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Categoria: Ateísmo

10 de Setembro, 2013 David Ferreira

Um cínico placebo

Permitam-me o cinismo. Permitam-me, por breves instantes, a dureza do discurso. Perante a exploração da ignorância dos que a sorte não bafejou com a vontade e os meios para dela se libertarem, o cinismo é o placebo que me resta, a anestesiar a impotência que sinto. Mas apenas um placebo.

Há um exercício que costumo praticar nos raros momentos que me permitem a introspeção. Ligo a televisão, retirando-lhe o som, e, em silêncio, observo os comportamentos dos seres humanos, as suas interações, os seus movimentos, que se tornam automaticamente desprovidos de sentido, como se não fosse um deles, como se fosse um ser consciente vindo de outro planeta a observar uma espécie estranha com pura curiosidade científica. Alheado do que me torna humano, é fácil concluir que os comportamentos que manifestamos não são em nada diferentes dos de outras espécies com comportamentos sociais semelhantes. Como exemplo, um grupo ou um ajuntamento de pessoas a dançar numa discoteca, observado sem som, torna-se apenas uma amálgama de corpos em movimentações estranhas, desprovidas de sentido, tal como se observássemos abelhas dentro de uma colmeia. Não percebemos os movimentos aparentemente aleatórios das abelhas, mas sabemos empiricamente que eles são a manifestação de um conjunto de ações, aparentemente também desprovidas de sentido, organizadas por processos evolutivos de modo a permitir-lhes a manutenção, a afirmação e a sobrevivência como espécie distinta das demais. Nesse pequeno espaço fechado e escuro, onde a tecnologia das luzes intermitentes substitui o brilho das estrelas e da natureza, assistimos a uma evidente manifestação de um ritual animal de acasalamento que se perde na memória do tempo, numa complexa exibição de plumas coloridas, embora sintéticas, que cobrem (ou descobrem) os corpos que exigem e desejam irracionalmente o prazer como único meio disponível para a manutenção, aperfeiçoamento e continuidade da espécie.

Em certa medida, apesar de nos julgarmos animais racionais, somos apenas uma espécie animal cuja ilusão de racionalidade não é mais que uma manifestação complexa da mesma irracionalidade que atribuímos a outras espécies que não compreendemos (e tardamos em compreender) e cujos comportamentos que apresentamos são de igual modo incompreensíveis para elas, apesar das semelhanças. A racionalidade torna-se, assim, apenas um conceito produzido pelo nosso cérebro, extraordinário órgão desenvolvido em paralelo com o nosso desenvolvimento biológico, mecânico e tecnológico. Nada mais que isso. E tanto mais que isso!

Toda a realidade que apreendemos só existe para nós, que nos desenvolvemos moldados e moldando-nos por e para ela. Para nós, humanos, nada existe a não ser a ilusão que temos da existência, da realidade, da natureza. E essa ilusão é tão complexa e adaptada que nos permite, inclusive, a conceção de uma existência ou de uma realidade extrínseca à sentida e observável. Sonhos, ilusões, conceções que nos permitem uma existência abstrata que não é mais que um método matemático elaborado que tem como finalidade antecipar tudo o que coloque em risco o fim da espécie. É esse o poder excecional desse elemento composto estranho, incompreensível, talvez único no Universo, que é o nosso desenvolvido cérebro humano. E é precisamente esse órgão, que se sabe mas não se compreende, que outros órgãos semelhantes exploram, a negar-lhes a evolução porque geneticamente treinados e informados para a manutenção.

Por tudo isto, permitam-me que não possa senão sentir-me absolutamente indignado e ultrajado como ser humano, regressado à humanidade, com o que aconteceu hoje na montanha da Pena, em Guimarães, onde uma aglomeração de pessoas se concentrou, como se enviadas ao passado numa máquina do tempo, para obter a indulgência plenária do Papa Francisco através do cardeal D. Manuel Monteiro de Castro. Um Papa que tem tanto de frescura como de obscuridade, tanto de novidade institucional como de regressão doutrinal. Vestidas com roupas medievais, mais rudes, aquelas simples pessoas não seriam em nada diferentes das que num passado não muito longínquo, mas obliterado pela evolução, se vendiam e entregavam compulsivamente aos biltres exploradores de consciências, enrolados em sotainas, comprando a cura da doença por eles mesmos inventada. A um povo ignorante e temente qualquer promessa de salvação e cura é vendida com o mesmo despudor e aceitação que a mercadoria contrafeita de um vendedor de banha da cobra num qualquer mercado de província. Sobretudo se for anunciada como sendo grátis.

Diz o Jornal de Notícias do século XXI que se fez história, apesar de as hóstias consagradas terem esgotado. O problema seria resolvido por wi-fi, por rádio ou televisão. O passado a repetir-se no presente por meios que o futuro antecipou. O obscurantismo a alardear-se, a procurar sobreviver. A mentira e a mediocridade exploratória de uma instituição ancestral a impor-se a um povo que se mantém ignorante porque quem tem a capacidade para o educar sobrevive parasitando essa mesma ignorância. Uma ignorância que cultiva o sofrimento e a submissão, porque incapaz do prazer e da serenidade da compreensão.

Sabemos que nem todos os crentes são ignorantes das realidades e vicissitudes existenciais. Muitos dos que eu tenho visto a derreterem-se em elogios a este novo Papa (tal como se derretiam aos outros que o antecederam), são pessoas de bem, cultas, informadas, perspicazes. Apenas uma coisa nos distingue: a cobardia moral e intelectual. A cobardia que os impede de reconhecer a exploração da ignorância mais primitiva com que tanto se ofendem sempre que equiparados no mesmo patamar de irracionalidade por qualquer descrente mais visceral.

A religião organizada, com as suas crenças, dogmas e doutrinas, não foi criada para proteger os mais fracos. Foi e continua a ser um método eficaz de os multiplicar, porque lhes transmite a ilusão de os fortalecer, enfraquecendo-os.

Um placebo, portanto. Tal como o meu cinismo.

 

9 de Setembro, 2013 Carlos Esperança

INDULGÊNCIA NA PENHA

Por

João Pedro Moura

É… é das cenas mais grotescas que até hoje vi em Portugal. Ontem, no Monte da Penha, em Guimarães, uma multidão de religionários amalucados, na 120ª peregrinação anual, deslocaram-se em massa ao santuário local, em busca de indulgência plenária, prometida pelo chico-desperto do Bergoglio, o papa Francisco.
Para esse efeito, o povoléu tinha que fazer 3 coisas: confessar-se, rezar em sintonia espiritual com o papa e comungar, quero dizer, engolir a hóstia, a dar na cerimónia.

Só que as hóstias não chegaram para todos, parece que nem para metade, mas o celebrante, o cardeal Manuel Castro, prometeu que a indulgência se prolonga e “os fieis, na próxima semana, se comungarem, podem obter precisamente essa indulgência. Por isso, não se preocupem, o importante é poderem receber Jesus na Eucaristia, num dia desta semana que vem.”, noticia, hoje, o Jornal de Notícias. E os que ouviram a missa pela rádio também ficaram perdoados…

Esta benesse vaticanista permite extinguir a pena temporal do purgatório após a morte, que existiria mesmo que a pessoa tivesse os pecados confessados…

Além de esgotarem as hóstias, estou mesmo a imaginar aquela multidão dumas 50 mil pessoas a confessarem-se previamente…
Estou mesmo a imaginar a grande maioria a comer a rodela enfarinhada sem se ter confessado… nem rezado, “segundo as intenções do papa”…
Isso da confissão é tão ridículo que já quase não se deve usar, neste tipo de povo pragmático, mas crédulo, pouco dado às elocubrações teológicas e sacramentais, mas mais ao espetáculo e à imagem. Mas, enfim, como não há certificado de confissão, o que interessa é estarem todos juntos em comunhão fraterna…

E quem é que mora naquele santuário da Penha?! Uma tal Senhora do Carmo, que ninguém sabe quem é, quando nasceu, quando morreu e o que fez de importante na vida para merecer tal celebração. Ignorância essa que, de resto, é extensível a inúmeras santas e santos, por este país dentro, que ninguém sabe quem são: senhora do Bom Despacho, senhor dos Aflitos, senhora do Ó (não vos rides, que existe… quero dizer, existe estátua e culto…) dos Navegantes, senhora do Desterro, das Dores, da Guia, enfim, um estendal de inépcias, que eu, qualquer dia, tenho de recensear…
… Essas senhoras e esses senhores são, geralmente, outros tantos heterónimos da Virgem Maria e do JC, espécies espirituais do jardim da celeste corte, mas o povo não sabe nem a Igreja lhe diz, para suscitarem inúmeras festas e pingues proveitos…

Por mais educação e instrução que o povo português tenha, ainda havemos de continuar a ouvir falar e ver estas celebrações rituais, completamente estúpidas, próprias dum povo néscio e crédulo, ávido de cerimonial e de imagética colorida, sumptuosa, grandiosa, o culto da imagem pela imagem, bem próprio de povos novilatinos, que edificaram catedrais imanes e outras igrejas extraordinárias, porque precisam da imagem e da grandiosidade, para saciarem o seu défice de sabedoria e de inteligência, ao contrário das igrejas protestantes, que são simples, sem luxos e contra luxos, que concitam ao pensamento e à oração, dispensando, portanto, o espavento rebuscado e avantajado do pesado e tutelar totalitarismo católico.

Pensar que o “perdão dos pecados” se obtém com indulgências papais, quer o “pecador” tenha provocado incêndios, homicídios, burlas, agressões, etc. releva de pensamento infantil e atolambado…
Pensar que é engolindo hóstias dominicais, ou noutro qualquer dia, que se auferem benesses divinas, acrescendo que em tal hóstia se encontra o “corpo de deus” ou da sua variante antroponímica Jesus, é praticar a teofagia, versão “soft-core” do canibalismo mais retorcido e mentecapto…

Duma coisa podemos ter a certeza, ao vermos as cenas corruptas e desatinadas da Penha vimaranense: o catolicismo cerimonioso e espaventoso, das festas e procissões, bem assessoradas pelas tendas de feira popular e pela imagética do “come-e-bebe-e-sê-feliz” está para lavar e durar em Portugal…

 

6 de Setembro, 2013 Carlos Esperança

JESUS CRISTO – O EXTERMINADOR IMPLACÁVEL

Por

João Pedro Moura

As religiões monoteístas são altamente totalitárias.

Remontam a uma época em que a unidade do género humano, para tais religionários, estava dividida em duas espécies de gente: os que estão do nosso lado e os que não estão; os que seguem a doutrina oficial e os outros…

Vejamos 3 conceções paradigmáticas, no Novo Testamento, acerca do destino reservado aos outros…

1- Marcos 16:16:

“Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado.“

São as palavras finais do Cristo “ressurreto”, aos seus apóstolos. A mensagem definitiva e escatológica.

Será condenado porquê???!!! Alguém fez um mal, ao não crer na doutrina oficial???!!!

Objetivamente, não há mal nenhum, em não crer, mas, para deus e seu ectoplasma filial, Jesus Cristo, pejado de misericórdia e amor infinitos à humanidade, haverá condenação infernal aos que, simplesmente, não creram na treta divina, porque deus não os predispôs para tal…

2- João 15:5, 6:

“Eu sou a videira e vós os ramos; quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque, sem mim, nada podeis fazer.  

Se alguém não estiver em mim, será lançado fora, como o ramo, e secará; tais ramos são recolhidos, lançados ao fogo, e ardem.”

Ora aqui estão, também, as razões do aparecimento da Inquisição e da sua pena suprema – o braseiro purificador dos malditos…

Novamente, o Cristo, esse paradigma do “amor”, da “bondade” e da “misericórdia”, a afirmar o que acontecerá a quem não estiver “nele”…

… A morte na brasa…

3- Mateus 25:31-46:

“31- E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória;
32- E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas;
33- E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda.
34- Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;
(…)

41- “Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos;
42- Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber;
43- Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes.
(…)

46- E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna.”

E, para terminar o desiderato escatológico do amor pela humanidade, temos o “Dia do Juízo Final”, a “Dies Irae”: os “maus”, quero dizer, todos aqueles que não seguiram o Cristo, tais como ateus, indiferentes, religionários de religião errada, etc. seguirão para o “fogo eterno”; os virtuosos da adoração divina seguirão para o jardim da celeste corte…

É preciso um alto grau de totalitarismo, um inimaginável ódio pela humanidade, um maníaco pendor discriminatório, para não só não aceitar todos aqueles que não seguiram “o guia”, como também ordenar a sua condenação ao “fogo eterno”!

A religião cristã, de resto como as suas congéneres monoteístas, constitui o maior totalitarismo da História!!!

Patenteia uma tamanha conceção de unicidade individual e social, que a leva a reprimir, brutalmente, qualquer dito ou feito, considerado dissonante com a doutrina.

Não há paralelo, na História da Humanidade, de semelhante totalitarismo!

Na História, houve massacres e genocídios, mas não com este grau totalitário de crueldade e atrocidade. Um enorme ódio pelo outro e pelo diferente!

O que vale é que o futuro já não é aquilo que foi (!…) e a “Dies Irae” já passou, com toda a sua infalibilidade…:

Mateus 24:34:

“Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam. “

 Lucas 21:32:

“Em verdade vos digo que não passará esta geração até que tudo aconteça.“

4 de Setembro, 2013 Carlos Esperança

Os fogos da nossa incúria

Anuncia-se chuva para os próximos dias. A ela incumbirá levar a terra que resta nas serras áridas onde a vegetação incandescente consumiu seis bombeiros, quase 100 mil hectares de flora, e dizimou os animais selvagens que a povoavam com outros que eram o sustento de famílias.

Os coelhos começaram a morrer primeiro, vítimas de uma doença que os vai dizimando e de que não se ouve falar. As perdizes foram apanhadas por entre labaredas, cansadas, a correr para a fogueira. Os químicos invadem o chão cada vez mais árido e o oxigénio que esperávamos da floresta perdeu-se na impossibilidade da fotossíntese e aumenta o dióxido de carbono.

Nas aldeias, gente sofrida, olhava para o céu e dele não veio ajuda. As novenas ainda não começaram mas, com ou sem elas, a chuva virá. Só os campos ficam vazios, como vazias ficam as pessoas a remoer a sorte, desanimadas, em sítios perigosos onde perdem o sustento e a vontade de viver.

Não há bombeiros que cheguem para tanto incêndio. A nossa incúria é pior do que a inclemência do tempo e o desvario dos pirómanos.

Imaginem que Deus existia. Deixá-lo-íamos à solta nos lugares que o fogo fustiga para saber que só os homens conseguem ainda fazer-lhe frente.

2 de Setembro, 2013 David Ferreira

Hóstia dominical – XI

Um teólogo é basicamente um sofisticado prestidigitador de palavras que reinventa
desesperadamente diferentes métodos de apresentação do mesmo velho truque
filosófico a uma audiência que se vai tornando progressivamente mais cética, e intelectualmente
mais exigente, a cada pormenor técnico da ilusão exibida desvendado.

29 de Agosto, 2013 David Ferreira

Apneia transcendental

A Dona Maria escreve artigos de opinião no Diário de Coimbra. Escreve artigos de opinião mas nunca lhe li algum que merecesse tal qualificação. Porque a Dona Maria não formula opiniões, escrevinha certezas inabaláveis acerca das suas pias convicções religiosas num espaço supostamente reservado à opinião dos comentadores residentes, sobre variados assuntos. A Dona Maria é, também ela, uma residente do jornal mais representativo da cidade dos estudantes. Um jornal que deveria ser uma referência intelectual e de conhecimento e não apenas um pasquim de fait divers locais onde os dedos pegajosos das sotainas e da seita Opus Dei largam hodiernamente mais impressões que um carteirista amador.

Faz tempo que critico a linha editorial do referido jornal, sobretudo no que se refere ao favoritismo manifestado com a publicação de textos de cariz religioso na página “Fala o Leitor”, bem reveladora do sacro ambiente que por ali vagueia. Mas, sendo um espaço reservado aos seus leitores, e tendo estes todo o direito de se prostrarem em adulação submissa aos salvadores que bem entenderem, sejam imaginários ou reais, tenho amaciado o meu cinismo com um aborrecido encolher de ombros. Talvez por isso tenha hesitado em comentar um artigo da senhora, publicado em 3 de julho, que não soube amortecer e muito menos digerir. Por isso ou pelo facto de a entediante senhora me parecer demasiado inofensiva e inocente para merecer atenção, talvez pelo ar de Testemunha de Jeová com que se apresenta, um espectro de ultra beata fabricado em longas homilias, o cabelo curto e recatado como sói e um sorriso maquilhado que só quem nunca soube sorrir sincera e livremente consegue exibir.

Dizia a senhora nesse artigo, após uma introdução que nunca faria prever o que se seguiria, incorporando sorrateiramente o que efetivamente pretendia derramar sobre o leitor ocasional, que “Há momentos em que o sol, inesperadamente, surpreendentemente, dissipa as nuvens e a luminosidade é tanta que os seres criados brilham como diamantes.” Referiu-se então a um “meeting da fé” que decorreu durante três dias numa grande superfície comercial da cidade, afirmando que este foi “estrela de primeira grandeza.” “A fé – continuou – brilhou com tal esplendor que os carrinhos de compras que vinham das lojas travavam às quatro rodas para a escutar.” Aqui eu percebi que estava a ler um artigo de alguém com graves problemas de perceção sensorial. Recordo-me de ter por lá passado e a única coisa que travava os carrinhos de compras era o movimento de mudança de direção que faziam ao manobrar para se desviarem das bancas dos paladinos da fé e do seu enfadonho e alucinado linguajar…

Sente-se o êxtase da cruz a palpitar no discurso que sai do peito da veneranda senhora. Continua: “Mas a voz que mais se fez ouvir por esses andares acima do Dolce Vita foi a de uma mãe de sete filhos que contou com uma naturalidade, com uma força, com uma alegria transbordante a sua vida de família…Disse que aquela mãe era uma mãe de sete filhos…Só que um já foi para o céu e lá espera…para poder brincar com os seus irmãos; sim porque a família tem lá reservado o seu lugar…É a esperança de quem tem fé. É a certeza de quem sabe que este lugar aqui é provisório. Investigações, descobertas, pois que a ciência as faça; artefactos, patranhas de quem presume fazer do Homem um ser imortal, dar-lhe uma juventude eterna, não colhem. Não têm sustentabilidade para serem credíveis.” Aqui parei. Foi neste ponto que o respeito inato que sinto ou procuro sentir pelos outros entrou em conflito com o respeito que possa ou não ter e manifestar para com as suas crenças absurdas e estupidificantes.

Para pessoas como a Dona Maria, nada importa a não ser a fé. Ciência? Que é lá isso? Que pode um médico fazer mais que uma oração? Quem nos transportará mais longe, um avião ou o teletransporte da fé? Que pode um contracetivo ou o planeamento familiar fazer por uma pobre mãe de sete filhos que a esperança num condomínio privado no céu não possa resolver de forma mais credível?

“A voz daquela mulher ficou a ecoar nas paredes do Dolce Vita. Aquela mãe fez chorar as pedras.” (Não foram só as pedras que choraram…) “Jorraram lágrimas, não de dó nem de pena. Foram lágrimas de emoção. Os corações que bateram forte ao ouvi-la ficaram a transbordar de alegria.” E eu a engolir a perplexidade que nem o café conseguiu diluir…

Choca-me profundamente que a uma pessoa tão notoriamente desfasada da realidade seja dado espaço para debitar as maiores absurdidades. Absurdidades que apenas se tornam respeitáveis, note-se, porque introduzido o fator fé, uma mão aberta cheia de um nada que tira o próprio sentido ao gesto. Choca-me que um jornal sério, onde certamente trabalham jornalistas lúcidos e com os pés assentes na terra, publique desarrazoadamente a visão fanatizada desta senhora como se de algo sério se tratasse. Como se o mundo real, ainda demasiado sobrecarregado de ignorância e obscurantismo religioso, necessitasse de mais primitivismo emocional desregulado. Como se a incapacitante ignorância comportamental e existencial das pessoas menos dotadas de conhecimento fosse algo que merecesse aplauso, negando-lhes, num só golpe, a capacidade de resolução dos seus próprios problemas, problemas esses que nunca existiriam à partida se fossem racionalmente antecipados.

Escreveu esta segunda-feira João César das Neves, na sua já famigerada crónica semanal: “…num tempo em que a cultura dominante se orgulha da perda do transcendente, tudo se reduz ao material.”

Eu digo antes que, em quase todos os domínios, é o transcendente que nos reduz. E que todos os que o perpetuam são responsáveis por esta apneia sociocultural que nos impossibilita não só de ir mais além, como de ser mais além.

26 de Agosto, 2013 David Ferreira

Hóstia dominical X

Se chegarmos à conclusão que a única forma que um ateu tem de ser
respeitado pelos que contraria e de ser aceite pelos que partilham a mesma visão é respeitar
uma crença cuja doutrina não respeita os que a não seguem, preferindo e
elegendo os que nela crêem, apenas porque a cortesia politicamente correta nos
condiciona para tal como sistema de credibilização socioculturalmente aceite,
então não estaremos nós antes à procura de aceitação ao invés de confronto? É
que só com a aceitação mútua, abrangente, generalizada e coniventemente
imunizada se constroem e alicerçam os dogmas que a razão tem mais dificuldade em
vacinar.

24 de Agosto, 2013 David Ferreira

Graças a Deus

A noite aborrecia. Aborrecia como aborrecem todas as noites que não sabemos como preencher com o que verdadeiramente somos o que os outros tanto preencheram de nós com o que verdadeiramente não são. Um grupo de amigos. Ou um grupo de colegas que se tornaram amigos devido a circunstâncias sazonais. Porque a amizade também se faz de, da ou para a oportunidade. Um grupo apenas, igual a tantos outros, reunido, a descomprimir a tensão acumulada de mais um intenso dia de trabalho. E ao redor de todos, bamboleante, alheado de tudo e ansiado por todos, um catártico e desenfreado baile de copos em intenso rodopio, a competirem com a lua, ora meios, ora cheios, mas nunca completamente vazios, a substituírem a noite estática. Como se não houvesse amanhã. Como se nós, os bailarinos, não quiséssemos de novo o Sol, fartos de luz, cansados do dia passado ou de nos sentirmos cansados do dia seguinte que sabíamos inevitável.

As línguas entaramelam-se com o bailarico de sílica espirituosa e a conversa começa a destoar da hipocrisia socialmente aceite como modo de sobrevivência para a libertação do individualismo reprimido do que seriamos sempre se fossemos sem bloqueios socioculturais.

– Estou farto destes cabrões! – atira um.

– Caga nisso. – diz um outro – Vamos é beber uns copos e curtir um pouco, que bem merecemos.

A terra é estranha. Tudo é estranho e diferente. Igual, mas diferente. O clima, a paisagem, o ritmo. As pessoas…ah, as pessoas… As pessoas, essas, são sempre iguais, independentemente do vestuário ou da linguagem. São apenas pessoas, envolvidas em panos que as protegem do clima ou de si próprias, adornando-as de um determinado status, a comunicarem por necessidade.

Antecipo um pé de dança, mas tropeço. Tenho pés de gesso e a gravidade dificulta-me a dança que a tenta contrariar.

– Graças a Deus que tudo correu bem! – a voz rouca atinge-me sem que a previsse, familiar mas incompreensível.

– Graças a nós! – brindo, a contrariar sem o pretender, a ser eu.

Silêncio breve.

– A nós! – alguém berra. E todos brindamos, como se fosse necessário.

E tudo esquecemos relembrando, celebrando. O amanhã será sempre mais reconfortante que o ontem, se o esperançarmos, e o hoje é o que fazemos dele sem pensar muito nisso.

O baile, entretanto, decorria como outro baile qualquer, tímido a princípio, logo decidido, finalizando introspetivo, como que a morrer aos poucos para dentro de nós, envenenado pelos aditivos sensoriais que sentimos necessários quando deixamos de conseguir sentir sempre que somos, quase inevitavelmente, o que os outros pretendem que sejamos, como se nós não fossemos também outros para os que não somos. O cansaço, contudo, haveria de nos deixar ser. Apenas ser.

– Tenho saudades de África… – desabafa o Pedro.

Olho para ele, sorrindo, à procura de um olhar. Um olhar que só reconheci espelhado no reflexo do copo meio vazio de lua-cheia que embalava entre os dedos, como se de uma máscara de oxigénio se tratasse.

– Eu também, sabes. – anui – Já lá vivi, em Angola, em Nova Lisboa, agora Huambo. Lembro-me de tudo como se tivesse sido ontem. Há algo de África que fica em nós e que não se consegue bem explicar…

Pedro sorri, em meia-lua. Compreende-me. Ambos viramos o mundo e o pior que a humanidade tinha para oferecer nos últimos anos. Em vários continentes. Em terras estranhas com pessoas iguais. E sabíamos.

– Deves ter comido poucas pretas enquanto lá estiveste, deves… – interjeiciona o que dera graças a Deus.

Pedro sorri, em quarto minguante. Roda o copo com os dedos como que a desfazer nele o luar que o seu olhar já não conseguia iluminar.

– Comi. Por acaso comi.

Os olhares direcionam-se para Pedro, mais rápidos que o raciocínio. Os lábios dilatam-se e os sorrisos antecipam o alarde coletivo.

– Conta lá! Conta lá!

– Sabes… – continua Pedro – Uma vez fui com uma. Tinha ido à discoteca e aconteceu. Saí com ela e fomos passear para a praia.

– E o que é que lhe fizeste?

– Pá, nada demais… – responde Pedro, ensimesmado – Eu já estava com os copos e ela também. Chupou-me apenas.

Os sorrisos replicam-se entre os olhares que a testosterona atraíra.

– Ganda maluco! E como é que foi? A tipa chupava bem?

Pedro sorri também, aparentemente contagiado, a camuflar o remorso na parvoíce alheia.

– Dizem que elas são quentes como o caraças! – ouve-se alguém.

Pedro pousa o copo, mais cheio de noite que de espirito.

– Sabes… – diz – as gajas de lá, as que andam ao ataque, chupam sempre até ao fim.

– Engolem tudo? Ah gandas malucas! Eu sempre disse, pá, as pretas são as mais quentes!

Os olhares cruzam-se a assentir a masculinidade e atiçam ainda mais a balburdia.

Pedro olha para mim enquanto as vozes do baile faziam e aconteciam e a noite bocejava enfastiada.

– Sabem porque é que elas chupam até ao fim? – dispara Pedro, sem fazer pontaria.

Os olhares silenciam subitamente, não suspeitando o motivo da interrogação.

– Porquê? – interrogam os mais curiosos.

– A miséria lá é muito grande, sabem. E como o esperma é nutritivo, é uma das formas que elas arranjam para matar a fome…

Silêncio súbito. Há fronteiras morais que nem a mais estupidificante carraspana se atreve a transpor.

– Este mundo é lixado. – ouve-se ao fundo, sumido.

O baile, entretanto, morrera, deixando a todos uma incómoda sensação de vazio.

– Graças a Deus, ao menos não vieste de lá com nenhuma dessas doenças esquisitas… – escuta-se, por entre o orvalho que começava a cair com abundancia.

Pedro olha para mim, de soslaio, e encara o agradecido.

– Sim, – diz – dêmos graças a Deus para que a fé que temos possa servir de salvação para uns e de muito alimento para outros…

E retirou-se da festa como se nunca tivesse sido convidado.

Para trás ficou-nos apenas a noite a envelhecer aos poucos os restos do que julgávamos ter sido até ali.

22 de Agosto, 2013 Carlos Esperança

Deus também se engana…

Bento XVI, farto de ser acusado de ter renunciado à tiara por amor, amor à vida, claro, veio agora justificar-se: «Foi porque Deus me disse», numa « experiência mística».

A linguagem exotérica, com que o ex-Papa revela o encontro com a entidade patronal, não deixa aos incréus averiguar a data, o local e o conteúdo, mas percebe-se que Deus não estava satisfeito com o seu PDG, facto que causa a maior perplexidade, a ponto de lhe ter demonstrado «um desejo absoluto» – segundo  afirmou o próprio pensionista à publicação católica “Zenit”.

Não se vê como um deus, presciente e omnipotente, além de mandar o Espírito Santo a iluminar os cardeais durante os conclaves, possa permitir que saia dali um cardeal com alvará de infalibilidade, apto para criar cardeais e santos, e despedi-lo depois com justa causa, sem lhe apresentar uma nota de culpa. No mínimo, a eleição de Ratzinger foi um ato desastrado, mais natural no Opus Dei do que em Deus.

Sabendo todos, do mais ingénuo devoto ao mais inveterado ateu, que a infalibilidade do Papa é um dogma cuja dúvida é alheia ao escrutínio da razão e passível de excomunhão, anátema que inviabiliza o Paraíso como lar de primeira classe para a perpétua defunção, fica a dúvida sobre quem se enganou, o papa que perdeu o alvará ou Deus que lhe pediu a resignação.

De qualquer modo, a Igreja, em maré de perda de credibilidade, deixa mais dúvidas do que certezas a quem queira cultivar os mistérios da fé e dá argumentos a quem duvida.