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Categoria: Cristianismo

30 de Agosto, 2010 Carlos Esperança

Maria Madalena_1

Madalena

( Crónica a partir da tradição popular, modificada.)

Naquele tempo, em Magdala, na antiga Palestina, uma multidão preparava-se para apedrejar Maria sobre quem recaía a acusação de ser pecadora. Fora um boato posto a correr, talvez por um corcunda da tribo de Manassé, ressentido por se ter visto recusado, que a sujeitara àquele veredicto popular de que não cabia recurso. O princípio do contraditório ainda não tinha sido criado nem era hábito ouvir o acusado, principalmente sendo mulher, nem a absolvição estava enraizada nos hábitos locais. A lapidação de Maria tinha transitado em julgado.

A lapidação era, aliás, um divertimento muito em voga, que deixava excitados os autóctones que habitavam as margens do rio Jordão que atravessava o Lago Tiberíade a caminho do mar Morto. Diga-se, de passagem, que esse desporto ainda hoje é muito popular em numerosos países, para imenso gáudio das multidões, e não faltam adeptos um pouco por toda a parte.
Aconteceu que andando o Senhor Jesus a predicar por aquelas bandas, depois de indagar o que se passava,  aproveitou a multidão para se lhe dirigir,  e disse:
–    Aquele de vós que nunca errou que atire a primeira pedra.

O nazareno tinha créditos firmados com vários milagres e até a cura de um leproso lhe era atribuída entre os galileus. Falava-se mesmo, com rancor entre os fariseus, que teria ressuscitado um morto de nome Lázaro. Vários independentes já lhe tinham manifestado apoio, como sucede sempre que o poder está em vias de mudança.

Todos pareceram hesitar. Muitos deixaram cair as pedras com que se tinham municiado. Havia mesmo alguma crispação nos que vieram de longe, com sacrifício, e um certo desapontamento de todos os que esperavam divertir-se. Só o Senhor Jesus continuava sereno, a medir o alcance das sua palavras. Mas, eis que da multidão se ergueu um braço e Maria de Magdala caiu derrubada por uma pedrada certeira.
Enquanto algumas pessoas a reanimavam, na esperança de repor o espectáculo que tão depressa se esgotara, o Senhor Jesus foi junto do atirador e disse-lhe:

–    Então tu, meu filho, nunca erraste?

–    Senhor, a esta distância, nunca.

23 de Agosto, 2010 Fernandes

O Espírito Santo

Um tema muito querido aos crentes é o do Espírito Santo.

Em latim “animus” era sinónimo de “spiritus”, e referia-se à respiração. Também correspondia a “animal”, entendido como ser animado, ou seja; que respira. Em sânscrito, os movimentos de respiração, designam-se por “brahman”, sopro ou expiração; e “atman”, inspiração. Em grego, “pnema” e “psyche”, e ambos deram origem ao “spiritus” latino.Resumindo, a alma não é mais do que o acto de respirar.

Não foi por acaso que Deus se limitou a “soprar” o seu alento nas narinas de Adão numa espécie de “animação” boca a boca, para divinamente lhe insuflar a vida.

A propósito de linguística teológica (ou teologia linguística), é interessante notar que a passagem do hebreu “ruach” para o grego “pneuma” e para o latino “spiritus” sofreu uma dupla transformação de género: de feminino a neutro, e depois a masculino. Para os linguistas, o assunto termina aqui. Para os teólogos começa uma das suas habituais diatribes metafísicas sobre o “género” do Espírito Santo”. Os adventistas do sétimo dia acham que deve ser feminino como no original hebreu.

As invenções mitológicas sobre o nascimento de Jesus, confiam ao Espírito Santo a tarefa da concepção virginal de Maria. Segundo Mateus; «Maria engravidou pelo poder do Espírito Santo»; mas em Lucas, é um anjo que diz a Maria: o Espírito Santo virá sobre ti.

A partir de então o dito Espírito Santo é apresentado sob a forma de línguas de fogo de pentecostes, imposição das mãos, ou sob a forma de uma pomba branca, em voo picado, descendo a partir de um céu desgarrado com muitas nuvens, raios e acompanhado de uma frota de anjos, como aparece pintado na nave central da basílica do Vaticano.

Se hoje em dia as expressões literárias acerca do Espírito Santo não nos aquecem nem arrefecem, no passado não sucedeu o mesmo.

O Credo promulgado em 325 pelo primeiro Concílio de Niceia terminava simplesmente assim: «creio no Espírito Santo». Mas no Concílio de Constantinopla, em 381, foi modificado e acrescentado: «procede do pai, e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado». Esta versão ainda é usada hoje em dia, por gregos e russos, e católicos orientais, coptos, maronitas, caldeus, romanos, arménios, ucranianos…

Em 421, o Concílio de Éfeso decidiu que o Credo de Constantinopla era inalterável. Mas em 447 o Sínodo de Toledo por sugestão do Papa Leão I, alterou-o decidindo que: «procede do pai e do Filho». Para eliminar as possíveis conotações de que o filho poderia ser “inferior” ao Pai. Em 809 o Concílio de Aachen e o Papa Leão II, proíbem-no. Isso não impediu que fosse adoptado pelo Papa Benedicto VIII em 1014, para a coroação do imperador Henrique II. Em 1054, o Papa Leão IX e o patriarca Miguel I, devido a este assunto tão grave, excomungaram-se mutuamente dando início ao cisma.

Apesar das tentativas de reconciliação em 1274 e 1439, por altura do segundo Concílio de Lyon e de Basileia, continuam zangados, separados até aos dias de hoje. Ironicamente, cada uma delas apelida-se de «igreja una, santa, católica e apostólica» e acusa a outra de cismática, apesar das respectivas excomunhões terem sido retiradas em 1965 pelo Papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras I.

Em 6 de Agosto de 2000 numa tentativa de superar o problema considerado anacrónico inclusivamente pelo Vaticano, a Congregação para a Doutrina da Fé, publicou uma Declaração Oficial firmada pelo então Cardeal Ratzinger, intitulada “Dominus Jesus”, que reproduzia o texto latino do Credo sem a cláusula que os dividia.

– Parafraseando Thomas S. Eliot em The Hollow Men [os homens ocos], assim termina a teologia: – não com um berro mas com um silêncio.

Não deixa de ser divertido, o Vaticano atribuir ao divino Espírito Santo, a responsabilidade de eleições “demasiado” humanas, para “validar” as sua mais diversas decisões, como a eleição do Papa ou os pronunciamentos doutrinários. Espírito Santo esse, que não é mais do que a “espiritualidade dos cães” de que fala Charles Darwin” na, Origem do Homem.

No entanto, o espírito Santo passou a escrever-se com maiúsculas, e foi promovido a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. Para os mais ignorantes a Igreja esclarece que o espírito santo: «edifica, anima e santifica a Igreja».

23 de Agosto, 2010 Fernandes

Exorcismo e superstição

As “paixões” da culpabilidade podem ser causa de desequilíbrios psicossomáticos, e portanto factores de doença. «O logos do Pai, – escreve Clemente de Alexandria- , é o único médico que convém à fraqueza humana. Ele conserva a saúde, ele descobre os males, ele aponta as causas das doenças, ele corta as raízes dos apetites malsãos, ele prescreve um regime de vida, ele receita todos os contravenenos que podem salvar do mal.» Por seu lado, Orígenes escreve: «Nós curamos com o remédio da fé!»

Levando esta teoria às últimas consequências, os cristão chegaram a considerar ilícito o uso de medicamentos, como se só da oração e do exorcismo se pudesse esperar a saúde. Taciano, permitia o uso de remédios aos pagãos, mas proibia-o aos cristãos. « A cura pelos remédio» escreve ele, «provém em todos os casos, dum engano, pois se alguém é curado pela sua confiança nas propriedades da matéria, sê-lo-á muito mais se se abandonar à força de Deus.»

É verdade que nunca os cristãos pensaram que podiam curar sem a ajuda de Deus. Recorriam sempre à oração dos presbíteros e à unção sacramental. Em certos casos, pensava-se que a doença era devida a possessões demoníacas, e utilizou-se, por vezes em excesso, o exorcismo, sempre praticado em nome de Cristo.

Pouco a pouco, nas franjas do cristianismo, apareceram superstições e pseudomilagres, que ainda estão muito em uso no mundo cristão, mesmo esclarecido. É interessante registar que este tipo de “religiosidade”, com exorcismos, relíquias, amuletos e cerimónias mágicas, começou logo nos primeiros anos. Superstição e falsos milagres médicos, sempre andaram de mãos dadas na religião. Para o facto contribuiu o próprio Cristo: «Ide-vos embora» ordena Cristo aos dois doentes possessos de Gerasa. «Cala-te e sai deste homem», diz ele ao possesso dum espírito imundo da sinagoga. Hoje essas doenças pertencem ao campo da epilepsia e histeria.

Há alguns anos, o apresentador de televisão Pierre Dumayet, fez na televisão uma emissão sobre os ritos mágicos de que se serviam alguns camponeses para proteger o seu gado, cuja morte inexplicável era atribuída ao Demónio. O Prior da freguesia aparecia complacente no pequeno écran para explicar que recitava as orações do exorcismo e que isso dava excelentes resultados. Era mais eficaz e menos caro do que o veterinário. É interessante que os camponeses chamavam sempre o veterinário. Se, estatisticamente, os resultados obtidos com as orações exorcizantes fossem satisfatórios, não recorreriam a ele.

O objectivo da educação cristã deveria, pois, ser o de fazer homens livres, responsáveis, capazes de se conhecerem e aceitarem na plenitude que permite o dom generoso de si próprio. E não o de  espalhar a superstição.

22 de Agosto, 2010 Fernandes

O sentimento de culpa na teologia cristã

Muitas doenças aparentemente orgânicas são na realidade, doenças de conversão devidas à introversão da angústia e da agressividade.

É muito frequente a análise psicológica descobrir sentimentos de culpabilidade nas mais variadas neuroses. É normal que a investigação médica ponha, com muita clareza, o problema da relação entre a doença e o pecado.

Ao que parece, foram os padres de Alexandria e da Capadócia, em especial Santo Atanásio e São Gregório Niceno; os primeiros a elaborar uma doutrina teológica da doença. Eles reflectiram acerca das consequências do “pecado original” sobre a natureza humana: o homem criado por Deus à sua imagem e semelhança, segundo o Génesis, é a imagem da divindade, mas possui uma natureza própria, a humana. Se Deus é absolutamente impassível e inacessível à doença, como é que o homem, imagem sua, pode sofrer de doença?

A resposta de Santo Atanásio e São Gregório Niceno é a mesma: a natureza do homem tornou-se acessível à doença por causa do primeiro pecado. «O homem teria sido criado num estado de impassividade e de assexualidade».

Santo Atanásio esclarece: «O primeiro objectivo de Deus, fora o de que os homens não nascessem pelo casamento e pela corrupção, mas a transgressão do seu mandamento conduziu à união sexual, por causa da iniquidade de Adão.» O bispo de Niceia é ainda mais explícito: «Esta divisão em sexos nada tem que ver com o arquétipo divino: ela aproxima os homens dos seres irracionais.»

Ou seja: O homem enquanto imagem divina, era naturalmente assexuado e inacessível à doença. Se não fosse o primeiro pecado, a sua reprodução teria sido semelhante à da “natureza angélica”. Numa segunda etapa, Deus, prevendo o pecado que o homem iria cometer pelo seu livre arbítrio, acrescentou à imagem a distinção dos sexos.

Esta mudança na natureza humana teria feito dela uma natureza sexuada, mortal, passível da doença. É assim que Gregório de Niceia pode dizer que o criador da doença e da morte, não foi Deus mas o próprio homem.

A resposta é-nos dada pelo Evangelho: a doença é uma provação e uma ocasião de mérito. Escreve São Basílio numa carta a Hilarião. «Quanto aos sofrimentos do corpo, exorto-te a comportares-te corajosamente, e como convém diante de Deus que nos chamou; porque se Ele vê receber as coisas presentes com acção de graças, ou acalmará as nossas dores e as nossas afecções, ou recompensará magnificamente a nossa paciência no estado futuro, depois desta vida.»

A convicção de que a doença é o castigo directo dum pecado grave, foi sempre “promovida” no mundo cristão. Segundo estes, a doença só apareceu quando o homem infringiu a lei de Deus, e quando agiu “livre e consciente”. Mais recentemente, Lutero atribuía as doenças ao Diabo. A doença, dizia ele, não vem de Deus, que é bom e faz sempre o bem, mas sim do Diabo, que é a causa de todas as desgraças.

A acção nociva do sentimento de culpa através da exploração do pecado sobre a saúde física pode ser, aliás, lenta e progressiva. Subtilmente, o pecado, entendido no sentido mais lato do termo, como como transgressão da “lei moral” que todos os crentes aceitam e reconhecem como necessária, trás consigo, a longo prazo, uma sequela inexorável: um sentimento de culpabilidade.

Não é raro que esse sentimento de culpa, se exprima sob forma simbólica, desencadeando desordens psíquicas, ou mesmo alterando a função de certos órgãos, podendo essa alteração provocar posteriores lesões nos pontos fracos do organismo. Não é raro acontecer que uma “alma doente”, no sentido moral da expressão, acabe por se tornar uma alma doente no sentido médico. A culpabilidade que ela não pode assumir, traduz-se em desordens psíquicas, depois em desordens físicas. A Teologia cristã torna assim possível, uma verdadeira patologia psicossomática.

Um certo número de cristãos «virtuosos, prudentes, justos e temperados» passam a sua vida a defender-se do pecado e da angústia, dobrando-se sobre si próprios na “virtude” da culpabilização.

15 de Agosto, 2010 Ricardo Alves

Quem não for ortodoxo perde o emprego

Uma empresa de lacticínios da região de Moscovo, com cerca de seis mil empregados, anunciou que a partir de 14 de Outubro quem não for casado pela religião cristã ortodoxa russa, ou até quem o for mas fizer um aborto, será despedido. Os empregados que já forem casados civilmente terão três meses a partir dessa data para se casarem religiosamente.

26 de Julho, 2010 Fernandes

Infância perdida

Quando penso na minha infância, fico impressionado pela exiguidade das recordações que tenho de meu pai. Por causa do casamento minha mãe mudara-se para longe da sua terra natal. Era “um bicho do mato” e só tinha verdadeiros contactos com o pároco da freguesia.

Estou convencido que decidiu muito cedo que seu único filho havia de ser padre. Enfeitou-me e destinou-me ao sacrifício.

Recordava-me muitas vezes a frase de Lapérine: «quando temos de escolher entre dois caminhos, devemos tomar o caminho mais duro: o medo é o sinal do dever.»

Comecei muito cedo a ter pesadelos, via-me queimado pelas chamas do Inferno, e gritava, ao que parece, como condenado. O médico tranquilizava a minha mãe dizendo-lhe que se tratava de febres de crescimento. Na realidade o pecado mortal foi a obsessão de toda a minha infância e eu confessava-me muitas vezes com medo de não ter dito tudo. Recordo-me de um texto do meu catecismo, que se intitulava: «Pelos meus pecados mereci o Inferno.» Li-o e reli-o tantas vezes que ainda o sei de cor:

«Oh! Como são terríveis as torturas dos condenados no Inferno. Estão privados para sempre da visão de Deus. Sofrem num fogo mil vezes mais ardente do que todos os fogos da terra. Ouve constantemente blasfémias, gritos de raiva e de desespero. Estão rodeados de demónios. E por quanto tempo dura este suplício atroz? dura para sempre, para sempre, dura toda a eternidade. Oh como é terrível o Inferno! E é isso que nós merecemos pelo pecado mortal. Neste momento, talvez até eu próprio tenha pecados mortais a pesar-me na consciência. Se morresse agora, seria, portanto, precipitado no Inferno. Oh meu Deus, não permitais que eu morra neste estado. Arrependo-me sinceramente de todos os meus pecados e prometo nunca mais Vos ofender.»

Minha mãe evitava qualquer gesto de ternura para comigo, porque era preciso endurecer-me. Beijava-me na testa e, em seguida, apresentava-me a sua face direita. Nunca me lembro de ter estado sentado nos seus joelhos. Só uma vez me pegou nos braços: o dia da minha primeira comunhão. No fim do almoço, o prior da freguesia anunciou que eu ia entrar para o seminário, porque tinha vocação. Jesus tinha-me dito, no íntimo do meu coração, que fosse padre.

Fiquei estupefacto e inquieto, pois nunca tinha ouvido nada disso. Mas a alegria da assistência, o sorriso e a ternura da minha mãe, o facto de ser uma vedeta que teria direito à primeira fatia do bolo, apaziguaram um pouco a minha inquietação e as minhas dúvidas. Foi assim que entrei para o seminário menor. A minha primeira impressão foi desagradável. Era um grande edifício, triste, de estilo napoleónico, com longos corredores sombrios e dormitórios enormes. Quantas vezes os percorri em forma e em silêncio, com as mãos atrás das costas, sob o olhar severo de um padre, que espreitava ao mais pequeno murmúrio. Éramos vigiados com extrema severidade e o grande receio de todo o corpo docente, era que houvesse entre nós amizades particulares. No recreio, tinhamos de brincar juntos. Se um de nós ficava de lado a reflectir ou a brincar sozinho, era imediatamente acusado de ter maus pensamentos. Quando, em vez de um só, eram dois, o caso era ainda mais grave. Era impossível ter um companheiro, um amigo, pois qualquer relação preferencial era considerada como doentia. No dormitório tínhamos de dormir com as mãos fora da roupa…

– Tens pensamentos maus?

Silêncio interrogativo da minha parte.

– Deixas divagar o teu espírito?

– Sim, às vezes isso acontece. Penso naquilo que gostaria de fazer. Gosto de trabalhos manuais. Gostava de ser carpinteiro.

– Tocas no teu corpo?

Após um silêncio que eu pressenti como ameaça, o padre mandou-me embora, dando-me por penitência rezar duas ave-marias.

 Durante todo este período trabalhei muito. Era o primeiro da turma. Isso granjeou-me alguma consideração por parte dos meus condiscípulos e dos meus superiores. Quando voltava a casa, tinha a impressão de ser um ser à parte. A minha mãe beijava-me na testa, o meu pai apertava-me a mão. Nunca cheguei a saber se ele estava de acordo com a minha vocação. Ele nunca dava a sua opinião. Durante as minhas estadas em casa, o prior da freguesia vinha visitar-nos regularmente. Interessava-se muito pelo bom resultado dos meus estudos e felicitava-me apertando-me a orelha.

Conservo a recordação de uma infância solitária; não tinha um amigo no seminário menor; não tinha um amigo quando vinha de férias. Via com nostalgia as crianças da vizinhança baterem-se entre si, correr, gritar no jardim. A minha dignidade de seminarista não me permitia participar nessas coisas. Dava grandes passeios solitários pelos campos. Por vezes meu pai acompanhava-me. Ia sempre calado a apertava-me a mão com força. Apontava com a bengala algumas flores ou arbustos e dizia-me o nome deles em latim. Nunca tivemos uma única conversa.

Quando os meus primos vinham a minha casa sentia que eles me admiravam, mas não se sentiam à vontade comigo. De quando em quando, tínhamos direito a jogar ao dominó ou à batalha naval. Para mim era um ponto de honra ganhar todas as partidas. Na verdade não tinha qualquer outro meio de exprimir a minha agressividade.

As férias grandes eram para mim uma provação particularmente penosa. Todas as manhãs ia ajudar à missa das sete e depois ajudava o sacristão a arrumar os paramentos. O sacristão era um velho militar reformado. Foi ele talvez o único juntamente com meu pai, a perceber a minha tristeza e o meu mal-estar. Depois da missa levava-me muitas vezes a sua casa, para me mostrar algum troféu que trouxera das suas campanhas. Tinha um magnífico sabre que deve ter cortado algumas cabeças. Via-me no recreio do seminário menor a cortar a cabeça dos meus condiscípulos, mas acho que nunca dos meus profesores.

Ao domingo fazia o peditório em todas as missas. No fim da função, o prior apreciava com uma olhadela o conteúdo do saco e manifestava muitas vezes o seu descontentamento: – Unhas-de-fome, no próximo domingo eu lhes direi.

Os peditórios rendiam muito mais quando vinha algum missionário pregar e pedir para as missões. Para o seminário ou para os padres idosos. A sua abundância era directamente proporcional à veemência e às imprecações do pregador.

Eu divertia-me a apreciar quais os argumentos mais rendíveis (ajuizava da rendibilidade pelo número de notas que caiam no saco). A acumulação dos bens materiais, sinal de torpeza e egoísmo e injúria feita à pobreza de Cristo, tinha um êxito nitidamente superior. Mas o mais rendível de todos era a culpabilidade e a angústia: lembro-me de um missionário, robusto e bronzeado, que tinha o dom de encher o meu saco até ao cimo. Utilizava sempre o mesmo género de argumentos: O vosso apego ao dinheiro há-de-vos perder e levar para o Inferno. Estais certos de que o adquiristes honestamente e de que não explorastes o vosso semelhante? Muitos de vós devem ter grandes pesos na consciência. Sabei repartir os vossos bens para obterdes a indulgência do Senhor.

Todas estas verificações me deixavam vagamente inquieto. Este apelo à má consciência provocavam em mim um certo mal-estar. Sentia que havia ali algo que não estava certo, mas não conseguia saber bem o quê. Conservei sempre um complexo de culpa em relação ao dinheiro, e penso que a isso não são estranhas estas diatribes ao domingo.

– Soglinac, Pierre. – A neurose cristã.

24 de Julho, 2010 Fernandes

Os prodígios de Jesus

A detenção do presumível homicida de Torres Vedras e as suas atitudes algo insanas, levou-me a pensar em Jesus. Não esse Jesus da tradição rabínica a quem se atribui o “discurso da sabedoria”, mas o outro Jesus, o mago que faz prodígios de veracidade duvidosa e escassa inteligência, com pouca ou nenhuma utilidade.

Prodígios que o mesmo “Jesus Profeta” negou ter realizado, quando afirma: «Esta gente malvada e infiel pede um sinal milagroso, mas não se lhe dará outro sinal que não seja o do profeta Jonas» – Mateus XII,39. Marcos VIII,12. Lucas XI, 29. E prodígios que nem o populacho achava convincentes, dado que João se lamenta que «apesar de Jesus ter realizado tão grandes milagres diante deles, não acreditavam nele». – João XII,37.

O primeiro milagre, das três dezenas registadas nos evangelhos canónicos, é como se sabe o da transformação da água em vinho nas bodas de Caná, contado apenas por João. Sabemos hoje que não passa de uma metáfora da primeira praga do Egipto, inventada para sugerir um paralelo entre o Jesus do Novo Testamento e Moisés do Antigo.

Além de algumas pescarias milagrosas, agradecidas evidentemente pelos pescadores, também brilhou na culinária ao multiplicar pão e peixe que da primeira vez saciaram cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças, com cinco pães e dois peixes, apenas; e da segunda quatro mil, com sete pães e “alguns peixes”, sempre sem contar com as mulheres e crianças. Conseguindo uma melhor relação quantidade/preço, no primeiro milagre que no segundo. Quiçá Jesus estivesse mais cansado da segunda vez, pois nessa ocasião já tinha curado coxos, aleijados, cegos, surdos e muitos mais enfermos. – Mateus XV 32,38. Marcos VIII 1,9.

Naturalmente que as curas constituem o cavalo de batalha de qualquer um que queira atrair multidões. Entre as curas já citadas cabem ainda os leprosos, epilépticos, e endemoninhados. O qual dado o seu número podemos deduzir que a Palestina da altura não era um lugar muito saudável.

Entre estas curas, o exemplo talvez mais desconcertante seja o dos dois “endemoninhados” (ou apenas um, segundo as versões), em que Jesus não está com meias medidas, e faz entrar os demónios que os possuíam, numa vara de dois mil porcos, para logo de seguida os fazer precipitar e morrerem afogados.

Esta história é uma autêntica anedota. Com ela aprendemos que:

1º Um endemoninhado está mesmo possuído por demónios, que podem entrar e sair do corpo.

2º Jesus demonstra pouca consideração pelos animais que podiam ser facilmente salvos. Se fosse hoje, seria processado pela Associação Protectora dos Animais. Não será por acaso que depois do milagre, a gente do povoado lhe implora que se vá embora.

3º Revela escassos conhecimentos dos lugares do suposto “testemunho ocular” de Mateus, uma vez que situa o episódio na cidade de Gadara, que a mesma edição oficial reconhece estar a 12 quilómetros do lago, em vez de sensivelmente «sobre a outra margem».

Pode parecer mentira, mas é graças a estas e outras “curas” milagrosas de Jesus, que a Igreja no século XXI continua a acreditar na possibilidade de expulsar demónios através de ritos de exorcismo. Estes não são praticados apenas em películas de duvidosa qualidade cinematográfica, por padres de duvidosa saúde mental, mas até no Vaticano por Sua Santidade: a última vez foi Paulo II a 6 de Setembro de 2000, parece que sem êxito. Os exorcismos são definidos desta bonita maneira no Catecismo:

O exorcismo acontece, quando a Igreja com a sua autoridade, ordena em nome de Jesus, que uma pessoa, ou objecto, seja protegido do Maligno e salvo do seu domínio. Praticado de forma ordinária no baptismo (sic), o exorcismo solene, também chamado “grande exorcismo”, só pode ser realizado por um presbítero autorizado pelo bispo.

* Fonte: – Odifredi, Oiergiorgio. – Por que no podemos ser cristianos e menos aun catolicos.

23 de Julho, 2010 Fernandes

O Regresso de Deus

Uma das piores coisas neste mundo, é a construção de ilusões, elas conduzem ao auto-engano. Que o digam os políticos, que o digamos nós. O papa polaco e o seu mentor Joseph Ratzinger, elucidaram-nos respectivamente às “ilusões” da Igreja.

A especulação teológica ao serviço da fé pode entregar-se a todo o tipo de “jogos semânticos”, abusando da interpretação simbólica. O magistério da “infalibilidade” está aí, mas sabemos que quando tentamos passar da retórica aos factos concretos, os falsos concordismos da teologia caem por terra.

A natureza híbrida e contraditória dos dogmas eclesiásticos, permite amplas ambiguidades. Mas tanto na esfera das “definições” como das “condutas”, existem limites inultrapassáveis, – se o catolicismo não quiser desaparecer. Chega uma altura em que as decisões sobre o divórcio, contracepção, homossexualidade, onanismo, feminismo, conflitos de classes, estrutura hierárquica e outras questões mais ou menos graves se impõem, e estas não admitem ambiguidades, se se quer uma moral despida de dogmas.

Os chamados “cristão progressistas”, confrontados dia atrás dia, com os avanços da ciência – onde incluímos a investigação histórica -, foram perdendo a sua fé nos dogmas. Os mais audazes não tiveram dúvidas em reduzir a sua fé pessoal a uma mera crença num Jesus divino. Naturalmente que isto equivale a anular a especificidade do “mistério cristão” tal como foi produzido pela literatura neotestamentária – com as suas incongruências e contradições formalizadas desde o início do século II. Equivale por conseguinte a suprimir praticamente a “exclusividade” da verdade cristã. Não deve surpreender-nos portanto, que desde as dramáticas “vacilações” de Paulo VI até à tentativa de “restauração” de Paulo II; a Igreja tenha reagido violentamente contra um certo risco de dissolução.

Surgem assim os integrismos cristãos, que por razões óbvias criticam os valores da Ilustração e escolhem para inimigo o Humanismo Secular. Eles promovem e financiam correntes de pensamento que favorecem formas de autoritarismo, de emotivismo, de irracionalismo e alienação, que dissolvem os postulados da crítica racional. Tenta associar-se o “regresso de Deus” com a restauração neoconservadora de “obediência social”.

A verdade é que essas formas de pensamento têm como objectivo instalar ou reinstalar progressivamente, regimes de carácter Teocrático; com Deus e a Igreja no cume, com a tradicional concepção anti-democrática, autoritária e tradicionalista, rigidamente hierarquizada. A isto eles chamam pomposamente de; “novas formas de socialização”.

O “regresso de Deus” resulta assim, num fundamentalismo integrista que se limita a equipar a consciência íntima do explorado com os instrumentos psicológicos necessários para “forjar” uma “falsa” liberdade de consciência que lhe permita adaptar-se à ordem e disciplina estabelecida.

Um desses movimentos integrista/fundamentalista, é o Opus Dei, organização em que resultam patentes as afinidades entre o tradicionalismo integrista e a doutrina e prática social de vocação capitalista.

15 de Julho, 2010 Ricardo Alves

A fé e a burla

Na terça-feira, um homem de 42 anos entrou com uma empilhadora num templo da IURD, em Faro, destruindo parte da sala. O homem explicou agora que, por acreditar na promessa da igreja de que «Deus» pagaria em triplicado, deu 100 mil euros à igreja, soma que obteve vendendo a quase totalidade dos seus bens (só não vendeu a casa).

Prova de fé ou burla? Ou será que não há diferença entre as duas, em situações como esta?

Adenda: ver os vídeos no blogue Embusteiros; fotografias e a reacção da IURD no blogue de Edir Macedo.