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Ricardo Alves

1 de Julho, 2004 Ricardo Alves

Uma vitória para a laicidade

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deliberou anteontem que a proibição do uso do véu islâmico não viola nem a liberdade religiosa nem a liberdade de expressão tal como são definidas na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O Tribunal rejeitou assim o recurso de uma estudante turca que fora excluída da Universidade de Istambul por se recusar a tirar o véu islâmico durante aulas e exames.

No comunicado do Tribunal, pode ler-se que «a liberdade de manifestar a religião pode ser restringida a fim de preservar os valores democráticos e os princípios invioláveis da liberdade de religião e da igualdade dos cidadãos perante a lei», que «as escolas podem tomar medidas para prevenir que certos movimentos religiosos fundamentalistas pressionem os estudantes que não praticam a fé da mesma forma e os que não têm a mesma fé», e ainda que «o Tribunal não perdeu de vista que existem movimentos políticos extremistas, na Turquia, que procuram impor a toda a sociedade os seus símbolos religiosos e a sua concepção de sociedade baseada em princípios religiosos». O Tribunal considerou, portanto, que a laicidade e a igualdade entre os sexos são valores que prevalecem sobre a liberdade de expressão e de religião, particularmente quando estão em causa as pressões de grupos extremistas.

23 de Junho, 2004 Ricardo Alves

«Deus» fora, ICAR dentro

Quando se iniciaram os trabalhos da Convenção que decidiu o essencial do tratado constitucional da UE (finais de 2002), a ICAR já divulgara publicamente (a 21/5/2002) a sua «contribuição» para o debate(1). Nesse documento, exigia-se:

(i) a adopção da declaração nº11 anexa à acta final do Tratado de Amesterdão, garantindo assim constitucionalmente o «respeito pelo estatuto das Igrejas e comunidades religiosas» nos respectivos contextos nacionais;

(ii) «um diálogo estruturado entre as instituições europeias e as Igrejas e comunidades religiosas», no reconhecimento do seu «contributo específico»;

(iii) que fosse feita referência ao «nome de Deus», «a fim de permitir a identificação dos cidadãos com os valores da União Europeia».

Posteriormente, a opinião pública concentrou-se na questão da «referência a Deus», que evoluiu para uma exigência de menção à «herança cristã». No entanto, desde o início que as organizações europeias de defesa e promoção da laicidade (nomeadamente, a Federação Humanista Europeia) dirigiram os seus esforços quer contra a invocação a «Deus» quer contra a adopção da acta adicional.

Efectivamente, uma Constituição moderna não deve ser proclamada em nome de crenças pessoais, mas sim em nome do povo a que se destina, e não deve dividir os cidadãos por questões de convicção, e a querela do preâmbulo mostrou sobejamente a quem tivesse dúvidas que o cristianismo divide a Europa… Infelizmente, a convenção europeia, embora tenha afastado a «referência cristã», vergou-se às exigências (i) e (ii) da ICAR, bem mais graves. Assim, o artigo I-51 do tratado constitucional não apenas garante que o direito da UE não afectará os privilégios nacionais das igrejas que pudessem ser postos em causa por outras disposições do tratado, como também garante um processo de consulta legislativo entre as «igrejas e comunidades religiosas» e a UE, no «reconhecimento» do tal «contributo específico». É óbvio que a ICAR entende este contributo como a defesa das suas posições dogmáticas em matéria de contracepção, uniões legais entre homossexuais, investigação científica e (bem grande) etc.

Há assim fundadas razões para afirmar que o tratado constitucional não institui uma União Europeia laica. Antes pelo contrário. Aliás, não é por acaso que a COMECE afirmou vitoriosamente que os bispos da UE são «unânimes em saudar favoravelmente» o tratado constitucional.

Que a opinião pública continue convencida de que o tratado constitucional constitui uma afronta à ICAR apenas evidencia que a questão do preâmbulo funcionou como uma eficaz cortina de fumo.

(1) Refiro-me ao documento da COMECE (Comissão dos Episcopados da União Europeia) datado de 21/5/2002.

21 de Junho, 2004 Ricardo Alves

Laicidade, anticlericalismo e ateísmo

Não é necessário ser ateu para defender a laicidade. Pode ser-se crente e laico, da mesma forma que se pode ser simultaneamente conservador (ou socialista) e democrata. O laico não defende o ateísmo de Estado, defende a clara separação entre o domínio privado (onde se exercem as liberdades individuais, de expressão, de reunião e de associação) e o domínio público (onde as associações de crentes não devem gozar de privilégios e onde as convicções filosóficas, mesmo que maioritárias, não devem ser impostas a todos). Portanto, o ateísmo é «apenas» uma posição filosófica, enquanto o laicismo é o princípio político fundador das democracias modernas.

Devido ao obscurecimento (deliberado) da tradição laicista em Portugal, estão muito difundidos alguns conceitos erróneos. Por exemplo, afirma-se que a a Laicidade é anti-religiosa. No entanto, a laicidade promove a igualdade entre todos os cidadãos, e a sua liberdade de consciência, independentemente das suas crenças ou ausência de crença, dentro dos limites das leis gerais. Por outro lado, a Laicidade é anticlerical no sentido em que se opõe tanto ao exercício de poder político por grupos clericais como às tentativa de imposição a todos os cidadãos de «verdades» dogmáticas. Nesse sentido, anticlerical (tal como antifascista) não merece ser considerado um termo pejorativo, antes pelo contrário.

Para ler mais:

Manifesto da Associação República e Laicidade,

Glossário da laicidade (adaptado de um livro de Étienne Pion),

Propostas para uma Carta Europeia da Laicidade (Europa e Laicidade).

8 de Junho, 2004 Ricardo Alves

Refutando Tomás de Aquino (1)

O primeiro argumento de Tomás de Aquino a favor da existência de um «Deus» é o do movimento. Aquino nota, a partir das evidências do mundo sensível, que algumas coisas estão em movimento. Correcto.

Afirma, em seguida, que o movimento de X pode passar de «potencial» a «efectivo» através do movimento efectivo de Y (sendo X e Y objectos distintos). Ora, esta afirmação é contrariada pela ciência do século XX. Efectivamente, determinados objectos passam a um estado de movimento sem interferência de outros objectos. Sabe-se que os núcleos radioactivos decaem «espontaneamente» (n->p+(e-), por exemplo). Além disso, as partículas quânticas estão em movimento perpétuo, seja direcionado ou aleatório. (Só podemos imobilizar todas as partículas quânticas de um dado sistema à temperatura do zero absoluto.) O argumento de Aquino só convenceria portanto quem tivesse um conhecimento da natureza limitado aos objectos macroscópicos.

Concluindo, Aquino argumenta que teria que existir uma causa primeira do movimento. Como vimos, tal não é necessário. E aliás, a conclusão de Aquino enferma de uma incoerência lógica: a «causa primeira» teria que ter uma causa anterior.

Finalmente, Aquino afirma que «a esta causa primeira toda a gente chama Deus», o que se aproxima de um argumento de maioria sociológica. Tomar a opinião da maioria como sendo a verdade é, evidentemente, inválido quando se pretende justificar um argumento pretensamente lógico como o de Aquino.

4 de Junho, 2004 Ricardo Alves

A ICAR divulgou as suas directrizes para a família (e para a escola…)

A Conferência Episcopal Portuguesa divulgou hoje uma nova Carta Pastoral, intitulada “A Família, esperança da Igreja e do mundo“. Trata-se de um documento longo e fastidioso, como só os bispos da ICAR, com os seus empregos perpétuos e isentos de impostos, têm tempo para produzir. Sendo a CEP um dos mais influentes produtores de ideologia dos sectores conservadores portugueses, o documento é de interesse tanto para ateus como para outros (inclusivamente os católicos individuais, que evidentemente não foram ouvidos na produção deste texto que define a sua orientação em matéria de família).

Os parágrafos 66 e 67 são uma verdadeira pérola. É aí defendido que os pais “devem (…) ter o direito de recusar que a escola dê aos seus filhos uma educação sexual que vá contra os seus valores”. Ou seja, os pais devem ter o direito de poder alterar os currículos das escolas públicas em nome das suas crenças privadas e pessoais, que são legítimas mas que se deveriam restringir ao espaço privado e associativo. Não é claro como o Estado poderia gerir os conflitos entre pais católicos (contra toda e qualquer educação sexual substancial, na prática) e pais laicos (que deveriam exigir, estridentemente, o direito dos seus filhos a receberem uma educação sexual completa). Defende-se aí igualmente o financiamento das escolas privadas (católicas) em igualdade com as escolas pública, mas já sem o exagero de cartas pastorais anteriores em que se defendia quase explicitamente o cheque-educação (um dogma neoliberal). Particularmente deliciosa é a menção (no parágrafo 59) das “minorias [que] se apoderam dos instrumentos de participação existentes e os utilizam para fins que não servem os direitos e interesses da maioria das famílias”. O conceito de protecção ao aluno como indivíduo, independentemente da família e das maiorias sociológicas, continua ausente do pensamento católico. Por aí se defende também um maior empenhamento dos “pais cristãos” na gestão das escolas e na definição do projecto educativo. Teríamos assim programas escolares adaptados conforme a relação de forças em cada escola… A CEP exige igualmente que a EMRC seja uma disciplina curricular (recordar as polémicas recentes), para poder continuar a fazer propaganda contra a IVG na escola pública e a propagar crenças de uma era pré-científica…

Muito mais haveria a dizer sobre outros aspectos.

31 de Maio, 2004 Ricardo Alves

Por uma Constituição europeia laica

A Associação República e Laicidade lamenta e repudia a exigência da diplomacia governamental portuguesa, expressa numa carta enviada pela ministra dos Negócios Estrangeiros à presidência da União Europeia e reiterada durante a reunião de 24 de maio da União Europeia, de que o preâmbulo da Constituição europeia faça uma referência às “raízes cristãs da Europa”. A Associação República e Laicidade recorda que uma constituição moderna deve ser proclamada em nome dos povos e dos cidadãos a quem se destina, independentemente das suas crenças religiosas ou convicções filosóficas, e não em nome de “Deus” ou de qualquer religião. Uma referência ao cristianismo, para além de menosprezar a riqueza da diversidade cultural e religiosa europeia, só poderia alienar os numerosos cidadãos europeus que se reclamam de outras fés ou de nenhuma. A forma actual do preâmbulo, que nos parece equilibrada e inclusiva, deve ser mantida.

A Associação República e Laicidade reafirma que o artigo I-51 do actual projecto de Constituição europeia é inaceitável, tanto por obrigar a UE a um diálogo regular com as igrejas e comunidades religiosas, reconhecendo assim um direito de ingerência destas no exercício dos poderes públicos europeus, como por impedir que o direito europeu afecte os privilégios adquiridos no âmbito nacional pelas instituições religiosas. A diplomacia governamental portuguesa deveria honrar a separação constitucional entre o Estado e as confissões religiosas, exigindo a eliminação do artigo I-51 do projecto de Constituição para a Europa e contribuindo assim para a necessária laicidade da construção europeia.

Ricardo Alves

(Secretário da Direcção)

Comunicado da Associação República e Laicidade (26-5-2004)

27 de Maio, 2004 Ricardo Alves

Sim à Laicidade, não à Concordata (3)

6-MITOS-6 DA PROPAGANDA CATÓLICO-CONCORDATÁRIA

1) A Concordata prevê isenções fiscais para o trabalho de assistência social.

Falso. A Concordata prevê isenções fiscais para as associações “caritativas” (artigo 12), supostamente em igualdade com as outras associações da sociedade civil que efectuem o mesmo trabalho, mas institui também (artigo 26) isenções fiscais para todas as instituições católicas (ver ponto 1 do post anterior) incluindo a contribuição autárquica, o IVA, o imposto de selo, o imposto sucessório e a sisa. Ora, que se saiba, uma missa não é uma actividade de “solidariedade social”, e, por muito conforto privado que tal cerimónia confira às pessoas, não há qualquer razão para o edifício de uma igreja estar isento de um imposto público… (actividades como o ióga ou a psicanálise não gozam das mesmas isenções, apesar de terem funções semelhantes). Além disso, estas isenções fiscais têm sido, no passado, estendidas a negócios que nada têm de caritativo, como livrarias e os lucrativos hotéis de Fátima. Mais, até ao momento em que escrevo a profissão de padre confere isenção de IRS, e que se saiba um padre não é um assistente social, é um difusor de uma crença particular.

(E quanto ao “trabalho de solidariedade social”, a verdade é que é muito fácil fazer “caridade” com o dinheiro dos outros e perante os holofotes da comunicação social…)

2) O estatuto da Universidade Católica resulta da Concordata de 1940.

Falso. A Concordata de 1940, negociada entre Pio 12 e Salazar, estabelecia no seu artigo 20 a liberdade de criar escolas privadas, mas não universidades. O entendimento de Salazar foi sempre de que não havia qualquer obrigação do Estado de permitir a criação da Universidade Católica, e procedeu em conformidade até à sua queda da cadeira. Foi Marcelo Caetano, em 1971, quem autorizou a fundação da Universidade Católica Portuguesa.

(A origem deste mito é um decreto governamental de 1990 que afirma, extemporâneamente, que a UCP resulta do artigo 30 da Concordata. O autor do decreto é o Ministro da Educação Roberto Carneiro, membro do Opus Dei, professor da Católica e criador de mitos nas horas vagas.)

3) O Estado deve uma indemnização à ICAR pelas expropriações de bens de 1910.

Falso. A ICAR construiu o seu património, ao longo de séculos, à custa do erário público. Logo, nada haveria a devolver… A República procedeu efectivamente a expropriações de bens da ICAR, mas esses bens foram sendo devolvidos primeiro por Sidónio Pais e depois pela Concordata de 1940. A partir daí, as isenções fiscais dos últimos 64 anos têm sido justificadas pela propaganda católica como uma indemnização por bens que já foram, na realidade, devolvidos. Tal argumento é, portanto, hipócrita.

4) A República “perseguiu” a ICAR.

Falso. A Lei da Separação da Igreja do Estado, assim como outra legislação da República, fez o seguinte: terminou com o estatuto de funcionários públicos de que os padres gozavam; retirou o registo de nascimentos e casamentos à ICAR, instituindo o registo civil; legalizou o divórcio; laicizou o ensino público; autorizou todas as igrejas e comunidades religiosas por igual; suprimiu os subsídios de que beneficiara anteriormente uma delas (generosamente, Afonso Costa concedeu pensões aos padres que aceitaram a lei). Tudo isto é aquilo que é hoje dado por adquirido, num Estado moderno e numa sociedade secularizada e religiosamente diversa. Se alguém foi perseguido, foram todas as outras confissões religiosas, antes de 1910 e após 1926, e, desde sempre, os livre pensadores. Os judeus, muçulmanos, protestantes, agnósticos e ateus têm a dignidade de não pedir “indemnizações”. Mas lá que dá vontade…

5) A Concordata é necessária para fixar os dias feriados.

Falso. Os dias feriados podem ser fixados por qualquer lei geral da República, como acontece com o 5 de outubro e o 25 de abril. Porém, fazer do 1 de janeiro o “dia da Mãe de Deus” (sic, artigo 30 da nova Concordata) arrisca-se a ser motivo de chacota. Nessa data, os portugueses celebram desbragadamente deuses pagãos como Eros e Baco, não a hipotética “mãe de Deus” (Deus teve mãe? E pai também? E avós?).

Seria mais avisado instituir o Dia de Darwin, com vista à promoção do espírito científico, e o Dia de Giordano Bruno, em memória das vítimas da intolerância.

6) A Concordata é necessária para reconhecer o papel histórico e a implantação sociológica da ICAR.

Falso. Este mito remete para outro mais profundo, o do papel histórico, necessariamente bondoso e benfazejo, da ICAR, e implica objectivamente uma avaliação positiva do papel histórico da ICAR. Basta referir a inquisição, e o apoio da ICAR ao Estado Novo para arrumar a parte histórica. Quanto à expressividade da ICAR, a verdade é que a dita tem a influência que tem porque historicamente perseguiu todos os outros. Se não houve judeus em Portugal durante séculos, se há protestantes há pouco mais de um século, e se não há mais ateus confessos, é porque a ICAR sempre conseguiu usar o Estado para o seu proselitismo. A “implantação histórica” resulta portanto de vários crimes e conluios, e a nova Concordata continua essa tradição.

25 de Maio, 2004 Ricardo Alves

Sim à Laicidade, não à Concordata (2)

Existem alguns aspectos da nova Concordata que são particularmente gravosos e que merecem portanto ser discutidos em detalhe.

1) Os artigos 1, 8, 9, 10 e 11 garantem o reconhecimento pelo Estado das instituições católicas, reconhecimento esse que será automático após uma notificação unilateral efectuada pelas autoridades eclesiásticas. Quaisquer outras associações formadas livremente pelos cidadãos estão obrigadas a seguir os trâmites da lei geral do associativismo, ou seja, a efectuarem uma escritura em cartório notarial, pagando os respectivos custos, bem como a publicação em Diário da República. A Concordata confirma assim dois regimes associativos distintos, um para as associações católicas, outro para as associações laicas.

2) As instituições católicas beneficiam de uma vasta lista de inaceitáveis isenções fiscais (ao contrário de um mito muito popular, apenas uma pequena parte destas instituições se dedica à assistência social, conforme será explicado num próximo texto). Embora haja algum recuo relativamente às isenções fiscais da Concordata anterior (nomeadamente, a isenção de IRS para os padres) não é claro se a nova Concordata não permitirá que continue o regabofe que tem mantido as livrarias católicas e os hotéis de Fátima isentos de impostos…

3) Uma vez que a Lei de Exclusão Religiosa abrira a possibilidade de algumas igrejas (que a ICAR decida reconhecer através da Comissão de Liberdade Religiosa, estatal mas por ela dominada) poderem realizar casamentos com efeitos civis, a nova Concordata mantém a outra distinção entre a ICAR e as igrejas “minoritárias”: a possibilidade de a ICAR efectuar divórcios com efeitos civis (artigo 16). Evidentemente, a anulação “canónica” do casamento é quase impossível, mas a nova Concordata recomenda paternalmente aos cidadãos casados catolicamente o “grave dever” de não se divorciarem (artigo 15)!

4) O artigo 19 garante o ensino da religião católica nas escolas públicas, com professores nomeados pela ICAR e pagos pelo contribuinte. Ou seja, a transmissão da crença, num espaço público e pago com dinheiro público, fica garantida por mais uma geração. Ora, a escola deveria servir para transmitir conhecimentos e não para propagar a crença. Se possível, deveria ajudar a formar o espírito crítico e científico dos futuros cidadãos…

A nova Concordata continua assim os piores aspectos da anterior. Estabelece a confusão entre o que é do domínio privado e da livre associação de cidadãos (a crença e as associações de crentes) e o que é do domínio público e estatal, como as prerrogativas estatais de criar instituições, de realizar contratos como o casamento, ou de decidir o que é ensinado nas escolas de todos.

Os aspectos enunciados neste texto e no anterior são mais do que suficientes para defendermos a não ratificação deste acordo concordatário. No próximo texto abordarei alguns mitos comuns que são usados pela propaganda católica nas discussões sobre a Concordata.

24 de Maio, 2004 Ricardo Alves

Sim à Laicidade, não à Concordata (1)

Existem boas razões de princípio para se ser contra qualquer Concordata que comprometa a República de que somos cidadãos.

1) Os direitos necessários ao exercício da liberdade religiosa já são garantidos pela Constituição da República Portuguesa, nomeadamente a liberdade de consciência, a liberdade de culto, a liberdade de expressão e a liberdade de associação (ver os artigos 37, 41, 45 e 46). Os católicos exercem estes direitos diariamente e é legítimo que o continuem a fazer. A Concordata não é, portanto, necessária do ponto de vista da garantia das liberdades fundamentais dos cidadãos portugueses.

Só se compreende a sua existência como forma de impôr privilégios para a comunidade católica portuguesa, ou seja, para criar desigualdades entre os cidadãos. (Este aspecto será desenvolvido num texto futuro.)

2) Qualquer Concordata implica o reconhecimento por Portugal do estatuto estatal do Vaticano. Ora, a Santa Sé não governa um Estado, mas sim uma igreja. Não existe um povo do Vaticano, mas sim cerca de 400 pessoas que acumulam o passaporte da Santa Sé com a nacionalidade de outros Estados, e geralmente também com o estatuto eclesiástico. Além disso, o território administrado é o mais exíguo do mundo, e a Santa Sé não ratificou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, não sendo por essa razão um membro efectivo da ONU. Apenas um acordo de 1929, assinado por Mussolini, impede que a República italiana reclame a soberania total sobre os 0.44 km2 vaticânicos. Este pseudo-Estado, a última ditadura da Europa, tem usado o seu estatuto de “observador” na ONU para impôr concepções dogmáticas em matérias de planeamento familiar (e outras).

A República não deve reconhecer igrejas, mas sim cidadãos livres e iguais. Reconhecer uma igreja como se fosse um Estado é portanto um insulto à laicidade.

22 de Maio, 2004 Ricardo Alves

A luta continua, "Deus" para a rua

A primeira pedra no edifício das democracias modernas é a separação da igreja do Estado. Apenas quando os governantes deixaram de o ser “em nome de Deus” (que não sabiam como consultar) e passaram a sê-lo em nome do povo (e embora nem sempre o consultem), se criaram as condições para o advento das democracias modernas.

A actual obsessão do Vaticano e de alguns políticos conservadores com uma referência explícita, primeiro a “Deus”, e agora ao “património cristão” no Preâmbulo da Constituição Europeia parece assim uma tentativa pitoresca de regressão ao tempo da monarquia por direito divino.

Na verdade, a histeria em torno da “referência cristã” tem servido para esconder que a ICAR conseguiu uma importante vitória com a adopção do artigo I-51 da Constituição Europeia, que não apenas garante que a Constituição não afectará o estatuto das igrejas como garantido pelo direito nacional, mas também cria um mecanismo de consulta das igrejas nos processos legislativos europeus. Não por acaso, a Conferência dos Episcopados Europeus já declarou estar muito satisfeita com o actual projecto de Constituição…