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Ricardo Alves

15 de Fevereiro, 2005 Ricardo Alves

Eu não estou de luto nem respeito Fátima

Existe uma apreciação ética, e portanto social, a fazer sobre a morte de Lúcia dos Santos.
É evidente que a morte de qualquer pessoa me merece respeito, e que posso decidir associar-me a cerimónias de luto se conhecer o falecido ou se isso confortar as pessoas das suas e das minhas relações. Mas não me associo ao luto por quem não conheci nem me deu razões para respeito, como é obviamente o caso da falecida Lúcia dos Santos. Não respeito quem participa em maquinações rocambolescas com o objectivo de ludibriar milhões de pessoas para fins religiosos, políticos e comerciais. E como é por todos reconhecido, a referida senhora ou foi a verdadeira criadora do mito de Fátima, ou foi conivente nessa manobra obscurantista, manobra em qualquer dos casos sinistra e lesiva da imagem e dos valores da sociedade portuguesa. Pois não é salutar para a imagem de Portugal que sejamos vistos como um povo que se ajoelha, arrasta e humilha à passagem de uma boneca de louça e de pau. Não é benéfico para o bem comum de uma sociedade que se propagandeiem como dignos e desejáveis comportamentos anti-sociais (como faltar à escola para rezar), ou doentios (como a autoflagelação ou os jejuns desregrados), ou supersticiosos (como a ideia de que uma mulher morta há dois mil anos poderia surgir empoleirada numa azinheira, ou que o sol pode ser visto a «rodar» em Ourém mas não em Lisboa).
Eu escolho um país moderno, a capacidade crítica das pessoas, o espírito científico, a instrução dos petizes e o amor-próprio. Fátima é o contrário de tudo isto.
É claro que as pessoas são tão livres de se arrastar de joelhos como de ser sado-masoquistas, de acreditar na «virgem» como em Alá, e que ninguém deve proibir comportamentos de outrem que não nos afectem. Porém, não me peçam para «respeitar» quem promove o obscurantismo e comportamentos consabidamente nocivos. Do mesmo modo, não se pode impedir as pessoas de ter convicções anti-democráticas, mas não me peçam para deixar de combater e denunciar alguém que passou atestados de «enviado de Deus» a Salazar.
A finalizar, convém acrescentar que a senhora Lúcia dos Santos me respeitava menos do que eu a ela. Aliás, pediu em diversas ocasiões que se limitasse a liberdade de expressão por «Deus já [estar] muito ofendido». Eu nunca pensaria em coarctar a sua liberdade de proclamar disparates religiosos ou outros, embora ela desejasse claramente impedir pessoas como eu de escreverem textos como este. Aqui fica.
15 de Fevereiro, 2005 Ricardo Alves

Comunicado da ARL sobre o luto nacional

Comunicado de imprensa de 14/2/2005

Porquê luto nacional?

1. A Associação República e Laicidade manifesta a sua estranheza e repúdio pela iniciativa do Primeiro Ministro, ratificada pelo Presidente da República, de decretar um dia de luto nacional pelo falecimento de Lúcia de Jesus.

2. O falecimento de personalidades que tenham servido a República em cargos elevados, ou que tenham prestado serviços públicos de grande mérito, pode e deve ser assinalado com um dia de luto nacional. Nesse sentido, estranhamos que não tenha sido decretada tal solenidade aquando dos falecimentos – ocorridos durante o mandato do actual Governo – da antiga Primeira Ministra Maria de Lurdes Pintasilgo ou do lutador antifascista Fernando Vale.

3. Lúcia de Jesus teve como único acto relevante da sua vida o papel que desempenhou nos acontecimentos de Fátima em 1917, que a tornaram mais tarde uma actora comprometida das encenações político-religiosas conducentes a legitimar o Estado Novo (deve-se-lhe a frase «Salazar é a pessoa por Ele escolhida para continuar a governar a nossa Pátria»), e foi portanto
parte de uma operação político-religiosa que fracturou e ainda divide o país e a própria comunidade católica portuguesa.

4. Parece-nos portanto evidente que o luto nacional é, nesta ocasião, desapropriado e mesmo prejudicial à separação da política e da religião e à própria unidade nacional em torno dos valores democráticos.

Luis Mateus
(Presidente da Direcção)
Ricardo Gaio Alves
(Secretário da Direcção)

Adenda: notícia no Público.
14 de Fevereiro, 2005 Ricardo Alves

Carta à Procuradoria Geral da República

Ex.mo Senhor
Procurador Geral da República
Rua da Escola Politécnica, 140
1269-269 Lisboa Codex
Fax: 213975255

Lisboa, 11-02-2005

Ex.mo Senhor Procurador Geral da República,

Para os efeitos devidos, vimos expor a V.Exa. o seguinte:

1. Tal como aconteceu a um grande número de cidadãos portugueses, a Associação Cívica República e Laicidade (associação constituída por escritura pública de 27/1/2003) tomou conhecimento, através dos meios de comunicação social, de que, no passado domingo, dia 6 de Fevereiro, o Sr. Padre Lereno Sebastião Dias, sacerdote da Igreja Católica Portuguesa a exercer as funções de pároco da igreja de S. João de Brito, em Lisboa, na missa dominical que celebrou naquele templo e que foi simultaneamente transmitida, via rádio, através da Antena 1 da RDP (Rádio Difusão Portuguesa – Empresa Pública), claramente exortou quem assistiu, directa ou indirectamente, àquele acto religioso a não dar o seu voto aos partidos políticos cujos programas eleitorais não respeitam a ética cristã.

2. «Conhecemos os partidos, conhecemos os programas, as práticas que têm operado em Portugal, as pessoas, qual o seu perfil» (…) «Um cristão deve aprovar por voto uma ética que não seja indigna de si próprio, por exemplo a vida» (…) «a ética cristã promove a vida humana desde a concepção até à morte natural» (…) «Aborto nunca, eutanásia nunca» (…) «A ética cristã reprova que seja equiparada a família a uma união de facto de um homem com um homem ou de uma mulher com uma mulher» (…) «Poligamia nunca, divórcio nunca» (…) constituem algumas das afirmações então proferidas pelo acima identificado Sr. Padre Lereno Sebastião Dias na sua homilia radiodifundida e que, posteriormente, foram também reproduzidas e divulgadas pela imprensa escrita e, designadamente pela agência LUSA.

3. A Lei Eleitoral da Assembleia da República [Lei 14/79, de 16 Maio (Actualizada com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica nº 2/2001 de 25 de Agosto)] estabelece, no seu Artigo 153º (Abuso de funções públicas ou equiparadas), que «O cidadão investido de poder público, o funcionário ou agente do Estado ou de outra pessoa colectiva pública e o ministro de qualquer culto que, abusando das suas funções ou no exercício das mesmas, se servir delas para constranger ou induzir os eleitores a votar em determinada ou determinadas listas, ou abster-se de votar nelas, será punido com prisão de seis meses a dois anos e multa de 10.000$ a 100.000$.»

4. Salvo melhor opinião, afigura-se-nos que o acima citado Sr. Padre Lereno Sebastião Dias, pároco da igreja de S. João de Brito, por sua única e exclusiva iniciativa ou em situação de conivência com outras pessoas, ao proferir as afirmações que proferiu, na qualidade em que as proferiu, no local onde as proferiu, na ocasião em que as proferiu – já em período oficial de Campanha Eleitoral para a Assembleia da República, lembra-se e sublinha-se aqui – e também pelos poderosos meios que utilizou para as difundir, infringiu claramente aquela norma legal, incorrendo, portanto, na prática de um crime público que, além do mais, foi ainda publicamente cometido e largamente publicitado.

5. Em conformidade com os factos acima sumariamente descritos e que, em nosso entender, indiciam grave prática ilícita, entendemos que o Ministério Público deve impreterivelmente proceder às convenientes averiguações, bem como ao levantamento do correspondente processo-crime, tendo em vista os procedimentos formais de avaliação e julgamento, por tribunal competente, do/s eventual/eventuais responsável/responsáveis por aqueles actos, por forma a que, verificando-se a sua efectiva prática e os exactos termos (com agravantes ou atenuantes) em que tenham sido cometidos, o/s seu/s autor/autores possa/m ser devidamente punido/s nos termos da Lei.

Sem outro assunto,
a bem da República,

Luis Manuel Mateus
(Presidente da Direcção)

9 de Fevereiro, 2005 Ricardo Alves

Lei eleitoral da Assembleia da República

Artigo 153º
( Abuso de funções públicas ou equiparadas )

O cidadão investido de poder público, o funcionário ou agente do Estado ou de outra pessoa colectiva pública e o ministro de qualquer culto que, abusando das suas funções ou no exercício das mesmas, se servir delas para constranger ou induzir os eleitores a votar em determinada ou determinadas listas, ou abster-se de votar nelas, será punido com prisão de seis meses a dois anos e multa de 10.000$ a 100.000$.

8 de Fevereiro, 2005 Ricardo Alves

Talibãs aflitos sem necessidade

Os talibãs portugueses decidiram divulgar a sua orientação de voto através de um manifesto ideológico que no seu primeiro parágrafo aproveita a porta aberta por um comunicado da Conferência Episcopal (que exortara, em termos ambíguos, à «participação responsável» dos católicos) para de seguida transcrever um longo excerto da famosa «Nota Doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política», da autoria do talibã-mor Ratzinger (o líder da instituição anteriormente conhecida como «Santo Ofício», vulgo Inquisição). As ideias deste manifesto foram difundidas nos últimos dias numa homilia de um padre de Lisboa (transmitida pela Antena 1) e num artigo do porta-voz do talibanismo à portuguesa (já referido pela Palmira).

Não é, evidentemente, inaudito que a ICAR tome posição em eleições, mas é extravagante que o seu sector ultra-conservador esteja tão preocupado com «[as] leis civis em matéria de aborto e da eutanásia, (…) o dever de respeitar e proteger os direitos do embrião humano, (…) a tutela e promoção da família, fundada no matrimónio monogâmico entre pessoas de sexo diferente (…) perante as leis modernas em matéria de divórcio, (…) a liberdade de educação, (…) a tutela social dos menores, (…) a liberdade religiosa». Efectivamente, toda esta aflição parece despropositada. Se é verdade que o regresso da «esquerda» ao poder não tem as garantias clericais de 1995, quando o PS era liderado por António Guterres (no mínimo, próximo do Opus Dei), em boa verdade a existência de uma «ala católica» na bancada do PS está garantida, quer através do Movimento Humanismo e Democracia, quer através de numerosos independentes católicos como Luís Braga da Cruz (Porto) ou Matilde Sousa Franco (Coimbra). Não há, portanto, matéria para alarme nos sectores talibãs. A maioria de «esquerda» na próxima Assembleia da República (se existir…) será volatilizável quando questões como o aborto ou os casamentos de homossexuais forem votadas (se forem votadas!).

Católicos, tende calma!

Adenda: não é impossível que o objectivo dos assinantes do manifesto (vale a pena ler a lista… e talvez assinar a petição) não seja tentar provocar um «sobressalto conservador» semelhante ao que poderá ter ocorrido nos EUA aquando da eleição presidencial. Os próximos dias serão interessantes.

3 de Fevereiro, 2005 Ricardo Alves

Ser-se religioso e laico

Poderá ser-se religioso e laico?


Teoricamente, não haveria lugar para dúvidas: a crença religiosa pertence ao foro individual e privado que deve ser salvaguardado do domínio público, e sobre o qual um Estado laico não faz juízos de valor. No entanto, a laicidade afirmou-se historicamente contra as tendências hegemónicas das igrejas, hegemonia essa desejada por um tipo particular de crentes, os clericais. É exactamente esse clericalismo, fomentado por algumas comunidades de crentes, que constitui um problema político. Poderá haver religiões anti-clericais, ou seja, que contestem o poder político do clero? A pergunta é provocatória, mas convém recordar que, quando em minoria sociológica, algumas igrejas defendem a laicidade. Foi esse o caso das igrejas protestantes em 1911, aquando da publicação da Lei de Separação da Igreja do Estado.

Seguramente, o crente que acredita num «Deus» pessoal, que ele próprio define, dificilmente será um clerical, pois viverá a sua fé desligado das comunidades de crença e dos seus dogmas. Apenas as religiões organizadas intervêm politicamente, e a história das relações dos cleros com os poderes públicos está cheia de exemplos de clericalismo que originaram uma reacção anticlerical natural e legítima (mas que preocupa alguns crentes). Alguns dos ramos mais excêntricos do tronco judaico-cristão, como os unitários (que todavia deixaram de se afirmar cristãos em 1995) ou os quakers, que constituem um exemplo de uma religião organizada sem clero (mas que intervieram politicamente na defesa do pacifismo ou do anti-esclavagismo) constituem aproximações a vivências religiosas distanciadas da pulsão pelo poder político. Nestas duas religiões, a enfase é posta na busca de uma espiritualidade pessoal escolhida com uma liberdade considerável, e assume-se a ausência de rituais, cerimónias, dias santos e dogmas sistematizados. A aceitação de que as escolhas éticas podem variar de indivíduo para indivíduo tem permitido a adaptação a mudanças societais, e não é portanto um acaso que os unitários tenham sido das primeiras igrejas a casar homossexuais.

Um caso curioso originário do contexto cultural muçulmano é o dos Baha´i, novamente uma religião sem clero ou rituais, com práticas democráticas na sua estrutura interna, mas lamentavelmente com dificuldades em ultrapassar algum sexismo e, sobretudo, homofobia. No entanto, as igrejas mais relevantes a nível mundial (as ortodoxias judaico-cristãs e muçulmanas) convivem dificilmente com a laicidade. Embora o protestantismo enfatize sempre uma relação pessoal com «Deus» que poderia desarmar as tentações clericais, os exemplos de igrejas de Estado protestantes são comuns na Europa (Reino Unido, Dinamarca, Finlândia…). O islão tem fornecido exemplos abundantes do clericalismo mais extremo, quer na versão xiita-iraniana, quer nas variedades sunitas da Arábia Saudita ou do Afeganistão talibã.

Particularmente difícil é, evidentemente, o caso do catolicismo romano. A ICAR junta aos textos sacralizados uma colecção copiosa de dogmas, um catecismo constrangedor ao nível comportamental, e um programa político mais detalhado do que o de muitos partidos políticos. A quase impossibilidade de destrinçar onde termina a fé religiosa e onde começa a obediência política (ambas sendo, aliás, definidas pela hierarquia), e a vontade declarada de impôr ao conjunto dos cidadãos as regras formuladas para a comunidade dos crentes, tornam a ICAR um caso de clericalismo acentuado.

A resposta à questão inicial depende, como fica claro, da religião em que se crê e da liberdade que o crente se concede. Um crente laico criticará aberta e descomplexadamente a religião a que esteja ligado; um crente que ignore os preceitos religiosos na sua vida quotidiana dará um sinal de laicidade activa mas envergonhada; um crente que se submeta acriticamente ao clero da sua religião será um exemplo do pior clericalismo.

Agradeço ao Carlos Esperança por me ter desencadeado esta reflexão.
21 de Janeiro, 2005 Ricardo Alves

A identidade contra a liberdade

Zita Seabra, cabeça de lista do PPD/PSD pelo círculo de Coimbra, protestou quarta-feira o seu «grande respeito pelo papel desempenhado em Portugal pela Igreja Católica», uma afirmação ritual comum em muitos políticos apostados na conquista do favor institucional da dita igreja e da sua (presumível) «orientação de voto». A afirmação, de tão rotineira, não choca, mesmo se um pouco de rigor histórico e de decência exigiriam que quem a faz ressalvasse, subtilmente que fosse, os crimes da inquisição, os pogromes católicos e a colaboração da ICAR com a ditadura fascista. Mas Zita Seabra foi mais longe ainda, e arriscou que «ao não reconhecer essa tradição [a da ICAR], alguns países da Europa – como a França, a Alemanha e a Espanha – correm um sério risco de perda de identidade». Aqui, confesso que a minha irritação explodiu. A palavra «identidade» serve hoje em dia para justificar todas as opressões e formas de controlo dos grupos sobre os indivíduos, e isso vê-se desde a defesa icarística de uma menção às «raízes cristãs» no projecto de Constituição da União Europeia, até à obrigação de raparigas de origem muçulmana usarem o véu islâmico. E quem fala em nome da «tradição» e da «identidade»? Sempre, sempre, o clero. (E o mais extremista, claro…)

Pessoalmente, como ateu que sou, jamais me conseguirei identificar com um Estado português que, como quer a candidata a deputada, seja baseado nos «nossos (…) valores católicos». Eu não faço parte do «nós» que ela conjuga, tenho todo o direito a isso, e passo bem sem as crises de identidade da senhora Zita Seabra. A «identidade cultural» ou é dinâmica ou não é democrática, e se há necessidade de valores comuns, e eu reconheço que pode haver, que sejam os da República e da Democracia, e as leis que democraticamente a comunidade política decida dar a si própria. Dispenso leis e valores «revelados» por uma entidade sobrenatural em que não acredito, e transmitidos por intermediários terrestres de que a História me aconselha a desconfiar. Evidentemente, o direito de se orientar por esses valores (no quadro das leis comuns) é intocável. Simplesmente, a comunidade política e a comunidade eclesial são entidades distintas e devem sê-lo cada vez mais.
22 de Dezembro, 2004 Ricardo Alves

Laicidade (colectânea de citações)

«A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum (…)»

(Lei de Separação da Igreja do Estado, 20/4/1911)

«O Estado também não pode ser ateu, deísta, livre-pensador; e não o pode ser pelo mesmo motivo porque não tem o direito de ser católico, protestante, budista. O Estado tem de ser céptico, ou melhor dizendo indiferentista.»

(Sampaio Bruno, 1907)

«O Estado nada tem com o que cada um pensa acerca da religião. O Estado não pode ofender a liberdade de cada qual, violentando-o a pensar desta ou daquela maneira em matéria religiosa.»

(Afonso Costa, 1895)

«A religião é um assunto entre cada homem e a divindade.»

(Pierre Bayle, 1647-1706)

«A laicidade não nos foi dada como uma revelação. Não saiu da cabeça de nenhum profeta; não se exprime em catecismo algum. Nenhum texto sagrado contém os seus segredos, ela não os tem. A laicidade procura-se, exprime-se, discute-se, exerce-se e, se necessário, corrige-se e difunde-se.»

(Claude Nicolet)

«É altura de dizer que a laicidade não pode ser limitada a um modo de organização social. Ela contém em si um ideal, o do indivíduo-cidadão que sabe que não há saber-viver colectivo sem o confronto livremente debatido das convicções individuais.»

(Jean-Michel Ducomte, La Laïcité)

«A laicidade é um valor essencial, com o desejo de liberdade de consciência e de igualdade de todos os homens, quer sejam crentes, ateus ou agnósticos. O ideal laico não é um ideal negativo de ressentimento contra a religião. É o maior contra-senso ver-se na laicidade uma hostilidade de princípio à religião. Outrossim, é um ideal positivo de afirmação da liberdade de consciência, de igualdade dos crentes e dos ateus e da ideia de que a lei republicana deve visar o bem comum e não o interesse particular. É o que se chama o princípio de neutralidade da esfera pública.»

(Henri Peña-Ruiz, Setembro de 2003)

«Demasiado frequentemente os homens têm tendência a privilegiar o que os divide. Com a laicidade, é necessário aprender a viver com as suas diferenças no horizonte do universal, sem esquecer que temos interesses comuns enquanto homens.»

(Henri Peña-Ruiz, Setembro de 2003)

«A laicidade não confunde o ideal de uma discussão livre com a generalização do relativismo: a distinção entre crença e conhecimento deve ser bem marcada, sob risco de se inaugurar um novo tipo de obscurantismo, ou de fazer a cama a novas tiranias.»

(Henri Peña-Ruiz, Abril de 2004)

12 de Dezembro, 2004 Ricardo Alves

Resposta a Policarpo sobre os «exageros do laicismo»

O Cardeal Patriarca de Lisboa, José Policarpo, desferiu anteontem um ataque ao que qualifica de «exageros do laicismo». Policarpo está preocupado, aparentemente, com os protestos contra a utilização abusiva de escolas do Estado na iniciativa proselitista «Bíblia Manuscrita Jovem», e com a possibilidade de que os crucifixos sejam progressivamente retirados de escolas e outros edifícios públicos.

Espanta-me que José Policarpo, que reitera (presumo que sinceramente) a sua adesão ao ideal de laicidade do Estado, não compreenda que uma igreja, seja ela qual for, não pode impôr os seus símbolos ao Estado. O correcto entendimento da laicidade do Estado implica justamente que nem as igrejas devem ser forçadas a ostentar a bandeira da República, nem as escolas da República são obrigadas a exibir o instrumento de tortura que foi adoptado pelas igrejas cristãs como o seu símbolo principal.

Policarpo argumenta, em defesa da «Bíblia Manuscrita Jovem», dos crucifixos nas escolas e até em defesa dos juramentos religiosos, que «a Bíblia, como aliás a Cruz do Senhor, nos países que têm o cristianismo como matriz cultural, não são apenas símbolos religiosos, são realidades culturais». Acontece que, como Policarpo sabe perfeitamente, a cruz não está nas escolas por ser um «símbolo cultural». Se assim fosse, estaria lá acompanhada pelo galo de Barcelos e pela fatídica garrafa de vinho do Porto. Os crucifixos estão nas escolas, isso sim, como símbolo do poder político da ICAR.

Finalmente, o nosso caro concidadão Policarpo deve saber que nem todos os alunos das escolas deste país são cristãos, e que todos merecem o mesmo respeito, independentemente da sua crença ou ausência de crença. Ou será que a ICAR deseja impôr a todos (ateus, católicos, agnósticos, muçulmanos) um símbolo que apenas para alguns é sagrado? E não seria preferível que quem deseja aderir a uma fé o fizesse livremente, sem pressões proselitistas que não devem existir em espaços que são de todos?

8 de Dezembro, 2004 Ricardo Alves

Refutando BSS (2)

Os argumentos de Boaventura Sousa Santos (BSS) favoráveis à existência de «Deus» são mais sofisticados e pomposos do que os de César das Neves e seus seguidores, mas são também, sem dúvida, mais irracionais do que os de um Tomás de Aquino. Atente-se na argumentação que se segue, retirada do célebre «Um discurso sobre as ciências».

«Hoje é possível ir muito além da mecânica quântica. Enquanto esta introduziu a consciência no acto do conhecimento, nós temos hoje de a introduzir no próprio objecto do conhecimento, sabendo que, com isso, a distinção sujeito/objecto sofrerá uma transformação radical. Num certo regresso ao pan-psiquismo leibniziano, começa hoje a reconhecer-se uma dimensão psíquica na natureza, “a mente mais ampla” de que fala Bateson, da qual a mente humana é apenas uma parte, uma mente imanente ao sistema social global e à ecologia planetária que alguns chamam Deus.»

Neste parágrafo, BSS joga com as palavras e confunde os registos à pior maneira pós-modernista, com o objectivo de tentar legitimar um argumento teísta a partir da mecânica quântica. Deve notar-se que a mecânica quântica (MQ), como descrição da realidade que é, implica tanto a consciência (humana ou animal) na natureza como a mecânica clássica ou a termodinâmica. BSS escreve, no entanto, como se o princípio da incerteza implicasse a «consciência» nos fenómenos quânticos, uma ideia que não se encontra nos manuais de física quântica mas sim em alguns maus livros de divulgação científica. BSS cita muito estes últimos, mas nenhum manual, o que denuncia a origem do seu equívoco.

Deve também assinalar-se que o «Deus» de BSS só tem de comum com o «Deus» da tradição judaico-cristã o nome. O de BSS não falou com Moisés no cimo do Sinai e não ressuscitou um pregador qualquer. Pelo contrário, está presente nas federações sindicais mundiais e no meio ambiente do nosso planeta (mas não no dos outros planetas?), quiçá mesmo nos calhaus e nos dejectos… Esta ideia é retomada no trecho seguinte.

«(…) Os conceitos de “mente imanente”, “mente mais ampla” e “mente colectiva” de Bateson e outros constituem notícias dispersas de que o outro foragido da ciência moderna, Deus, pode estar em vias de regressar. Regressará transfigurado, sem nada de divino senão o nosso desejo de harmonia e comunhão com tudo o que nos rodeia e que, vemos agora, é o mais íntimo de nós.»

Portanto, segundo BSS, «Deus» voltará (onde esteve entretanto, BSS não nos diz; mas que a ciência foi mazinha para «Ele», lá isso foi…). Sendo um «Deus» tão diferente do original (judaico/cristão/muçulmano), seria da mais elementar honestidade chamá-lo por outro nome. É que, ao contrário do que assumem os pós-modernistas, não se pode alterar o significado das palavras à medida das necessidades argumentativas, sob risco de acabarmos por não nos entender uns aos outros. E o «desejo de harmonia e comunhão» de BSS também pode ser satisfeito ouvindo música ou vendo um quadro, o que não faz de Wagner ou de Van Gogh «deuses». Quando muito, sê-lo-iam em sentido figurado, não no sentido tradicional e exacto do termo.

Refutando BSS (1)