14 de Julho, 2015 Carlos Esperança
Fé e loucura
(Texto retirado do livro de Sam Harris “O fim da fé” – Paulo Franco)
As nossas crenças estão estreitamente ligadas à estrutura da linguagem e à estrutura das visões do mundo. A nossa « liberdade de crença», se é que ela deveras existe, é mínima.
Será uma pessoa realmente livre de acreditar numa proposição para a qual não tem provas?
Não. A evidência empírica (seja ela sensorial ou lógica) é a única coisa que sugere que uma dada crença se reporta de facto ao mundo.
Existem várias designações para as pessoas que têm muitas crenças para as quais não possuem justificação racional. Quando as suas crenças são muito comuns chamamos-lhes «religiosas»; caso contrário, é provável que sejam apelidadas de «loucos», «psicóticos» ou «delirantes».
A maioria das pessoas de fé são perfeitamente sãs, claro está, mesmo aquelas que cometem atrocidades em nome das suas crenças. Mas qual é a diferença entre uma pessoa que acredita que Deus o recompensará com 72 virgens se matar uma dúzia de adolescentes judeus e outra que crê que as criaturas de Alfa Centauri lhe estão a transmitir mensagens de paz universal através do seu secador de cabelo? Existe uma diferença, bem entendido, mas não se pode dizer que seja particularmente abonatória da fé religiosa.
É preciso ser-se um certo tipo de pessoa para acreditar naquilo em que mais ninguém acredita. Regermo-nos por ideias para as quais não temos provas (e portanto não podem ser justificadas através do dialogo com os outros seres humanos) é normalmente um sinal de que há algo de muito errado com a nossa cabeça. O facto de na nossa sociedade se considerar normal que o criador do universo pode ouvir os nossos pensamentos, mas considerar-se como sintoma de doença mental a convicção de que Ele pode comunicar connosco em código morse através do baquetear da chuva é um mero acidente da história. E assim, embora as pessoas religiosas não sejam, por norma, loucas, é indubitável que as suas principais crenças o são.
Isto não deve surpreender-nos, pois a maioria das religiões limitou-se a canonizar meia dúzia de coisas, fruto da ignorância e da confusão geradas no passado, as quais nos foram legadas como verdades primordiais. Isto faz com que hoje existam milhares de milhões de pessoas a acreditar naquilo em que ninguém no seu perfeito juízo poderia acreditar isoladamente. Na verdade, é difícil imaginar um conjunto de crenças mais sintomáticas de doença mental do que aquelas que encontramos no cerne das tradições religiosas.
Consideremos uma das pedras basilares da fé católica: “Confesso outrossim que na Missa se oferece a Deus um sacrifício verdadeiro, próprio e propiciatório pelos vivos e defuntos, e que no santo sacramento da Eucaristia estão verdadeira, real e substancialmente o Corpo e o Sangue com a alma e a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, operando-se a conversão de toda a substância do pão no corpo, e de toda a substância do vinho no sangue; conversão esta chamada pela Igreja transubstanciação. Confesso também que sob uma só espécie se recebe o Cristo todo inteiro e com verdadeiro sacramento”.
Jesus Cristo – que, está bem de ver, nasceu de uma mãe virgem, ludibriou a morte e ascendeu corporeamente aos céus – pode agora ser comido sob a forma de uma tosta. Experimente pronunciar algumas palavras em latim ao sabor do seu Borgonha preferido, e também poderá beber o seu sangue. Alguém dúvida de que uma pessoa que, sozinha, subscrevesse estas crenças seria considerada louca? Ou melhor, alguém dúvida de que seria efetivamente louca?
O perigo da fé religiosa consiste em permitir que seres humanos, em tudo o mais normais, recolham os frutos da loucura e os considerem sagrados. Uma vez que se continua a ensinar a cada nova geração de crianças que as proposições religiosas não carecem das justificações que exigimos a todas as outras, a civilização permanece sitiada pelos exércitos do contrassenso.
Continuamos, ainda hoje, a matar-nos em nome da literatura antiga. Quem teria imaginado que uma coisa tão tragicamente absurda fosse possível?