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Categoria: Cristianismo

15 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

O Natal de um ateu

Já me têm perguntado: “como é o Natal de um ateu?”. É uma curiosidade motivada pela ideia generalizada de que a sociedade está dividida em segmentos. Há o segmento religioso, o segmento político e o segmento futebolístico (no mínimo…). E também há quem pense que em cada segmento as pessoas funcionam de modo diverso das outras.

Para satisfazer os curiosos… cá vai:

Não posso falar pelos ateus em geral, porque cada pessoa é ela própria e não o decalque de quaisquer outras (consideração válida para ateus e religiosos); como os meus amigos sabem, religiosamente sou ateu, politicamente sou de Esquerda, e em futebol… sou contra! Não gosto de futebol, nunca joguei a bola nem entrei num estádio e não vejo campeonatos, nem pela televisão. Costumo dizer aos meus amigos que, para mim, o futebol está ao nível de Deus… não existe!

Quanto ao Natal… é uma festa religiosa das sociedades cristãs. Cada um de nós, embora seja dotado de raciocínio próprio, é sempre o resultado do meio em que nasceu – cresceu e foi educado – não lhe podendo fugir. O Natal e a Páscoa são festas religiosas do meio que me fez, mas também são profanas. A Páscoa nunca teve significado no meu meio familiar; é um Domingo como qualquer outro… sempre assim se procedeu em minha casa porque “a ressurreição” (no figurino em que os religiosos cristãos a apresentam) não tem sentido.

Já o Natal é a “Festa da Família”. É um dia em que se reúnem familiares mais chegados, habitualmente separados por factores profissionais ou de residência distante, num jantar comunitário (designado por Consoada, palavra derivada do latim Consolata que quer dizer “refeição partilhada”) onde se sacrifica um bacalhau salgado, já sacrificado no Mar do Norte, regado com azeite de Trás-os-Montes e acompanhado de um bom vinho. Há sobremesas doces e distribuição de prendas, e findo o serão vou dormir sem assistir “à missa do galo”.

Imagem da Unsplash

Portanto, retirando a missa e as orações dos Católicos (que nem todos cumprem), o meu Natal de ateu é igual ao Natal de um religioso!

As datas religiosas da Igreja Católica, como Páscoa e Natal, têm a ver com a vida de Jesus Cristo, enquanto ícone deífico dos cristãos… mas também estão ligadas à Natureza, aos equinócios do Inverno e da Primavera. Toda a vida dos Seres Humanos é baseada, em primeiro lugar, na Natureza, e depois na sociedade e no seu folclore próprio e sazonal, que pode ser laico ou religioso, mas que é, sempre, folclore inerente a cada grupo social, que a Antropologia, a Etnologia e a Sociologia, estudam e explicam.

O Pinheiro e o Presépio

Nos meus tempos de miúdo ia cortar, numa bouça próxima de casa, um pequeno pinheiro recém-nascido, que enfeitava com bugalhos forrados com prata retirada dos maços de cigarros (encontrados no lixo e no chão da rua) rematando a obra com bocadinhos de algodão a fingir de neve (se tivesse vinte e cinco tostões para comprar pequenas bolas de vidro, coloridas e muito frágeis, e dois pacotinhos de minúsculos chocolates amarrados com uma fita de seda, para pendurar na árvore… era uma festa e a obra ficava espectacular!) sem ter consciência de que a tradição da árvore de Natal estaria ligada às crenças dos povos pagãos do norte da Europa, principalmente à celebração do Solstício de Inverno – a noite mais longa do ano – como homenagem à Natureza adormecida.

Já o Presépio encerra uma outra história para além da relação com o Solstício de Inverno. Uma breve consulta ao Novo Testamento mostra-nos que de entre os evangelistas que nos falam da história de Jesus nenhum deles narra a cena que estamos habituados a ver designada por Presépio. Mateus (2:11) diz-nos que os reis magos “entrando na casa acharam o menino com Maria”. Logo, o estábulo da tradição não existe nesta referência, já que o local do nascimento seria “uma casa”.

Marcos e João omitem o nascimento de Jesus, referindo-o já como adulto, quando é baptizado nas águas do rio Jordão por João Baptista.

Lucas (2:7) já nos diz que Maria “deu à luz o seu filho primogénito e envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na estalagem”.

A necessidade de José e Maria terem um lugar para pernoitar, devia-se ao facto de se terem deslocado de Nazaré, onde viviam, para Belém, na obrigação de se recensearem, no cumprimento de um decreto do imperador César Augusto que obrigava ao recenseamento de todos os cidadãos; e o casal partira para o local quando Maria já estaria num estado avançado de gravidez.

A imagem do Presépio que hoje figura na maioria das casas e nas montras das lojas na época natalícia, teve origem numa ideia de Francisco de Assis que, em 1223, festejou o Natal fora da igreja, montando uma manjedoura na floresta de Greccio, Itália, colocando junto dela um boi e um burro como elementos tradicionais de um estábulo.

O povo não entendeu de imediato o significado daquela encenação, mas durante a Idade Média o costume espalhou-se e, em 1567, a Duquesa de Amalfi mandou montar um grandioso Presépio com 116 figuras representando o nascimento de Jesus Cristo com a adoração dos reis magos, dos pastores e com anjos a cantar.

A partir do século XVIII o costume espalhou-se pelas casas dos crentes, mantendo-se até hoje… e convenhamos que o Presépio, enquanto decoração natalícia, fica muito bem nas montras das lojas e nos centros comerciais, nesta época de chamamento ao consumo desenfreado… conotando uma festa de cariz religioso, com o consumismo.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

1 de Dezembro, 2024 Onofre Varela

O mistério da água na Criação

Neste momento tenho em mãos a finalização de um projecto de livro onde abordo o Génesis bíblico sob o ponto de vista de um leitor laico da Bíblia.

Interpreto os textos bíblicos com o conhecimento do meu tempo (e apenas daquele conhecimento que detenho, ou imagino deter, porque sei que não sei tudo) sem esquecer que os autores das narrativas bíblicas não o possuíam, e só puderam registar o conhecimento que tinham no tempo e no lugar em que as escreveram há cerca de 3000 anos. Obviamente, os seus saberes (no âmbito das minhas premissas) seriam muitíssimo mais limitados do que são os de qualquer um de nós (dos interessados pelo mesmo tema), três milénios depois.

De acordo com isto, o que se narra no Génesis mereceu-me a apreciação que faço no referido projecto de livro, dando conta de que a simplicidade com que a “Criação divina” é descrita na Bíblia se assemelha a um conto infantil dos mais puros, cujas acções narradas não precisam de coerência, aparecendo do nada sem qualquer ligação com a realidade das coisas.

O infantil leitor não tem qualquer dúvida sobre a verdade do conto entendendo-o como verdade sem necessitar de o ver explicado.

Uma narrativa deste tipo não pode ser negada, porque é ficção poética… e é bonita!…

Como tal, não pede explicação nem merece contestação. Seria uma estupidez contestar um poema!

A liberdade criativa dos poetas, dos escritores e dos artistas em geral, não tem limites. A dos autores dos textos bíblicos também não… e devemos entendê-los num enquadramento temporal, geográfico, social e político, que hoje temos muita dificuldade em imaginar.

Porém, para os intrinsecamente crentes, isto não é poesia… é da melhor realidade histórica a merecer crédito imediato!

E é aí que começa a crítica que tais crentes merecem (não a poesia da Criação), por parte de quem ultrapassa as interpretações de fé, aceita a poesia, mas não permite que lha dêem como sendo notícia de um acontecimento real.

Uma narrativa deste tipo não pode ser contestada enquanto texto poético. Contestá-la seria uma atitude tão sem nexo como é afirmá-la… não se contestam brincadeiras de criança, nem lendas, nem poemas.

As lendas são para serem lidas e apreciadas nas suas poéticas, e apreendidas as lições subliminares que, eventualmente, possam conter, não sendo líquido que todas as contenham.

O Génesis nada mais é do que isso, e na sua apreciação devemos considerar as circunstâncias em que foram registadas estas ideias com a presunção de serem reais, não esquecendo que os autores do Velho Testamento as copiaram de narrativas da civilização Suméria, na pretensão (e presunção) de escreverem a história do povo judeu como sendo o “povo eleito de Deus”.

Porém, como as religiões gostam de afirmar a “realidade contida na palavra de Deus”, neste meu exercício lúdico de imaginação pura que transcrevo na hipótese de livro e que aqui comento, encaro a “veracidade da narrativa” conforme a vontade daqueles que a afirmam. Consequentemente, coloco no referido projecto de livro o rosário de dúvidas que tal “realidade” me suscita, sem pretender nada mais que não seja, simplesmente, fazer um exercício lúdico.

Vejamos: o Génesis diz-nos que Deus criou o mundo em nove etapas, ou tarefas. Quase dia sim, dia não, obrava duas delas, num total de seis criações, e as restantes três contaram com um dia para cada uma.

As tarefas do primeiro dia incluíam a criação “dos céus e da terra, da luz e da separação do dia e da noite”. No segundo dia foi criado “o firmamento”, e só no terceiro dia se procedeu “à separação da terra e do mar” (sendo o mar composto por água… é aqui que está o berbicacho!… Já volto ao assunto).

A grande obra de Deus iniciou-se com a tarefa de criar estes dois primeiros elementos: os céus e a terra. No contexto da criação do mundo entendo o termo Terra como substância constituinte do solo do planeta (Land, em inglês), e não no seu todo enquanto planeta (Earth, em inglês), porque Deus terá criado o mundo por etapas, e a terra (Land) foi uma delas. Se o termo Terra referisse o planeta (Earth) não haveria nada mais para criar depois dele, porque o planeta compreende um todo, incluindo o solo, a água, a atmosfera e todas as formas viventes, vegetais e animais que lhe são próprias, pelo que a obra ficaria completa na primeira tarefa.

É de notar que esta primeira criação foi obrada às escuras, pois a luz ainda não havia sido criada (e o termo céus, no plural, é enigmático). Portanto, após a primeira criação, não havia nada mais do que céu (não se sabendo bem o que isso seja) nas alturas, e rocha, terra e pó, no abismo.

Porém, prevalece este mistério: O início do Génesis começa por afirmar que “o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Génesis: 1;2)… que águas?!… De onde brotaram elas?!… Se foi o mesmo Deus quem as criou, os escribas esqueceram-se de registar tão importante e vital criação!

Imagem gerada por IA.

Se o Génesis não refere a criação da água, mas afirma a sua existência após a primeira criação (os céus e a terra), devemos aceitá-la como existindo prévia e independentemente da obra e da vontade de Deus?!… E em que recipiente se encontrava ela?!…

Coisa estranha… mesmo para um poema!…

27 de Outubro, 2024 Carlos Silva

Diz-me mulher

Imagem: Internet


Diz-me mulher

Filha
Mãe
Avó
Esposa
Amiga
Companheira

Diz-me mulher

Como podes permitir que
Um homem
Te roube o direito à vida
Te roube o direito à liberdade
Te roube a autonomia de pensar
Te torture e imponha maus tratos
Te viole física e moralmente até ao íntimo do ser
Te imponha o direito de escolher
Te negue o direito à informação e educação
Te impeça de votar e participar neste progresso
Te humilhe simplesmente por seres mulher

Diz-me mulher

Como podes permitir que
Um livro
Exclusivamente escrito por homens e para homens
Exclusivamente baseado no domínio dos homens sobre as mulheres
Absolutamente machista absurdo e obsoleto
Te peça que sejas submissa
Te faça objeto propriedade e mercadoria
Te cubra o corpo e a mente
Te estupre e atire pedras até à morte
Te cegue e crucifique por perderes a virgindade
Te queime pelo adúltero delito de amares alguém
Um livro escrito com sangue suor e lágrimas
Que de ti faz demónio do bem e anjo do mal
Que te rouba a vida e tudo o que é natural

Diz-me mulher

Como te pudeste deixar seduzir
Por tão encantadora serpente
Como pudeste ter ingerido tão pecaminoso fruto
De tal proibida árvore
Como pudeste ter nascido
De tal dita virgem maria
Sem amar verdadeiramente

Diz-me mulher

Tu que dás e concedes esta vida
Tu que dás alento e alimento
Tu que dás este canto e encanto
Tu que dás esta inspiração e admiração
Tu que dás este sentimento e sensualidade
Tu que tudo dás na realidade
Peço que neste preciso momento
Soltes o cabelo ao vento
Soltes a voz com todo o alento
Quero ouvir o teu grito até ao mundo dar volta
Quero ouvir o teu grito de volta e de revolta

BASTA

Não
Não fiques aí parada
Solta e desvenda a verdadeira beleza do teu rosto
Solta e descobre o verdadeiro encanto do teu sorriso
Solta e manifesta todas as razões do teu coração
Tu és legitimamente a única dona do teu corpo
Tu és autenticamente a única dona do teu ser

Desperta mulher

Desperta o corpo da tua admirável mente
E ama verdadeiramente
Ama plenamente a liberdade
Ama perdidamente aquele homem
Que simplesmente te quer

MULHER


AGORA ATEU (I), 2019-05-26

10 de Outubro, 2024 Ernesto Martins

O Cristianismo não é a resposta; o Cristianismo é o problema – Parte 2/3

Na primeira parte deste artigo argumentei contra o facto de o Cristianismo poder servir de base para um sistema ético universal. Referi também que, além de não apresentar soluções adequadas, a religião cristã é, muitas vezes, ela própria geradora de problemas graves. Nesta segunda parte examino três desses problemas: a moral sexual repressiva, a doutrinação infantil e a negação da ciência.


Moral sexual repressiva
O sexo foi sempre motivo de obsessão no Cristianismo e os ditames morais que emanam da Igreja Católica sobre esta matéria nunca encontraram eco no melhor conhecimento das ciências humanas sobre o assunto
O Catecismo da Igreja Católica [1], autoridade absoluta em assuntos doutrinais, estabelece no seu artigo 2351 que “o prazer sexual é moralmente desordenado quando procurado por si mesmo, isolado das finalidades da procriação e da união”, algo que deveria ser ponderado seriamente pelas mulheres crentes que decidem não ter filhos. No artigo 2370 lemos que “qualquer acção que (…) se proponha tornar impossível a procriação” é intrinsecamente má. Ou seja, contraceptivos não naturais são inaceitáveis. E enquanto a ciência do sexo informa que a masturbação é uma actividade natural no reino animal, o artigo 2352 do mesmo Catecismo assegura-nos que “a masturbação é um acto intrínseca e gravemente desordenado”. Para que serve afinal a ciência?
Um dos aspectos mais negativos do Cristianismo, profundamente contrário a uma ética humanista de respeito pelas opções pessoais dos seres humanos, é a condenação da homossexualidade. Segundo o artigo 2357, “os actos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados… e não podem, em caso algum, ser aprovados”. Contrariamente ao que a ciência nos diz sobre esta orientação sexual em particular, para a Igreja os homossexuais são aberrações da natureza. Além de traduzir uma atitude hostil para com um grupo social, inaceitável numa sociedade inclusiva, esta é mais uma instância do lamentável choque frontal entre fé e ciência.
Ironicamente a atitude repressiva da Igreja Católica, no que toca a assuntos como a homossexualidade e os contraceptivos, tem resultado em verdadeiros tiros certeiros nos pés dada a consequente alienação de muitos fiéis. De facto, numa sondagem da Pew Research realizada em vários países da Europa em 2018, 58% das pessoas sem religião (os chamados nones, que aqui se identificam maioritariamente como indivíduos baptizados e criados como cristãos) dizem ter-se afastado da religião por discordar com as posições oficiais da Igreja em questões como a homossexualidade e o aborto [2].
O casamento entre pessoas do mesmo sexo é um facto social cuja aceitação depende muito da religiosidade dos sujeitos. Segundo a mesma sondagem da Pew Research, em todos os países estudados os cristãos que frequentam a igreja são consideravelmente mais conservadores do que os cristãos não praticantes e os nones em questões como o casamento gay e o aborto [3]. Em Portugal 82% dos nones são a favor do casamento gay contra apenas 43% dos cristãos que frequentam a igreja, que também são a favor. Dados como estes parecem tornar incontornável a conclusão de que a religião favorece efectivamente a repressão.

Doutrinação infantil
Um dos principais factores que perpetuam as religiões ao longo dos tempos é a doutrinação das crianças. E o problema é que se transmite a mensagem religiosa como se esta fosse imprescindível para o desenvolvimento moral dos jovens. Ao mesmo tempo, as narrativas são transmitidas como se de verdades factuais se tratassem: as histórias em torno da vida de Jesus, por exemplo, incluindo os episódios sobrenaturais, são apresentadas como se fossem tão bem atestadas historicamente como os factos em torno da Revolução Francesa (pelo menos, nenhuma ressalva em contrário é feita). Também nunca se refere que só algumas pessoas no mundo (os cristãos, em particular) acreditam efectivamente nessas narrativas e que para muitos milhões (e.g. os muçulmanos) alguns desses relatos são apenas fantasiosos. Finalmente não se fala às crianças de outras tradições alternativas, religiosas e não religiosas, tão ou mais relevantes e com histórias igualmente inspiradoras e de conteúdo moral tão significativo como as do Cristianismo. Em resumo, a visão afunilada e redutora que se transmite é evidentemente tendenciosa e formatadora.
O crescimento substancial do número de nones nas últimas décadas tem levado a estudos sobre os efeitos da educação de crianças em lares não religiosos. No melhor dos casos os estudos sugerem que não há diferenças perceptíveis entre crianças criadas em lares religiosos e em lares seculares [4]. Mas também já se detectaram efeitos nocivos nas crianças sujeitas a uma educação religiosa, nomeadamente na dificuldade que estas evidenciam na distinção entre realidade e ficção [5].

Negação da ciência
Muitas doutrinas cristãs, particularmente as evangélicas, são negacionistas da ciência. O Criacionismo nega os factos da Teoria da Evolução por Selecção Natural. Ao afirmarem a verdade literal da Bíblia promovem também a factualidade do dilúvio universal, ideia cuja credibilidade científica há muito caiu em desgraça [6].
A primeira versão do Criacionismo advogava a criação do universo em seis dias, de acordo com a interpretação literal do Génesis. Uma versão mais sofisticada, o Criacionismo Científico, tentou mostrar que o registo fóssil é compatível com um primeiro acto de criação divina seguido de um dilúvio universal. Uma apresentação ainda mais sofisticada surgiu depois na forma do Projecto Inteligente, que tenta argumentar, usando termos putativamente científicos, que existem na natureza instâncias de “complexidade irredutível” que só poderiam ter surgido por via de um acto de criação divina.
Algumas versões do cristianismo são menos radicais do que as variedades evangélicas, colocando a mão de deus por detrás dos processos evolutivos. No entanto nem estas versões fazem sentido se considerarmos o conceito tradicional de deus como entidade omnipotente, omnisciente e sumamente benevolente: se os organismos foram propositadamente criados por condução do processo evolutivo, então deus só pode ser um criador incompetente, esbanjador e cruel se atendermos ao que se observa no reino biológico com os seus múltiplos sinais de imperfeições (e.g. má localização do nervo óptico, que se traduz num ponto cego no campo de visão; complicações causadas na próstata pelo trato urinário), orgãos redundantes e problemas causados por adaptações evolutivas (diafragma entre a cavidade toráxica e o abdómen; canal pélvico apertado nas mulheres, etc.) bem como doenças várias. Enfim, tudo contingências de um processo evolutivo não guiado. Mas mesmo aceitando a evolução Darwiniana do ser humano, o Cristianismo tem ainda o problema de decidir em que momento da evolução é que a linhagem homo passou a ser agraciada com aquilo a que chamam de alma imortal. Não há como conciliar fé e ciência.
— EVM

Notas:
[1] https://www.vatican.va/archive/cathechism_po
[2] Pew Research Center May 29, 2018, https://www.pewresearch.org/religion/2018/05/29/being-christian-in-western-europe/. Segundo esta sondagem os países com o maior número de nones são os Países Baixos (48%), Noruega (43%), Suécia (42%), Bélgica (38%) e Dinamarca (30%).
[3] ibid.
[4] “Does religion make people moral?” Ara Norenzayan, Department of Psychology, University of British Columbia, 5 December 2013, Behaviour, 151 (2014) 365–384.
[5] “Judgments About Fact and Fiction by Children From Religious and Nonreligious Backgrounds”, Kathleen H. Corriveaua, Eva E. Chenb, Paul L. Harris; Cognitive Science Journal, 151 (2014) 365–384.
[6] 65% dos americanos os adultos dizem que “os humanos e outros seres vivos evoluíram ao longo do tempo”, enquanto 31% dizem que os humanos e outros seres vivos “têm o aspecto actual desde o início dos tempos”. Destes, 43% dos protestantes e 27% dos católicos acreditam que os seres humanos têm o aspecto actual desde o início dos tempos (não evoluíram). Dados de 2015.
Ver: https://www.pewresearch.org/science/2015/10/22/strong-role-of-religion-in-views-about-evolution-and-perceptions-of-scientific-consensus/

9 de Outubro, 2024 Ernesto Martins

O Cristianismo não é a resposta; o Cristianismo é o problema – Parte 1/3

Entre as múltiplas razões que levam as pessoas a manterem-se ligadas a uma religião cristã, uma das principais é talvez a convicção de que o caminho da rectidão moral tem de ter o Cristianismo como premissa. Uma base moral tem de ter um enquadramento cristão – é essa a convicção que subsiste de forma mais ou menos inconsciente na mente dos crentes, e que as instituições religiosas se esforçam por manter ao afirmar-se continuamente, muitas vezes de forma velada, como guardiãs da moral e dos bons costumes.
Há sondagens que mostram que os apologistas religiosos consideram, de facto, que a moralidade tem de se basear em valores absolutos, exteriores à humanidade, os quais tem de assentar, obrigatoriamente, em alicerces religiosos [1]. Este pressuposto explica o recurso frequente a académicos religiosos ou membros do clero quando se trata de obter aconselhamento em questões moralmente significativas – como se estas pessoas fossem realmente autoridades nestes domínios. Para crentes que pensam assim, não existem imperativos éticos sem a crença religiosa. Sem a religião estamos condenados ao niilismo. Durante muito tempo, ser ateu era mesmo quase sinónimo de pessoa amoral, sendo talvez por isso que muitos descrentes evitam, ainda hoje, assumir-se abertamente como ateus.
Na verdade, parece que alguns estudos em psicologia apontam para a existência de um alinhamento preconceituoso entre bem moral e espiritualidade – portanto, algo mais lato do que a religião, que compreende até fenómenos paranormais. Da mesma forma que o bem moral se subentende alinhado com a espiritualidade, o mal moral alinha-se com o materialismo. Por outras palavras, os cépticos e os materialistas são os maus da fita, ao passo que os que crêem no sobrenatural, por mais tonta e ingénua que seja a crença em questão, são os que estão do lado do bem [2].
Mas como é óbvio esta perene associação entre espiritualidade e moralidade é um equívoco que está muito longe da verdade [3]. Se correspondesse à realidade as prisões estavam cheias de ateus e países com grandes percentagens de descrentes (Noruega, Suécia, França, etc.) eram antros de criminalidade, o que está longe de ser o caso. O sentido de moralidade não tem de facto nada que ver com crenças religiosas ou sobrenaturais e os factos da biologia [4] e da sociologia mostram isso de forma clara.
Mas mesmo sabendo que a associação entre espiritualidade e moralidade não passa duma ilusão, podemos, ainda assim, questionar se não fará sentido advogar uma moralidade assente numa religião cristã. Esta solução tem, contudo, pelo menos dois grandes problemas:
1) O primeiro é que compromete o exercício da racionalidade e do espírito crítico por envolver a adopção de crenças sobrenaturais injustificadas. A questão que se coloca é: será que precisamos mesmo de acreditar em milagres para adoptar uma conduta moralmente sã?
2) A segunda objecção é que conceitos como mandamentos divinos, pecado e a promessa duma recompensa ou a ameaça de uma punição póstuma, estão longe de constituir uma base sólida para um sistema ético que promova o convívio harmonioso entre todos os seres humanos, independentemente de credos religiosos ou da ausência deles.
A base de um sistema ético universal não pode residir em directivas escritas na pedra. As regras morais consagradas pelo Cristianismo não parecem ter sido desenhadas na sua origem de forma a serem revistas e adaptadas a eventuais novas situações, revelando-se por isso desadequadas para lidar com os problemas reais das sociedades actuais e futuras.
A consideração que temos hoje pelos problemas ambientais e com o sofrimento dos animais, dificilmente poderia surgir espontaneamente duma ética cristã. O mesmo é válido para o respeito que as sociedades mais evoluídas promovem relativamente à liberdade de expressão, à igualdade de direitos para as mulheres, em relação aos direitos dos homossexuais, à aceitação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e aos direitos ao aborto e ao suicídio assistido.
Em sociedades cada vez mais cosmopolitas e multi-étnicas a base da ética não pode assentar nos pilares imutáveis típicos de qualquer religião. As normas de conduta de um período remoto da história não serão certamente aplicáveis ao espírito do presente. Da mesma forma, ninguém pode garantir que sabe o que é certo e o que é errado para todas as pessoas no futuro em todas as circunstâncias e em todos os lugares. A ética tem de ser continuamente informada pela razão e estar disponível para ser revista com base no melhor conhecimento científico das situações.
Além de não fornecer respostas éticas adequadas para muitas questões actuais, a religião cristã é, por vezes, ela própria, o problema – uma força de retrocesso, fonte de divisões e irracionalidades. Nas próximas duas partes deste ensaio tentarei fundamentar estas afirmações.

Notas:
[1] Isto é mais prevalente em contextos evangélicos (onde mais de 50% dos individuos assumem esta convicção) do que católicos. ver: https://www.pewresearch.org/short-reads/2023/04/20/many-people-in-u-s-other-advanced-economies-say-its-not-necessary-to-believe-in-god-to-be-moral/
[2] Daniel Dennett, 2006, “Quebrar o Feitiço – A Religião como Fenómeno Natural”, pg. 244.
[3] Na realidade é o oposto que parece muitas vezes corresponder à verdade. Ou seja, é à custa do fervor e da inspiração religiosas que, muitas vezes, pessoas boas são levadas a cometer crimes hediondos. Parafraseando Steven Weinberg (prémio Nobel da Física em 1979): “As pessoas boas fazem coisas boas e as pessoas más fazem coisas más; mas para que pessoas boas façam coisas más, é necessária a religião”.
[4] Muito do que é ser moral já parece ser instintivo, tanto em nós como em parentes evolutivos mais próximos. Frans de Waal e outros primatólogos reportaram comportamentos altruístas entre chimpanzés e macacos rhesus; ver Frans de Waal, 2006, “Primates and Philosophers: How Morality Evolved”, pg. 187.

29 de Setembro, 2024 Onofre Varela

Muçulmanos, Judeus e Cristãos

O conflito do Médio Oriente diz-nos que depois de um grupo muçulmano extremista ter matado e raptado israelitas, o governo de Israel – que é composto por uma extrema-direita religiosa judaica que sempre desrespeitou os palestinos – transformou aquele acto terrorista de uma organização que promove a Jihad (luta armada em nome de Deus) numa guerra sem respeitar regras internacionais que defendem as populações inocentes em ambiente de conflito armado.

A guerra que Israel faz na Palestina destruiu um país e matou (continua a destruir e a matar, com potentes bombas fornecidas pelos EUA) jovens, velhos, mulheres, crianças e doentes hospitalizados, com a intenção de eliminar dirigentes da organização terrorista que combatem, esquecendo que com tal atitude são igualmente terroristas e invasores de países vizinhos. Este comportamento dos judeus demonstra serem odiosos; idênticos a Hitler que perseguiu judeus, ciganos e homossexuais na Segunda Guerra Mundial.

Quando falamos da prática religiosa muçulmana temos a tendência de a encararmos como criminosa pelos actos terroristas que os islamitas radicais protagonizam… e nós, tão “puríssimos cristãos” esquecemos as práticas de tortura e assassínio que a Igreja Católica da Inquisição, chamada Santa, já exerceu contra judeus e críticos da fé católica.

O judaísmo não tem profeta. Nos círculos religiosos bíblicos consta que (há mais de 2500 anos) Abraão foi chamado por Deus para que levasse o seu povo em direcção a Canaã, a terra prometida, que hoje é o território Palestino tomado pelos judeus.

Os outros dois grandes grupos religiosos (cristãos e muçulmanos) são mais idênticos do que se possa imaginar. Na prática, um muçulmano acredita na existência de um deus singular, omnipotente, omnipresente e misericordioso. Obedece ao princípio básico de que Deus não é inteligível em termos humanos, e segue um só profeta: Maomé. Até aqui um muçulmano não se diferencia de um cristão. Este, diz o mesmo que o outro, apenas com a substituição do nome de Maomé pelo de Jesus Cristo que, historicamente, antecedeu Maomé em seis séculos.

No Islamismo, tal como no Judaísmo e no Cristianismo, Deus (Alláh: palavra formada pelo artigo definido Al, e ilah, que significa “a divindade”), também é macho. Deus é referido como Pai, e nunca como Mãe. O que é compreensível pelo facto de a figura do “deus único” ser um conceito criado por homens numa sociedade patriarcal e machista. Em tal contexto, Deus teria de ser macho e redutor da condição feminina como ainda hoje se observa (por exemplo) no Irão e no Afeganistão.

Foto de أخٌ‌في‌الله na Unsplash

Este paralelismo entre as duas crenças continua na convicção de que Ele (Deus, seja Jeová ou Alá) criou o universo, mantém-no e sustenta-o. Relativamente a nós, homens fracos e mortais, Ele (sempre grafado com maiúscula porque a subserviência ao poder é lei), seja o deus dos judeus, dos cristãos ou dos muçulmanos, é amoroso, generoso e benevolente (*). Só nos pede que o amemos e nos comportemos de acordo com os seus mandamentos, que são sempre dirigidos pelo respeito e amor ao próximo.

Porém, há uma importante nota a considerar: Ele deve ser amado antes de nós amarmos os outros… (os outros são próximos… mas não tanto!…) este procedimento indicia vaidade, prepotência e ciúme… o que, para um deus, não me parece lá muito bonito!… (É claro que tudo isto é invenção humana com intenção de amarrar os povos ao poder dos sacerdotes que, ao tempo, tinham também o poder máximo: social, político e económico. E Deus, por inexistente, sai absolvido).

Depois de morrermos, Deus premeia-nos ou castiga-nos (dizem os crentes), conforme as nossas acções em vida tenham sido boas ou más, as quais deverão obedecer às suas leis divinas que foram divulgadas através de Moisés, Jesus ou Maomé, por acção directa ou com a intermediação do Anjo Gabriel, para uns, e do Espírito Santo, para outros. A palavra Islão tem sentido duplo: significa Paz, mas também Submissão. Isto é: paz encontrada na submissão a Deus. 

Até aqui, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, em nada diferem.

Se as religiões fossem fontes de bondade e concórdia, como todas elas se auto-consideram, os seus respectivos aderentes viveriam em paz e harmonia no cumprimento da excelente fraternidade por todos eles apregoada, e as esquadras de polícia, mais os tribunais, encerravam por falta de clientela… mas as suas premissas são tão falsas como falso é o propagandista-vigarista que apregoa a milagrosa banha-de-cobra e a taluda da Lotaria numa cautela sem prémio, ou um governo que promete não aumentar impostos, e a Igreja que vende o céu ao crente depois deste “esticar o pernil”.

A Religião, sendo produto do pensamento e da acção dos homens, não é diferente da Política… cria grupos facciosos e fundamentalistas; e o fundamentalismo é o beco sem saída por onde enveredam os mais belicosos adeptos das seitas (religiosas ou políticas), estragando as relações humanas que podiam (e deviam) ser afectuosas.

No fundamentalismo, os “outros” são sempre os “inimigos” que só existem para serem derrotados… isto é, abatidos… como se “nós” (o contrário de “outros”) fossemos a fina-flor da Humanidade!… Há lá coisa mais vil, desumana e estúpida?!…

(*) – Embora na Bíblia se registe que Deus provocou a morte a imensa gente, como é exemplo o episódio bíblico das pragas do Egipto (entre outros), onde o tão amoroso deus dos judeus e dos cristãos é apresentado como um “serial Killer”: matou todas as crianças… só para atingir o filho do Faraó! Hoje, os “serial Killer” estão presos. E em alguns estados dos EUA são executados.

23 de Setembro, 2024 Onofre Varela

“A verdade liberta. A mentira prende”

Em 2007 a Editorial Caminho editou o meu livro “O Peter Pan Não Existe – Reflexões de um ateu”, obra que me ocupou cinco anos de escrita e, ao que julgava saber, a edição estaria esgotada… porém, dois amigos, num espaço de tempo curto e em livrarias diferentes, conseguiram o livro! Combinamos um jantar para dar à língua, recordar tempos passados e poder dedicar-lhes os dois exemplares do Peter Pan. Por essa razão peguei no exemplar que me resta em arquivo, abri-o ao calhas e, do que li, decidi fazer esta crónica.

Ao primeiro capítulo dei o título “A verdade tornar-vos-á livres. A mentira tornar-vos-á crentes”, frase que fui buscar ao Evangelho de S. João (8:32), para referir “crença e conhecimento”. A certo passo, digo assim: “Quem pensa que existe um ser supremo criador e dominador das vontades, não pode ser considerado menos, nem mais, inteligente do que aquele que não acredita em tal existência. Crença e conhecimento são matérias diferentes, antagónicas, mas que podem coabitar pacificamente no mesmo cérebro. O pensamento e a sabedoria são duas matérias primas da Filosofia e podem funcionar como terapia do espírito. Ambos «curam» ou aliviam algumas das nossas maleitas. Os nossos maiores males, quando não são de ordem natural, provêm de imposições alheias que resultam em aflições sociais e económicas, ditadas pelo meio onde nos inserimos e que nos faz sofrer. Deste sofrimento não podemos sair unicamente por nossa livre vontade (não é o mesmo que sair do autocarro). Somos vulneráveis e, por isso, também buscadores constantes da satisfação e do consolo que cada um pode encontrar em lugares distintos. O apuro dessa satisfação e desse consolo passa, inevitavelmente, pela qualidade do nosso pensamento e da nossa sabedoria. O apuro dessa qualidade, não se conseguindo no ensino oficial, terá de ser procurado por cada um, vendo, ouvindo, lendo e pensando. Quem assim não procede sujeita-se à educação padronizada que modela a sociedade em que o indivíduo se insere e que é, por mor de outros interesses que não os seus, nivelada pela matriz dos valores sociais estabelecidos – isto é: invariavelmente, por baixo – tornando-nos massificados, transformando cada um de nós num modelo estereotipado como alvo à mercê de quem vive da exploração dos nossos sentimentos programados”.

A melhor escolha na vida é cada um informar-se e ilustrar-se para poder pensar pela sua própria cabeça, não se deixando anestesiar por discursos de quem nos quer convencer, sejam agentes religiosos ou políticos. Tais agentes estão, continuamente, em “modo pré-eleitoral” tentando pescar adeptos para os seus grupos. Ao ouvirmos o palavreado que debitam nos vários púlpitos… temos de os peneirar criteriosamente… para (como se diz no meu meio) não sermos “comidos por lorpas”!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

15 de Setembro, 2024 Onofre Varela

Ciência, Religião,Ética e Moral

Hubert Reeves, especialista em astrofísica e autor do livro “Um Pouco Mais de Azul”, distingue o domínio da Ciência de quaisquer outros domínios de entre os que regem as sociedades que os homens já construíram.

A Ciência explica como as coisas são ou funcionam, e não se imiscui nos valores sociais. O domínio desses valores pertence a outros campos, como a Política e a Economia. Depois, há a Filosofia, a Religião, e mais um ramo filosófico denominado Ética (tendo acoplada a Moral), transversal a todos os outros campos, limitando poderes e moralizando atitudes.

Na Economia e na Política… parece que a Ética é uma espécie de “figura de estilo” que se encontra apenas nos discursos dos profissionais desses dois ramos para “parecer bem”, mas não nas suas acções e atitudes… pelo menos que nos apercebamos dela no dia-a-dia!…

A Filosofia é um tratado de manuais de Ética estudando os valores que regem os relacionamentos entre as pessoas, a harmonia do convívio na significação do bom e do mau, do mal e do bem, e a sua própria definição aponta para “aquilo que pertence ao carácter”.

Sobre a Religião talvez possamos dizer que é “o modo popular” que as populações têm de entender a Filosofia e procurar a harmonia social nos seus conceitos.

Filosofias há muitas… tal como chapéus (como disse o nosso actor Vasco Santana)… e carácteres também os temos por aí às mancheias, aos lotes e aos pontapés. Os carácteres são tão velhos quanto o raciocínio. O “Carácter” conta a nossa História feita de guerras, de crenças e de negócios sem pinga de Ética. Nas guerras encontram-se “carácteres” que são rastilhos patrióticos, causas religiosas e políticas apresentadas por quem as faz como “exemplos de positividade”… mas sempre em prejuízo do mesmo alvo sofredor: o Povo.

Vasco Santana – Arquivo da RTP

O Povo é sempre o personagem que se encontra na cena das acções de guerra e morre crente na divindade apregoada pelos seus líderes religiosos que fazem a guerra, mas também crente nas razões políticas dos líderes que armam exércitos e destroem cidades, matam velhos e, principalmente, crianças que ainda não tiveram tempo de experimentar o paladar da vida.

Se a maioria dos líderes religiosos (que tanto apregoam a divindade e matam gritando que “Alá é grande”), dos políticos e dos generais que, por crença na divindade e no patriotismo serôdio, fazem a guerra, tivessem vergonha e raciocínio Humanista… terminariam as guerras, as invasões, as destruições de equipamentos e cidades… e não haveria mais morte violenta.

De entre homens de Religião destaco Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo holandês de origem portuguesa, autor do livro “Ética”, e que foi acusado de ser ateu… mesmo tendo definido Deus como “o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consta de infinitos atributos”… o que talvez queira dizer que Ética e Religião podem conflituar (e conflituam!) entre si!

A Ética tem, no Cristianismo, o seu expoente máximo na célebre frase “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39), que é cópia do Velho Testamento (Levítico 19:18). É uma frase que traduz um conceito universalista, ultrapassando a Moral Católica que defende a vida uterina quando ainda não há ser humano formado e por isso condena o aborto; mas também condena o divórcio, a eutanásia e as relações homossexuais, que a Ética Laica defende como liberdades individuais lícitas.

A Ética religiosa difere de religião para religião. No Islamismo extremado, por exemplo, defende-se a condenação à morte da mulher que se apaixona por um homem que professe outra religião que não seja aquela que é seguida pela família dela!…

É comum misturar-se Ética com Moral. Não são a mesma coisa. Se a Ética estuda valores morais que orientam o comportamento humano, a Moral é constituída pelos costumes, pelas regras e pelos tabus das convenções instituídas por cada sociedade.

Logo, a Ética é mais universalista, enquanto que a Moral (os apelidados “bons-costumes”) é uma herança emocional e colectiva transmitida por cada sociedade aos seus membros… (e muitas vezes não é lá grande coisa!…)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

30 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Humilde Hipocrisia das Ovelhas de Deus

Criado com o DALL-E

Religião e humildade são duas palavras que só coexistem em relativa harmonia na mente dos mais ingénuos, dito da forma mais suave possível. Na realidade, tratam-se de forças antagónicas, conceitos incompatíveis e irreconciliáveis, ideias opostas numa batalha fútil e violenta por um meio-termo metafísico que nunca poderá realmente existir.

E isso não pode, nem vai acontecer, porque, quando confrontados com a espantosa imensidão do universo — com cerca de 14 mil milhões de anos, repleto de biliões de galáxias que reduzem a humanidade e o nosso solitário planeta a meros grãos de poeira insignificantes — os crentes insistem que tudo isto foi concebido com eles, e apenas eles, em mente. Uma proposição bastante peculiar, atrevo-me a acrescentar.

Para aqueles que não ousam questionar, que não conseguem perceber a ácida ironia desta embaraçosa contradição, ouvir uma pessoa religiosa afirmar-se como o ser mais humilde do universo pode parecer razoável, até lógico. Afinal, não é isso que sempre lhes foi dito e levado a acreditar?

As pessoas religiosas são vistas como devotas e puras, austeras tanto por fora como por dentro e, claro, intrinsecamente boas. Sim, boas por defeito, o que é um conceito bastante curioso, perpetuado ao longo de milénios por velhos castos e cínicos. No entanto, basta um pouco de reflexão para perceber que os crentes, muitas vezes, consideram-se tão humildes que acabam por não ser humildes de todo.

Pergunto-te agora, a ti, ao leitor — crente ou não —, se alguma vez alguém te disse sentir repulsa pela religião organizada precisamente por esta razão: pela evidente falta de humildade nos textos fundadores de todas as grandes religiões da actualidade e pela arrogância descarada de tantos dos seus seguidores — sejam eles famosos ou não — que não fazem qualquer esforço para parecer minimamente humildes. Certamente consegues lembrar-te de uma situação assim, em algum momento da tua vida.

Talvez tu sejas um deles, um daqueles religiosos que abomina a religião organizada, mas sente-se preso, ancorado à pegajosa ideia de que é necessário algo sobrenaturalmente maior do que nós para se ter sequer uma razão para querer existir, quanto mais gostar de viver. A vida humana é demasiado frágil, e não é fácil, eu sei — todos sabemos, de uma maneira ou de outra. Posso garantir, ainda assim, com alguma certeza estatística, que não estás sozinho neste dilema cósmico.

Considera agora, a título de grandes exemplos de auto-abnegação em nome do divino, os nacionalistas cristãos americanos: a sua humildade, como seria de esperar, não existe, é nula, e mesmo assim afirmam, em voz alta e ameaçadora, ser o epítome dela. Quantos milhões de americanos partilham desta ideologia? E quantos outros cristãos, espalhados pelo mundo, partilham desta magnífica concepção de humildade?

Acredito que a minha alma encontra prazer na ideia de uma ironia cósmica. Deleita-se especialmente com as manobras metafóricas circenses executadas pelas milhares, senão milhões, de religiões inventadas pela humanidade ao longo dos séculos — e que continuam a surgir diariamente — para justificar a sua ligeira insanidade.

Quando eu era criança, rodeado por tantas ideias aterradoras e absurdas, vendidas como verdades absolutas, a hipocrisia evidente de todos aqueles adultos incomodava-me profundamente. Desde o padre, de aspecto cadavérico, que afirmava ter uma linha directa com Deus e que, supostamente, falava com Ele em público em nosso nome, até às pessoas que se reuniam para o ouvir, sem achar nada de estranho na audácia de tal afirmação.

E depois havia os acólitos, os oradores e os leitores, cuidadosamente escolhidos ou que se ofereciam para ler nas missas, quase sempre os mesmos, que repetiam as escrituras diretamente do púlpito e, como os outros, transpiravam humildade em abundância.

É importante salientar também o papel que o cinema — e outras formas de arte e entretenimento, incluindo a literatura — têm desempenhado na promoção da ideia aparentemente atraente de que temer a Deus torna alguém automaticamente humilde. Nos filmes, por exemplo, a personagem religiosa é sempre o herói, o perseguido, o verdadeiro crente, o mártir. E, claro, todos parecem saber que submeter-se intelectual, mental e, atrevo-me a dizer, espiritualmente a um ditador celestial resulta, naturalmente, em pessoas genuinamente boas.

Pessoas dignas, virtuosas e, claro, supremamente e quase inevitavelmente humildes.

Contempla agora o cristão, que se vê, de maneira relativamente suspeita, como uma ovelha ansiosa por ser guiada por um pastor. Com uma mão, ergue orgulhosamente a bandeira branca da modéstia e declara a sua profunda insignificância perante os ilimitados e mágicos poderes do seu criador. No entanto, com a outra mão, a transpirar de antecipação, gesticula vigorosamente e afirma, com inabalável convicção e em tons ameaçadores, que faz parte do seleto grupo capaz de interpretar os planos de um ser que, por definição, deveria estar além de qualquer entendimento humano.

Não será a humildade religiosa o exemplo perfeito de como palavras e ideias erradas podem distorcer completamente o verdadeiro significado de um termo? Quanta vaidade deve ser disfarçada — muitas vezes de forma pouco convincente, como qualquer observador atento notaria — para alguém afirmar ser o escolhido de um plano divino? E quanta dignidade pessoal precisa de ser sacrificada para se viver num estado perpétuo de auto-recriminação, constantemente obcecado pelos próprios pecados?

A contradição torna-se ainda mais flagrante e amarga quando consideramos a encantadora doutrina do Inferno — introduzida pelo manso e incrivelmente humilde Jesus do Novo Testamento.

Como pode alguém reconciliar a ideia de um deus de amor infinito que, subtilmente, também cria um lugar de tormento eterno e concede apenas a uns poucos eleitos o poder de decidir quem merece ir lá passar o resto da eternidade? É difícil imaginar a arrogância necessária para acreditar num conceito tão nefasto como este. Espero, com algum otimismo, não ser o único a pensar que dizer a uma criança — ou a qualquer outra pessoa, na verdade — que está destinada ao Inferno não é apenas uma violenta afronta à ética mais elementar, mas também uma contradição flagrante da humildade que tanto afirmam possuir.

Satisfeitos com a fragilidade da sua quebradiça virtude, os fiéis insistem em aborrecer-nos a todos e dispensam salvação com entusiasmo. Contudo, e sem surpresas, escorregam na imunda poça de narcisismo que deixam pelo caminho, completamente alheios às evidentes contradições naquilo que pregam. Esta mentalidade está tão impregnada de auto-importância que faz o antropocentrismo tradicional parecer humilde, em comparação.

Insisto que a modéstia religiosa não passa de uma pantomima de integridade, uma expressão de superioridade disfarçada, incapaz de olhar para o seu reflexo sem se deslumbrar com a sua própria imagem moral distorcida.

A mentalidade religiosa regozija-se no brilho vacilante da sua própria virtude em decadência, e a luta constante no interior do crente, entre a auto-glorificação e a auto-negação, revela uma das mais perturbadoras contradições da condição humana. Não se deixem enganar, nem os deixem escapar impunes.

13 de Agosto, 2024 João Nascimento

Da Peculiar Natureza da Redenção por Proxy

Criado com o DALL-E

Penso que não será injusto afirmar que o cristão comum orgulha-se da curiosa ideia, frequentemente distorcida, de que o cristianismo e o Novo Testamento realizaram, de forma altamente misteriosa, um milagre que redefiniu a personalidade do Deus do Velho Testamento.

O Deus dos Judeus. Um Deus ciumento que castiga, que cobiça, que não perdoa, que mata e manda matar indiscriminadamente.

Um Deus que ordena violar, escravizar, aniquilar e conquistar tudo e todos – e a ferro e fogo – aqueles que se atravessem no caminho da tribo escolhida por Ele; ou assim dizem eles. Um Deus que brinca com a sua criação como se fosse o dono de um casino, mas reservado apenas para autistas profundos.

Não será imprudente da minha parte assumir, com a mesma convicção, que a grande parte do mundo cristão vê a sua versão deste mesmo deus dos Israelitas – Yahweh –, como sendo mais empática, tolerante, amorosa e, acima de tudo, dotada de eterna compaixão e benevolência pela sua criação. As incríveis metamorfoses desse mesmo Deus, que, pela sua natureza omnisciente e omnipresente, deveria ser imutável.

Pergunte-se a qualquer cristão quais são os principais preceitos religiosos que, sendo minimamente digno da Sua graça, é obrigado a acreditar. Este não será um artigo exploratório sobre a obscura escatologia cristã – já lá estive, e não, obrigado – mas um desses preceitos será, sem dúvida, o conceito de redenção vicária, ou expiação por proxy ou representativa, como eu gosto de chamar.

A base deste conceito é a transferência de responsabilidade moral. É como se alguém pudesse cometer um crime – de qualquer gravidade – e, em vez de ser punido, outra pessoa sofresse a penalidade no seu lugar, libertando o verdadeiro perpetrador de todas as consequências – espirituais, morais e quiçá físicas.

Novamente, não seria de má fé da minha parte afirmar que isto constitui um desafio direto à nossa noção básica de justiça, e subverte claramente a verdadeira importância da responsabilidade individual, algo essencial para uma sociedade moderna e ética.

A suposta chegada do Jesus do Novo Testamento na história da humanidade – apresentado como amável, dócil e gentil, com uma mensagem de amor eterno e universal – veio, na minha humilde opinião, apenas mascarar de moralidade aquilo que, por natureza, não pode ser moral. Foi também Ele quem trouxe ao mundo a fantástica ideia do Inferno e sofrimento eterno.

Ele é a figura central desta história. Sem o simbolismo do suposto sacrifício Dele, o cristianismo não existiria. Não assim, não como o conhecemos, muito menos sem a ideia de que os pecadores arderão para sempre nas profundezas do pior sítio do cosmos.

Para um cristão, é igualmente necessário acreditar que este mesmo Filho, enviado por um Pai agora mais manso – supostamente sem as conhecidas características psicopatas –, foi torturado de uma maneira verdadeiramente cruel. Foi escoltado, arrastado, exibido pelas nauseabundas ruas de uma Jerusalém antiga, repleta de superstição e miséria humana, até ao seu suposto e mortal fim.

Um culminar meticulosamente planeado, orgulham-se os cristãos ainda hoje. Um fim horrível arquitetado pelo Pai, agora um Ser mais piedoso e tolerante. Parte integrante de uma profecia lunática que tinha de ser concretizada – a necessária morte do Filho, do Seu Filho. E este, segundo as escrituras do cristianismo, morre lentamente, com sérias dúvidas quanto à parca capacidade do seu gentil Pai em fazer planos.

É interessante, diria eu, que durante milénios, e ainda hoje, tenham existido intensos debates sobre se Jesus é o filho – fisicamente humano, mortal –, o Filho – uma mescla de carne divina e física –, ou Deus em si. Perdoem-me, mas dispenso discutir o papel do Espírito Santo nesta já amálgama esquizofrénica de entidades.

Não será possível, no entanto, concluir que o Cristianismo, uma religião que prega amor universal, compaixão e justiça, baseia-se numa narrativa de sofrimento e sacrifício? Como pode, então, uma fé que valoriza a a bondade e a moralidade fundar-se num acto que, em qualquer outro contexto, e visto sob qualquer outra perspectiva, seria considerado brutal, desnecessário e inumano?

Temos o dever de relembrar ao mundo que o Cristianismo celebra a crucificação como um acto supremo de amor divino, mas que, na sua essência, não deixa de ser um sacrifício humano – algo que normalmente condenaríamos com profunda repulsa.

Qualquer um de nós, se estivesse presente, teria a obrigação de impedir tal demonstração de injustiça e estupidez. Não há nada que justifique a suposta crueldade infligida a Jesus – um evento para o qual não existem evidências concretas de ter acontecido, nem sequer da existência da pessoa em questão.

Não há problema algum que tenha alguma vez incomodado a humanidade para o qual o sacrifício humano tenha sido a resposta certa, ou sequer uma resposta para seja o que for. Jesus, a ter existido, morreu efectivamente em vão, como tantos outros milhões antes dele, e biliões depois.

Até o cristão moderado devia perceber que este conceito de redenção vicária não encontra eco algum na realidade que experimentamos. Na vida real, as acções têm consequências directas e tangíveis. Não desaparecem porque alguém sofreu horrivelmente no nosso lugar há aproximadamente 2000 anos.

A moralidade, tal como a entendemos na ética moderna, exige que cada indivíduo enfrente as consequências dos seus próprios actos. A ideia de que estas consequências possam ser simplesmente transferidas é uma ilusão demasiado perigosa, e uma das sementes mais venenosas que inspirou as maiores atrocidades da história da humanidade.

No mundo secular, onde cada vez mais valorizamos a autonomia e a responsabilidade individual, a ideia de que podemos ser absolvidos dos nossos piores erros através do sofrimento de um semelhante não é apenas incrivelmente ultrapassada, mas um verdadeiro horror moral. Em vez de procurar escapatórias mitológicas, deveríamos enfrentar as nossas falhas de frente, aprender com elas e melhorar.

Será que a moralidade cristã, construída sobre a ideia de que o sofrimento de um pode redimir todos, é realmente bela? Divina? Justa? A ironia é difícil de ignorar: uma fé que prega a justiça e a compaixão baseia-se, paradoxalmente, num acto que subverte esses mesmos princípios. Tinha, e continua a ter, tudo para correr bem.

Acreditar no Cristianismo, e inevitavelmente nesta mensagem de redenção vicária do pecado original – outro conceito maravilhoso –, onde podemos ser ilibados da responsabilidade pelos nossos actos mais cruéis, macabros, bizarros e inumanos através da tortura e morte de um rabi excêntrico, provavelmente epiléptico, na antiga Palestina, não me parece ser a melhor maneira de viver.

Refutar ideias religiosas como esta é um passo decisivo rumo à verdadeira emancipação do espírito humano. É um esperançoso impulso para um caminho que nos libertará das algemas mentais que nós próprios criámos, permitindo-nos finalmente respirar o ar puro de uma vida vivida sem ilusões.