser humilhada, torturada e morta.

Na verdade o que acontecia tinha uma razão mais evidente e igualmente triste: a sociedade machista via nessas mulheres uma “ameaça à dominação masculina”, cujo sentimento de prepotência remonta à tradição judaico-cristã de o homem dominar a mulher, não permitindo que ela tenha vida própria para além daquilo que ele estipula “ser legal” para ela, tal como ainda hoje se observa na tradição religiosa de países islâmicos extremistas… e também em algumas famílias portuguesas… já agora!

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

28 de Outubro, 2024 João Nascimento

Apenas Humano

Imagem criada com o DALLE-4

Escrevi este poema há décadas, quando finalmente percebi, com genuína satisfação, que eu era mais um dos que simplesmente não conseguem acreditar. Não só ansiava por viver sem ilusões, como sabia que devia fazê-lo – não podia ser de outra maneira. Nunca olhei para trás.


Sou humano, susceptível a doenças,

a enfermidades,

e ao inevitável fim.

Estou à mercê,

e à clemência,

do que quer que me infeste.

Estou cheio de falhas,

mentiras, e enganos.

Estou preso,

numa luta incessante,

comigo mesmo,

contigo,

e com o mundo à minha volta.

Os meus defeitos e imperfeições

perseguem-me,

e sempre o farão.

Sou a causa,

a raíz de toda a minha miséria.

Sou a razão pela qual podes magoar-me.

Sou o defeito,

o erro,

que vivo dia após dia.

Sou humano,

não devias confiar em mim.

Sou mortal,

não tenhas fé em mim.

Mas, tu também és humano,

com os teus defeitos,

com as tuas imperfeições,

que eventualmente me aceitarão.

Sou humano,

não há nada de extraordinário em mim.

Há 8 mil milhões de outros,

exactamente como eu.

Sou humano,

é o pior,

e o melhor em mim.

Sou culpado,

serei sempre.

Inventei,

desenhei,

e imaginei,

o Deus que me criou.

Sou apenas humano,

mas espero sempre mais de mim.

Tão frágil,

tão delicado,

e vulnerável,

magoado pelo simples existir.

Sou apenas humano,

não é fácil.

Sou humano, 

perdoa-me.

25 de Outubro, 2024 Eva Monteiro

Um Gesto de Altruísmo do Prof. Ricardo Oliveira da Silva

A AAP – Associação Ateísta Portuguesa teve recentemente o prazer de se fazer representar numa conversa online sobre o Ateísmo em Portugal e no Brasil. Esta conversa decorreu no dia 9 de Outubro no Canal de Youtube Ativistas Ateus do Brasil, com o objetivo de iniciar uma ponte entre as comunidades ateístas dos dois países.

Prof. Ricardo Oliveira da Silva

Desta conversa decorreu o contacto com o Professor Ricardo Oliveira da Silva que possui uma Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) e Mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). É Doutorado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Tem experiência na área de História, com ênfase em Historia das Ideias, Historiografia e teoria da História, História do Brasil republicano e História do Ateísmo. Atualmente é líder do Grupo de Pesquisa Ateísmos, Descrenças Religiosas e Secularismo: história, tendências e comportamentos, e faz parte do Grupo de Pesquisa História Intelectual, Produção de Presença e Construção de Sentido e do grupo História Intelectual e História dos Conceitos: conexões teórico-metodológicas. Esses grupos estão registrados no CNPq. É também membro do fórum acadêmico International Society for Historians of Atheism, Secularism, and Humanism (fonte).

Como autor prolífico na área do Ateismo, o Professor Ricardo Oliveira da Silva prontificou-se a disponibilizar aos nossos leitores algum do seu material sobre o tema, que aqui se reproduz.

A AAP agradece este gesto de incrível altruísmo que me muito ajudará a nossa comunidade a melhor compreender o ateísmo, em particular no Brasil.

21 de Outubro, 2024 Eva Monteiro and João Nascimento

Associação Ateísta Portuguesa condena o recente comunicado da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da IVG

Foto de Aiden Frazier na Unsplash

A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) considera o recente comunicado emitido pela Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da atual proposta do PS e BE para alterar a lei da interrupção voluntária da gravidez (IVG) um ataque à laicidade em Portugal. Todos os médicos têm direito à liberdade de consciência, mas a AMCP é uma entidade de cariz religioso que está a usar a influência dos seus membros para fazer avançar uma agenda católica. A existência de uma Associação de Médicos Católicos Portugueses é, por si só, claro sinal de falta de laicidade na sociedade em que vivemos. Um médico deve reger-se pelos ditames da ciência ao invés da crença cuja natureza é dogmática e limitante. Da mesma forma, uma Associação deve emitir comunicados baseados em evidências e rigor, especialmente quando coloca em causa a informação que critica.

A AAP representa ateus e agnósticos a favor e contra a atual lei, de todos os quadrantes políticos, e respeita todos os seus associados e o direito de todos os cidadãos de se posicionarem quanto a este assunto, relembrando que a IVG é um direito adquirido das mulheres portuguesas que não pode ser violado.

Antes de mais, importa lembrar que, na ditadura, o planeamento familiar e a contraceção eram absolutamente proibidos em nome da ideologia católica e conservadora do regime. A pílula apenas chegou ao país em 1962 e vinha com o rótulo de “produto do demónio” – este método contracetivo era legalmente considerado produto abortivo. Até 1984 a prática do aborto era completamente proibida em Portugal. A Lei de 6/84 veio permitir a IVG nos casos de perigo de vida da mulher, perigo de lesão grave e duradoura para a saúde física e psíquica da mulher, em caso de malformação do feto, ou quando a gravidez resultasse de uma “violação”. A Lei n.º 90/97, de 30 de julho, alargou o prazo em situações de malformação fetal e do que até então era chamado de “violação”. E foi este quadro legal que persistiu até 2007.

Hoje em dia, apontar a degradação dos serviços obstétricos como justificação para negligenciar o acompanhamento das mulheres que escolhem a IVG é uma comparação análoga a dizer que por termos urgências cheias devemos deixar os doentes oncológicos de parte. Ou seja, a AMCP comete o pecado de que acusa estes partidos. Trata-se de dois serviços diferentes, com finalidades diferentes e com a mesma validade e peso, não devendo nenhum deles ser priorizado. Em boa verdade, e contrariamente ao afirmado neste comunicado da AMCP, nenhum dos partidos propôs ignorar um em prol do outro.

A AMCP indica os prazos em que se realiza a IVG ignorando que muitas mulheres se vêm impedidas pelos hospitais das suas zonas de residência a realizarem o procedimento. Muitas desistem porque são perseguidas, acusadas por médicos religiosos de cometerem pecados, culpabilizadas pela gravidez indesejada e ignoradas nos seus pedidos de ajuda. Muitas vêm-se obrigadas a disponibilizar verbas avultadas para deslocações ou para fazerem a intervenção em clínicas privadas ou noutros países. Esta realidade é avançada por quem tem contacto direto com estas pessoas, a Associação Escolha, com quem a AAP travou conhecimento para se inteirar da realidade. Estas mulheres, e isto não convém à AMCP referir, não entram para a “média das 7 semanas” porque não lhes chega a ser permitido fazer a IVG devido ao prazo reduzido em relação aos melhores exemplos internacionais. Este é um claro uso falacioso da estatística.

Também ao contrário do que defende a AMCP, é necessário olharmos para países cujos modelos de sistema de saúde apresentam melhorias em relação ao nosso de forma a imitarmos modelos que comprovadamente resultam. Que a AMCP diga que olhar para o estrangeiro não é prática que nos deve conduzir é falacioso. Esta é uma organização que assume como seu objetivo a “intervenção social (..) tendo sempre como fonte respetiva a Doutrina da Igreja Católica”, instituição, como se sabe, liderada por um país estrangeiro, na pessoa do seu chefe de Estado, o Papa. Aliás, este chefe de Estado estrangeiro é a figura mais citada na página da AMCP na Internet. Parece-nos, portanto, que só neste quesito é que os médicos católicos de Portugal desejam que estejamos orgulhosamente sós: caso fossem tratamentos oncológicos, devíamos fechar os olhos às práticas mais avançadas praticadas noutros países?

Quanto à questão da legitimidade que a AMCP parece não reconhecer aos partidos políticos portugueses, mas sim a um chefe de Estado estrangeiro, esta parece-nos uma clara demonstração da verdadeira agenda da AMCP: infundir na sociedade o receio de afrontar as hierarquias e as forças católicas e conservadoras dominantes, às quais até os próprios partidos políticos, não poucas vezes, demonstram reverência. Cabe-nos referir que são de facto, os partidos com assento na Assembleia da República que devem exercer o Poder Legislativo. Aliás, isto mesmo é defendido logo de seguida, no seu comunicado, quando é afirmado que o prazo das 10, 12 ou 14 semanas é apenas uma questão política.

Também quanto à eliminação dos dias de reflexão obrigatórios a AMCP faz afirmações sem as fundamentar devidamente. Tanto quanto a AAP tem conhecimento, não existe nenhum prazo de reflexão obrigatória para nenhuma intervenção exclusiva ao corpo masculino, por exemplo, no que diz respeito à vasectomia.  A AMCP faz afirmações sem base documental suficiente ao alegar que “a prática irrefletida e apressada de um aborto pode conduzir a traumas psicológicos posteriores com maior frequência”. Esta é uma opinião infundada, proveniente de uma associação que não apresenta dados científicos, mas apenas crenças religiosas como argumento. Dado que os dias obrigatórios de reflexão existem desde que esta lei está em vigor, não existem sequer dados que apoiem esta afirmação, senão o desejo de alguns religiosos de verem a mulher que escolhe a IVG como incapaz de tomar decisões corretas para si, só porque a decisão que tomou é considerada incorreta para um religioso de determinada confissão.

Cada um dos médicos associados da AMCP tem o direito de acreditar nos preceitos religiosos que indicam que a vida é sagrada a partir da conceção. A discussão sobre a existência desse Deus cruel que tantas e tantas vezes interromperia, caso existisse, a gravidez desejada, pertence ao foro do debate religioso / não religioso. Da mesma forma, a discussão metafísica sobre se existe uma alma numa célula ou num aglomerado de células pertence ao mesmo foro, nunca à medicina. Da mesma forma que a AMCP defende a inviolabilidade da objeção de consciência que não deve ser fiscalizada ou violada, também se deve opor a que a mulher que escolhe a IVG seja fiscalizada ou veja a sua decisão questionada por prazos obrigatórios de reflexão paternalistas e degradantes.

A AMCP age de forma contraditória. Exige o cumprimento da vontade do povo português, expressa no referendo de 2007, mas opõe-se a essa decisão sempre que não favorece as suas posições ideológicas. É bom lembrar que a mesma AMCP, em 2007, jurava que a IVG ia resultar num aumento do número de abortos. O facto é que não resultou. O número de abortos diminuiu cerca de 15% desde essa altura e Portugal é hoje um dos países da Europa com mais baixas taxas de aborto por cada nascimento. Isto em contraste com o cenário pretendido pela AMCP:  uma lei que colocava mulheres na prisão ou as matava através das complicações do aborto clandestino.  É preciso notar que a AAP não está com este comunicado a defender que seja retirada a opção da objeção de consciência dos médicos. Mas defende que os hospitais devem garantir que as suas utentes tenham acesso ao serviço médico da IVG garantindo que existem médicos não objetores de consciência em todos os hospitais públicos. Só assim se garantirá, conforme também defende a AMCP, que seja cumprida a vontade dos portugueses e os direitos das pessoas grávidas portuguesas.

Devemos também apontar, em forma de conclusão que a AMCP refere várias vezes a palavra “natural”: “morte natural” e “desfecho natural”. Há muito pouco de natural na medicina, cujo objetivo é muitas vezes contrariar a natureza, tratando doenças que de outra forma finalizariam de forma natural a vida humana. Parece-nos incompatível a posição religiosa e o exercício consciente, laico e honesto de uma profissão baseada na ciência. Contudo, se um religioso, católico ou outro, escolhe ser médico, deve fazê-lo de forma informada e consciente que a sua crença é limitadora e dogmática e a medicina é sinónimo de progresso científico e civilizacional.

Autoria: Eva Monteiro, Gabriel Coelho, João Nascimento

14 de Outubro, 2024 Onofre Varela

Sobre a Espiritualidade

Quando se fala em Espiritualidade é comum ouvirmos referi-la sob o ponto de vista religioso, aliando-a a uma fé, de acordo com a definição de dicionário que aponta, como sinónimo, a palavra “misticismo” (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 8ª Edição, 1998). No mesmo dicionário, misticismo é “atitude caracterizada pela crença na possibilidade de comunicação directa com o divino ou a divindade”.

Se seguirmos estas definições encontramo-nos no terreno da crença religiosa que é sementeira de ideias transcendentes relacionadas com as figuras deificas inexistentes no mundo físico que nos fez e acolhe, indo para lá de tudo quanto é natural, na procura de uma outra origem que transgride a Natureza, vogando no espaço imaginativo da crença.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Círculo de Leitores, 2003) navega nas mesmas águas definindo a espiritualidade como “característica ou qualidade do que tem ou revela intensa actividade religiosa ou mística”… quer dizer que seguindo por esta via, pretensamente explicativa, não aprendemos nada que seja real e concreto, e nos distancie do termo enquanto “filosofia de fé”.

Foto de Marc-Olivier Jodoin na Unsplash

O mesmo Houaiss, para a palavra “espírito” aponta, no mínimo, dezoito definições… até o bom vinho o possui! Também lá está a palavra “alma” como sinónimo de “espírito”… mas o termo “alma” tem a sorte de ser bafejado por quatro dezenas de definições, começando pelo “princípio da vida no homem ou nos animais”, passando por pensamento, afectividade, sensibilidade e “conjunto das actividades vitais”. Quer dizer: vida.

Alma é vida. É movimento. A “anima” que possui o significado de “fôlego vital”, respiração ou “sopro da vida”, de onde provém, etimologicamente, a palavra “animal” (ser que tem alma, animação) diferenciando-o dos vegetais, os quais, embora tenham vida, não se auto-locomovem (por não terem animação autónoma) como fazem os animais.

Agora podemos ir mais além nos conceitos que as palavras podem representar, e definirmos “espírito” como “modo de ser”. Há quem, pelas suas palavras, aspecto ou presença, transmita “paz de espírito”; e há quem possua um “espírito irrequieto ou belicoso”. Uma pessoa bondosa e pacífica é definida como sendo “uma paz de alma”.

A espiritualidade é, portanto, característica de seres animados e detentores de um cérebro capaz de um entendimento universalista de si, dos outros e do meio em que se movimentam, para se poderem manifestar sensitivamente: portanto, só o Ser Humano a possui.

Embora quase sempre ligada à esfera do “religioso deifico e transcendental”, a espiritualidade existe em todos nós, quer sejamos crentes, descrentes, assim-assim, nem por isso… ou ateus.

André Comte-Sponville, filósofo francês (1952) fala de “uma espiritualidade sem Deus”, no sentido de termos, todos nós, uma abertura (de espírito, de entendimento) para o ilimitado, no conhecimento de sermos seres relativos e abertos para o “absoluto”.

Nesse sentido, a espiritualidade do ateu caminha ao lado da espiritualidade do religioso, mas dispensando a figura do deus que alimenta a espiritualidade do companheiro da caminhada que ambos encetamos pela estrada da vida.

O alimento do ateu (para além do pantagruélico, que é sempre bem-vindo numa mesa rodeada de familiares e amigos) também passa pela sua espiritualidade, pelo seu lado sensível perante a beleza de uma pintura, de uma estátua, de uma paisagem, de um pôr do Sol, ou de um poema (assisti a um cântico gregoriano na catedral de Santiago de Compostela… e adorei! Nunca experimentei maior prazer auditivo).

A espiritualidade é estudada cientificamente pela “Neuroteologia” (também designada por “Bioteologia”), “Neurociência da Religião” e “Neurociência espiritual”, que investigam crenças, experiências e práticas religiosas ou espirituais. Há uma pesquisa na tentativa de se explicar a base neurológica de experiências religiosas, incluindo a dimensão da espiritualidade e as alterações dos estados de consciência.

O sentido religioso não passa de uma actividade do nosso cérebro. Qualquer ligação que queiramos fazer das coisas e de nós, a um deus, não passa de uma manifestação dos nossos sentimentos mais básicos que nos fazem crer num deus real (para além da guarida que os religiosos dão ao conceito dentro das suas cabeças)… mas que, naturalmente, não desagua em bom mar… até porque o leito onde deveria correr o rio da fé onde navegaria Deus… sempre esteve seco!…

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

6 de Outubro, 2024 Onofre Varela

Papa Francisco “tropeça” no seu discurso!…

Considero o Papa Francisco I (F1) um elemento renovador da Igreja Católica (IC) pelas atitudes humanistas que tem tomado, de entre as quais se conta a condenação dos abusos sexuais perpetrados no seio da sua igreja por sacerdotes defensores do amor e que tão mal fazem a jovens, abusando-os sexualmente. Jovens que, mercê da violação, têm uma vida de adultos limitada e consumida pela recordação de uma infância destruída por quem os devia proteger.

Qualquer homem, por muito defensor da Justiça, pode incorrer em erro. A prová-lo está o facto de haver juízes com a sua actividade suspensa pela má prática enquanto juristas. Mas quando esse homem é sacerdote, o erro será mais grave porque é (ou pode ser) motivado por uma educação seminarista que molda “agentes religiosos” (em vez de “homens íntegros”), na auto-consideração de serem exemplos morais.

CNN Chile

Motivado pela sua própria educação seminarista, F1 não pode fugir ao fundamentalismo religioso que o moldou e, mercê disso, pode, em alguns momentos, ofuscar o seu discurso que eu elogio.

Desta vez F1 disse algo que merece a reprovação da Associação Ateísta Portuguesa (AAP) da qual sou vice-presidente.

Após visitar a Bélgica, país onde o aborto continua a ser uma questão política, com mais de 500 pessoas a sofreram abusos sexuais por parte de membros da IC, F1 não usou o seu “critério humanista” que eu aprecio. Em vez disso deitou mão à sua “formação seminarista” e debitou um discurso – que eu também reprovo – chamando assassinos (com todo o peso negativo que a palavra contém) aos médicos que cumprem a lei da Interrupção Voluntária da Gravidez, que a AAP critica numa declaração enviada aos órgãos de comunicação social, com o título: “Associação Ateísta Portuguesa considera perigosas as palavras do Papa relativamente ao aborto”, e que é do seguinte teor:

«A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) considera negligentes e ignóbeis as palavras do Papa Francisco sobre o aborto, proferidas recentemente no regresso de uma visita à Bélgica, uma vez que apelidou os médicos que procedem à interrupção voluntária de gravidez (IVG) de assassinos. Mais concretamente, e citando a Euronews, o Papa disse: “Permitam-me o termo: assassinos. São assassinos. E isto é indiscutível. Estão a matar uma vida humana”. Se a posição da Igreja Católica sobre o aborto não espanta ninguém, por não ser uma novidade, as palavras agora proferidas são de uma enorme gravidade não só porque têm o potencial de colocar os crentes cristãos contra os médicos, como ainda são uma interferência de um chefe religioso nas decisões políticas de um outro país. Sabendo que as palavras geram ações, apelidar os médicos de assassinos pode mesmo levar a que fundamentalistas cristãos da Bélgica se sintam legitimados a atacar os profissionais que realizam esses actos médicos, ou instalações clínicas, como aliás acontece nalguns países. Esta posição de Francisco pode também ter consequências para Portugal, uma vez que, segundo as notícias, são muitos os médicos que se recusam a proceder à prática da IVG alegando objeção de consciência, podendo estar em causa uma motivação religiosa. Lembramos que Francisco tem direito a exprimir a sua opinião, mas não lhe é reconhecida qualquer autoridade para influenciar a política ou a legislação de outros países soberanos. A AAP esclarece que as leis de interrupção voluntária da gravidez protegem a saúde das mulheres, por criarem condições seguras em ambiente médico, e porque contribuem na realidade para uma diminuição do número de situações de aborto. Além disso, a IVG tem lugar durante um período temporal em que o feto ainda não é considerado uma vida humana».

Este discurso recente de F1 tem outras nuances que me parecem negativas: concretamente, oPapa foi questionado por jornalistas sobre as próximas eleições nos EUA, e respondeu que “entre dois males” os americanos deveriam votar no “mal menor” quando forem escolher entre o candidato que quer deportar migrantes (Donald Trump) e aquele que apoia o direito ao aborto (Kamala Harris). Assim, para o Papa, tem mais valor a deportação de migrantes e todas as mentiras políticas de Trump (que, a ser eleito, tornará o mundo num lugar bem mais perigoso para se viver) do que as propostas mais honestas, pacíficas e humanistas, de Kamala!…

Esta atitude papal é baseada na falsa defesa de uma vida que ainda não o é!…A prática da IVG acontece quando o ser humano a ser gerado por aquela gravidez ainda não passa de um projecto. Tal como um projecto arquitectónico não é um edifício, uma pasta de sangue num ovário também não é um ser humano (prova-o o facto de nunca se ter realizado o funeral de um aborto!).

Com todos os males que possam caracterizar F1 enquanto agente da IC, continuo a considerá-lo o melhor Papa que a História recente regista… o que não impede Mário Bergoglio de tropeçar no seu discurso e se estatelar ao comprido… mostrando que o seu lado humanista pode ser distorcido pelas posições tradicionais da Igreja que representa e que estão implantadas bem fundo no seu cérebro como “chip” difícil de retirar.

23 de Setembro, 2024 Onofre Varela

“A verdade liberta. A mentira prende”

Em 2007 a Editorial Caminho editou o meu livro “O Peter Pan Não Existe – Reflexões de um ateu”, obra que me ocupou cinco anos de escrita e, ao que julgava saber, a edição estaria esgotada… porém, dois amigos, num espaço de tempo curto e em livrarias diferentes, conseguiram o livro! Combinamos um jantar para dar à língua, recordar tempos passados e poder dedicar-lhes os dois exemplares do Peter Pan. Por essa razão peguei no exemplar que me resta em arquivo, abri-o ao calhas e, do que li, decidi fazer esta crónica.

Ao primeiro capítulo dei o título “A verdade tornar-vos-á livres. A mentira tornar-vos-á crentes”, frase que fui buscar ao Evangelho de S. João (8:32), para referir “crença e conhecimento”. A certo passo, digo assim: “Quem pensa que existe um ser supremo criador e dominador das vontades, não pode ser considerado menos, nem mais, inteligente do que aquele que não acredita em tal existência. Crença e conhecimento são matérias diferentes, antagónicas, mas que podem coabitar pacificamente no mesmo cérebro. O pensamento e a sabedoria são duas matérias primas da Filosofia e podem funcionar como terapia do espírito. Ambos «curam» ou aliviam algumas das nossas maleitas. Os nossos maiores males, quando não são de ordem natural, provêm de imposições alheias que resultam em aflições sociais e económicas, ditadas pelo meio onde nos inserimos e que nos faz sofrer. Deste sofrimento não podemos sair unicamente por nossa livre vontade (não é o mesmo que sair do autocarro). Somos vulneráveis e, por isso, também buscadores constantes da satisfação e do consolo que cada um pode encontrar em lugares distintos. O apuro dessa satisfação e desse consolo passa, inevitavelmente, pela qualidade do nosso pensamento e da nossa sabedoria. O apuro dessa qualidade, não se conseguindo no ensino oficial, terá de ser procurado por cada um, vendo, ouvindo, lendo e pensando. Quem assim não procede sujeita-se à educação padronizada que modela a sociedade em que o indivíduo se insere e que é, por mor de outros interesses que não os seus, nivelada pela matriz dos valores sociais estabelecidos – isto é: invariavelmente, por baixo – tornando-nos massificados, transformando cada um de nós num modelo estereotipado como alvo à mercê de quem vive da exploração dos nossos sentimentos programados”.

A melhor escolha na vida é cada um informar-se e ilustrar-se para poder pensar pela sua própria cabeça, não se deixando anestesiar por discursos de quem nos quer convencer, sejam agentes religiosos ou políticos. Tais agentes estão, continuamente, em “modo pré-eleitoral” tentando pescar adeptos para os seus grupos. Ao ouvirmos o palavreado que debitam nos vários púlpitos… temos de os peneirar criteriosamente… para (como se diz no meu meio) não sermos “comidos por lorpas”!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

15 de Setembro, 2024 Onofre Varela

Ciência, Religião,Ética e Moral

Hubert Reeves, especialista em astrofísica e autor do livro “Um Pouco Mais de Azul”, distingue o domínio da Ciência de quaisquer outros domínios de entre os que regem as sociedades que os homens já construíram.

A Ciência explica como as coisas são ou funcionam, e não se imiscui nos valores sociais. O domínio desses valores pertence a outros campos, como a Política e a Economia. Depois, há a Filosofia, a Religião, e mais um ramo filosófico denominado Ética (tendo acoplada a Moral), transversal a todos os outros campos, limitando poderes e moralizando atitudes.

Na Economia e na Política… parece que a Ética é uma espécie de “figura de estilo” que se encontra apenas nos discursos dos profissionais desses dois ramos para “parecer bem”, mas não nas suas acções e atitudes… pelo menos que nos apercebamos dela no dia-a-dia!…

A Filosofia é um tratado de manuais de Ética estudando os valores que regem os relacionamentos entre as pessoas, a harmonia do convívio na significação do bom e do mau, do mal e do bem, e a sua própria definição aponta para “aquilo que pertence ao carácter”.

Sobre a Religião talvez possamos dizer que é “o modo popular” que as populações têm de entender a Filosofia e procurar a harmonia social nos seus conceitos.

Filosofias há muitas… tal como chapéus (como disse o nosso actor Vasco Santana)… e carácteres também os temos por aí às mancheias, aos lotes e aos pontapés. Os carácteres são tão velhos quanto o raciocínio. O “Carácter” conta a nossa História feita de guerras, de crenças e de negócios sem pinga de Ética. Nas guerras encontram-se “carácteres” que são rastilhos patrióticos, causas religiosas e políticas apresentadas por quem as faz como “exemplos de positividade”… mas sempre em prejuízo do mesmo alvo sofredor: o Povo.

Vasco Santana – Arquivo da RTP

O Povo é sempre o personagem que se encontra na cena das acções de guerra e morre crente na divindade apregoada pelos seus líderes religiosos que fazem a guerra, mas também crente nas razões políticas dos líderes que armam exércitos e destroem cidades, matam velhos e, principalmente, crianças que ainda não tiveram tempo de experimentar o paladar da vida.

Se a maioria dos líderes religiosos (que tanto apregoam a divindade e matam gritando que “Alá é grande”), dos políticos e dos generais que, por crença na divindade e no patriotismo serôdio, fazem a guerra, tivessem vergonha e raciocínio Humanista… terminariam as guerras, as invasões, as destruições de equipamentos e cidades… e não haveria mais morte violenta.

De entre homens de Religião destaco Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo holandês de origem portuguesa, autor do livro “Ética”, e que foi acusado de ser ateu… mesmo tendo definido Deus como “o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consta de infinitos atributos”… o que talvez queira dizer que Ética e Religião podem conflituar (e conflituam!) entre si!

A Ética tem, no Cristianismo, o seu expoente máximo na célebre frase “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39), que é cópia do Velho Testamento (Levítico 19:18). É uma frase que traduz um conceito universalista, ultrapassando a Moral Católica que defende a vida uterina quando ainda não há ser humano formado e por isso condena o aborto; mas também condena o divórcio, a eutanásia e as relações homossexuais, que a Ética Laica defende como liberdades individuais lícitas.

A Ética religiosa difere de religião para religião. No Islamismo extremado, por exemplo, defende-se a condenação à morte da mulher que se apaixona por um homem que professe outra religião que não seja aquela que é seguida pela família dela!…

É comum misturar-se Ética com Moral. Não são a mesma coisa. Se a Ética estuda valores morais que orientam o comportamento humano, a Moral é constituída pelos costumes, pelas regras e pelos tabus das convenções instituídas por cada sociedade.

Logo, a Ética é mais universalista, enquanto que a Moral (os apelidados “bons-costumes”) é uma herança emocional e colectiva transmitida por cada sociedade aos seus membros… (e muitas vezes não é lá grande coisa!…)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

8 de Setembro, 2024 Onofre Varela

Somos evoluídos em relação a quê?!…

No início da escrita deste texto comecei por escolher para título a frase: “A História diz-nos que Deus é perigoso”. Mudei-o depois… mas na verdade, entendido como poder, o conceito de Deus é tão perigoso quanto qualquer outro poder quando ele é imposto como paradigma da “Verdade Absoluta”, obrigando à sua submissão sem limites nem interrogações, como são exemplo não só os credos religiosos, mas também o Fascismo, o Nazismo e o Comunismo, ou qualquer ideologia de Direita-extremista ou Teocrática.

A confirmar a perigosidade do conceito de Deus, estão os extremistas islâmicos que, em nome de Deus, cometem os mais hediondos crimes, desrespeitam as mulheres e escravizam as crianças. No capítulo das crianças, e na Política, Putin faz o mesmo, escravizando a mente dos menores roubados às famílias ucranianas após a invasão da Ucrânia, submetendo as crianças raptadas a “lavagens cerebrais”; na China de Xi Jinping faz-se igual ao Povo Uigur – nas apelidadas «escolas de reeducação» – para que os “reeducados” pensem conforme o que o ditador quer que se pense, destruindo a identidade cultural do povo Uigur.

Por seu lado, o “poder dos deuses” sempre foi ditadura persecutória, explorado pelos líderes das comunidades que o usavam (e usam) para oprimir o Povo, conseguindo a sua subserviência ao poder temporal, amedrontado com o castigo divino. Os credos religiosos subjugam-nos desde a Antiguidade mais remota, passando pela Idade Média (quando a Igreja era a “dona” das governações e coroava reis a seu contento) até aos nossos dias e à nossa porta.

É neste sentido que deve ser entendida a frase: “A História diz-nos que Deus é perigoso”. Fora deste contexto de subjugação a um deus (ou a qualquer outro poder ditatorial), numa sociedade sadia dispensadora da droga do divino e liberta de ditaduras políticas opressoras que impõem o pensamento único, uma corrente de ar é bastante mais perigosa para um corpo desprotegido… e Deus vale zero (os ditadores valem menos que zero).

Embora hoje o poder da religião continue a ser praticado ao serviço dos vários interesses que comandam a sociedade em que nos inserimos, estamos numa posição diferente daquela em que viveram os povos de outros tempos sob a ditadura dos sacerdotes… mas não estamos melhores!… Hoje não são apenas as religiões que dirigem a vontade dos povos; os partidos políticos e os grupos económico-financeiros também fazem parte da lista dos exploradores da boa-fé das populações.

Somos comandados pelos poderes (a maioria das vezes constituídos pelas piores pessoas) que dominam a sociedade e nem nos damos conta de que são muitos. Na verdade, quando um anónimo cidadão temente a Deus ajoelha no templo em frente ao altar do santinho da sua devoção, ou ouve o guru da seita que lhe promete felicidade eterna, julga fazê-lo perante a divindade. Foi isso que lhe disseram em menino e é nisso que ele acredita. Mas na verdade ajoelha-se perante um Poder: o poder da Igreja e das modernas seitas que amarram as mentes crentes à ideia opressora de Deus usada pelos exploradores da fé.

A seguir vêm todos os outros poderes, e não é raro a própria entidade patronal (a quem o temente a Deus vende a força do seu trabalho) pertencer à casta dos que colhem da seara divina (é, até, muito frequente) porque a ideia de Deus traz acoplada a submissão à autoridade, seja ela divina ou humana. O patrão tem poder sobre os seus assalariados podendo negar-lhes o pão quando muito bem entender… e na verdade já o nega quando paga salários miseráveis aos seus assalariados e compra habitações de luxo, iates e automóveis topo de gama para si próprio, com o lucro que arrecada do trabalho miseravelmente pago.

As leis, nesta era da globalização, estão feitas à medida dos poderes da Banca e da Economia, numa Europa desenhada para a submissão do Trabalho ao Capital, e da Política à Economia e à Alta Finança, protegendo a exploração do trabalho com direitos reduzidos para alimento de um sistema económico-neocapitalista asselvajado tendo a extrema-direita à espreita para promover o retrocesso da nossa caminhada pelo respeito ao próximo e pela concórdia social (se o Comunismo era o sonho da “parte sadia” da sociedade nas décadas de 1950, 60 e 70, em contra-ponto ao Capitalismo… deixou de o ser desde que partidos comunistas apoiam ditadores como Putin, Maduro e Kim Jong-un).

Neste sistema social em que vivemos e que sempre nos oprime (embora se diga democrático), há uma verdade histórica a considerar: “o Povo é tanto mais explorado quanto mais religioso for”. E há mais esta: “a sociedade tem tanto mais ricos, quanto mais pobres e incultas forem as pessoas que a constituem”. E isto não é mais do que um gritante sinal de primitivismo!

Quando nos imaginamos uns seres inteligentes e evoluídos, devemos interrogar-nos: somos evoluídos, em relação a quê?…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

30 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Humilde Hipocrisia das Ovelhas de Deus

Criado com o DALL-E

Religião e humildade são duas palavras que só coexistem em relativa harmonia na mente dos mais ingénuos, dito da forma mais suave possível. Na realidade, tratam-se de forças antagónicas, conceitos incompatíveis e irreconciliáveis, ideias opostas numa batalha fútil e violenta por um meio-termo metafísico que nunca poderá realmente existir.

E isso não pode, nem vai acontecer, porque, quando confrontados com a espantosa imensidão do universo — com cerca de 14 mil milhões de anos, repleto de biliões de galáxias que reduzem a humanidade e o nosso solitário planeta a meros grãos de poeira insignificantes — os crentes insistem que tudo isto foi concebido com eles, e apenas eles, em mente. Uma proposição bastante peculiar, atrevo-me a acrescentar.

Para aqueles que não ousam questionar, que não conseguem perceber a ácida ironia desta embaraçosa contradição, ouvir uma pessoa religiosa afirmar-se como o ser mais humilde do universo pode parecer razoável, até lógico. Afinal, não é isso que sempre lhes foi dito e levado a acreditar?

As pessoas religiosas são vistas como devotas e puras, austeras tanto por fora como por dentro e, claro, intrinsecamente boas. Sim, boas por defeito, o que é um conceito bastante curioso, perpetuado ao longo de milénios por velhos castos e cínicos. No entanto, basta um pouco de reflexão para perceber que os crentes, muitas vezes, consideram-se tão humildes que acabam por não ser humildes de todo.

Pergunto-te agora, a ti, ao leitor — crente ou não —, se alguma vez alguém te disse sentir repulsa pela religião organizada precisamente por esta razão: pela evidente falta de humildade nos textos fundadores de todas as grandes religiões da actualidade e pela arrogância descarada de tantos dos seus seguidores — sejam eles famosos ou não — que não fazem qualquer esforço para parecer minimamente humildes. Certamente consegues lembrar-te de uma situação assim, em algum momento da tua vida.

Talvez tu sejas um deles, um daqueles religiosos que abomina a religião organizada, mas sente-se preso, ancorado à pegajosa ideia de que é necessário algo sobrenaturalmente maior do que nós para se ter sequer uma razão para querer existir, quanto mais gostar de viver. A vida humana é demasiado frágil, e não é fácil, eu sei — todos sabemos, de uma maneira ou de outra. Posso garantir, ainda assim, com alguma certeza estatística, que não estás sozinho neste dilema cósmico.

Considera agora, a título de grandes exemplos de auto-abnegação em nome do divino, os nacionalistas cristãos americanos: a sua humildade, como seria de esperar, não existe, é nula, e mesmo assim afirmam, em voz alta e ameaçadora, ser o epítome dela. Quantos milhões de americanos partilham desta ideologia? E quantos outros cristãos, espalhados pelo mundo, partilham desta magnífica concepção de humildade?

Acredito que a minha alma encontra prazer na ideia de uma ironia cósmica. Deleita-se especialmente com as manobras metafóricas circenses executadas pelas milhares, senão milhões, de religiões inventadas pela humanidade ao longo dos séculos — e que continuam a surgir diariamente — para justificar a sua ligeira insanidade.

Quando eu era criança, rodeado por tantas ideias aterradoras e absurdas, vendidas como verdades absolutas, a hipocrisia evidente de todos aqueles adultos incomodava-me profundamente. Desde o padre, de aspecto cadavérico, que afirmava ter uma linha directa com Deus e que, supostamente, falava com Ele em público em nosso nome, até às pessoas que se reuniam para o ouvir, sem achar nada de estranho na audácia de tal afirmação.

E depois havia os acólitos, os oradores e os leitores, cuidadosamente escolhidos ou que se ofereciam para ler nas missas, quase sempre os mesmos, que repetiam as escrituras diretamente do púlpito e, como os outros, transpiravam humildade em abundância.

É importante salientar também o papel que o cinema — e outras formas de arte e entretenimento, incluindo a literatura — têm desempenhado na promoção da ideia aparentemente atraente de que temer a Deus torna alguém automaticamente humilde. Nos filmes, por exemplo, a personagem religiosa é sempre o herói, o perseguido, o verdadeiro crente, o mártir. E, claro, todos parecem saber que submeter-se intelectual, mental e, atrevo-me a dizer, espiritualmente a um ditador celestial resulta, naturalmente, em pessoas genuinamente boas.

Pessoas dignas, virtuosas e, claro, supremamente e quase inevitavelmente humildes.

Contempla agora o cristão, que se vê, de maneira relativamente suspeita, como uma ovelha ansiosa por ser guiada por um pastor. Com uma mão, ergue orgulhosamente a bandeira branca da modéstia e declara a sua profunda insignificância perante os ilimitados e mágicos poderes do seu criador. No entanto, com a outra mão, a transpirar de antecipação, gesticula vigorosamente e afirma, com inabalável convicção e em tons ameaçadores, que faz parte do seleto grupo capaz de interpretar os planos de um ser que, por definição, deveria estar além de qualquer entendimento humano.

Não será a humildade religiosa o exemplo perfeito de como palavras e ideias erradas podem distorcer completamente o verdadeiro significado de um termo? Quanta vaidade deve ser disfarçada — muitas vezes de forma pouco convincente, como qualquer observador atento notaria — para alguém afirmar ser o escolhido de um plano divino? E quanta dignidade pessoal precisa de ser sacrificada para se viver num estado perpétuo de auto-recriminação, constantemente obcecado pelos próprios pecados?

A contradição torna-se ainda mais flagrante e amarga quando consideramos a encantadora doutrina do Inferno — introduzida pelo manso e incrivelmente humilde Jesus do Novo Testamento.

Como pode alguém reconciliar a ideia de um deus de amor infinito que, subtilmente, também cria um lugar de tormento eterno e concede apenas a uns poucos eleitos o poder de decidir quem merece ir lá passar o resto da eternidade? É difícil imaginar a arrogância necessária para acreditar num conceito tão nefasto como este. Espero, com algum otimismo, não ser o único a pensar que dizer a uma criança — ou a qualquer outra pessoa, na verdade — que está destinada ao Inferno não é apenas uma violenta afronta à ética mais elementar, mas também uma contradição flagrante da humildade que tanto afirmam possuir.

Satisfeitos com a fragilidade da sua quebradiça virtude, os fiéis insistem em aborrecer-nos a todos e dispensam salvação com entusiasmo. Contudo, e sem surpresas, escorregam na imunda poça de narcisismo que deixam pelo caminho, completamente alheios às evidentes contradições naquilo que pregam. Esta mentalidade está tão impregnada de auto-importância que faz o antropocentrismo tradicional parecer humilde, em comparação.

Insisto que a modéstia religiosa não passa de uma pantomima de integridade, uma expressão de superioridade disfarçada, incapaz de olhar para o seu reflexo sem se deslumbrar com a sua própria imagem moral distorcida.

A mentalidade religiosa regozija-se no brilho vacilante da sua própria virtude em decadência, e a luta constante no interior do crente, entre a auto-glorificação e a auto-negação, revela uma das mais perturbadoras contradições da condição humana. Não se deixem enganar, nem os deixem escapar impunes.