Porquê luto nacional?
2. O falecimento de personalidades que tenham servido a República em cargos elevados, ou que tenham prestado serviços públicos de grande mérito, pode e deve ser assinalado com um dia de luto nacional. Nesse sentido, estranhamos que não tenha sido decretada tal solenidade aquando dos falecimentos – ocorridos durante o mandato do actual Governo – da antiga Primeira Ministra Maria de Lurdes Pintasilgo ou do lutador antifascista Fernando Vale.
3. Lúcia de Jesus teve como único acto relevante da sua vida o papel que desempenhou nos acontecimentos de Fátima em 1917, que a tornaram mais tarde uma actora comprometida das encenações político-religiosas conducentes a legitimar o Estado Novo (deve-se-lhe a frase «Salazar é a pessoa por Ele escolhida para continuar a governar a nossa Pátria»), e foi portanto
parte de uma operação político-religiosa que fracturou e ainda divide o país e a própria comunidade católica portuguesa.
4. Parece-nos portanto evidente que o luto nacional é, nesta ocasião, desapropriado e mesmo prejudicial à separação da política e da religião e à própria unidade nacional em torno dos valores democráticos.
Luis Mateus
(Presidente da Direcção)
Ricardo Gaio Alves
(Secretário da Direcção)
Ex.mo Senhor
Procurador Geral da República
Rua da Escola Politécnica, 140
1269-269 Lisboa Codex
Fax: 213975255
Lisboa, 11-02-2005
Ex.mo Senhor Procurador Geral da República,
Para os efeitos devidos, vimos expor a V.Exa. o seguinte:
1. Tal como aconteceu a um grande número de cidadãos portugueses, a Associação Cívica República e Laicidade (associação constituída por escritura pública de 27/1/2003) tomou conhecimento, através dos meios de comunicação social, de que, no passado domingo, dia 6 de Fevereiro, o Sr. Padre Lereno Sebastião Dias, sacerdote da Igreja Católica Portuguesa a exercer as funções de pároco da igreja de S. João de Brito, em Lisboa, na missa dominical que celebrou naquele templo e que foi simultaneamente transmitida, via rádio, através da Antena 1 da RDP (Rádio Difusão Portuguesa – Empresa Pública), claramente exortou quem assistiu, directa ou indirectamente, àquele acto religioso a não dar o seu voto aos partidos políticos cujos programas eleitorais não respeitam a ética cristã.
2. «Conhecemos os partidos, conhecemos os programas, as práticas que têm operado em Portugal, as pessoas, qual o seu perfil» (…) «Um cristão deve aprovar por voto uma ética que não seja indigna de si próprio, por exemplo a vida» (…) «a ética cristã promove a vida humana desde a concepção até à morte natural» (…) «Aborto nunca, eutanásia nunca» (…) «A ética cristã reprova que seja equiparada a família a uma união de facto de um homem com um homem ou de uma mulher com uma mulher» (…) «Poligamia nunca, divórcio nunca» (…) constituem algumas das afirmações então proferidas pelo acima identificado Sr. Padre Lereno Sebastião Dias na sua homilia radiodifundida e que, posteriormente, foram também reproduzidas e divulgadas pela imprensa escrita e, designadamente pela agência LUSA.
3. A Lei Eleitoral da Assembleia da República [Lei 14/79, de 16 Maio (Actualizada com as alterações introduzidas pela Lei Orgânica nº 2/2001 de 25 de Agosto)] estabelece, no seu Artigo 153º (Abuso de funções públicas ou equiparadas), que «O cidadão investido de poder público, o funcionário ou agente do Estado ou de outra pessoa colectiva pública e o ministro de qualquer culto que, abusando das suas funções ou no exercício das mesmas, se servir delas para constranger ou induzir os eleitores a votar em determinada ou determinadas listas, ou abster-se de votar nelas, será punido com prisão de seis meses a dois anos e multa de 10.000$ a 100.000$.»
4. Salvo melhor opinião, afigura-se-nos que o acima citado Sr. Padre Lereno Sebastião Dias, pároco da igreja de S. João de Brito, por sua única e exclusiva iniciativa ou em situação de conivência com outras pessoas, ao proferir as afirmações que proferiu, na qualidade em que as proferiu, no local onde as proferiu, na ocasião em que as proferiu – já em período oficial de Campanha Eleitoral para a Assembleia da República, lembra-se e sublinha-se aqui – e também pelos poderosos meios que utilizou para as difundir, infringiu claramente aquela norma legal, incorrendo, portanto, na prática de um crime público que, além do mais, foi ainda publicamente cometido e largamente publicitado.
5. Em conformidade com os factos acima sumariamente descritos e que, em nosso entender, indiciam grave prática ilícita, entendemos que o Ministério Público deve impreterivelmente proceder às convenientes averiguações, bem como ao levantamento do correspondente processo-crime, tendo em vista os procedimentos formais de avaliação e julgamento, por tribunal competente, do/s eventual/eventuais responsável/responsáveis por aqueles actos, por forma a que, verificando-se a sua efectiva prática e os exactos termos (com agravantes ou atenuantes) em que tenham sido cometidos, o/s seu/s autor/autores possa/m ser devidamente punido/s nos termos da Lei.
Sem outro assunto,
a bem da República,
Luis Manuel Mateus
(Presidente da Direcção)
Católicos, tende calma!
Adenda: não é impossível que o objectivo dos assinantes do manifesto (vale a pena ler a lista… e talvez assinar a petição) não seja tentar provocar um «sobressalto conservador» semelhante ao que poderá ter ocorrido nos EUA aquando da eleição presidencial. Os próximos dias serão interessantes.
Poderá ser-se religioso e laico?
«O Estado também não pode ser ateu, deísta, livre-pensador; e não o pode ser pelo mesmo motivo porque não tem o direito de ser católico, protestante, budista. O Estado tem de ser céptico, ou melhor dizendo indiferentista.»
(Sampaio Bruno, 1907)
«O Estado nada tem com o que cada um pensa acerca da religião. O Estado não pode ofender a liberdade de cada qual, violentando-o a pensar desta ou daquela maneira em matéria religiosa.»
(Afonso Costa, 1895)
«A religião é um assunto entre cada homem e a divindade.»
(Pierre Bayle, 1647-1706)
«A laicidade não nos foi dada como uma revelação. Não saiu da cabeça de nenhum profeta; não se exprime em catecismo algum. Nenhum texto sagrado contém os seus segredos, ela não os tem. A laicidade procura-se, exprime-se, discute-se, exerce-se e, se necessário, corrige-se e difunde-se.»
(Claude Nicolet)
«É altura de dizer que a laicidade não pode ser limitada a um modo de organização social. Ela contém em si um ideal, o do indivíduo-cidadão que sabe que não há saber-viver colectivo sem o confronto livremente debatido das convicções individuais.»
(Jean-Michel Ducomte, La Laïcité)
«A laicidade é um valor essencial, com o desejo de liberdade de consciência e de igualdade de todos os homens, quer sejam crentes, ateus ou agnósticos. O ideal laico não é um ideal negativo de ressentimento contra a religião. É o maior contra-senso ver-se na laicidade uma hostilidade de princípio à religião. Outrossim, é um ideal positivo de afirmação da liberdade de consciência, de igualdade dos crentes e dos ateus e da ideia de que a lei republicana deve visar o bem comum e não o interesse particular. É o que se chama o princípio de neutralidade da esfera pública.»
(Henri Peña-Ruiz, Setembro de 2003)
«Demasiado frequentemente os homens têm tendência a privilegiar o que os divide. Com a laicidade, é necessário aprender a viver com as suas diferenças no horizonte do universal, sem esquecer que temos interesses comuns enquanto homens.»
(Henri Peña-Ruiz, Setembro de 2003)
«A laicidade não confunde o ideal de uma discussão livre com a generalização do relativismo: a distinção entre crença e conhecimento deve ser bem marcada, sob risco de se inaugurar um novo tipo de obscurantismo, ou de fazer a cama a novas tiranias.»
(Henri Peña-Ruiz, Abril de 2004)
O Cardeal Patriarca de Lisboa, José Policarpo, desferiu anteontem um ataque ao que qualifica de «exageros do laicismo». Policarpo está preocupado, aparentemente, com os protestos contra a utilização abusiva de escolas do Estado na iniciativa proselitista «Bíblia Manuscrita Jovem», e com a possibilidade de que os crucifixos sejam progressivamente retirados de escolas e outros edifícios públicos.
Espanta-me que José Policarpo, que reitera (presumo que sinceramente) a sua adesão ao ideal de laicidade do Estado, não compreenda que uma igreja, seja ela qual for, não pode impôr os seus símbolos ao Estado. O correcto entendimento da laicidade do Estado implica justamente que nem as igrejas devem ser forçadas a ostentar a bandeira da República, nem as escolas da República são obrigadas a exibir o instrumento de tortura que foi adoptado pelas igrejas cristãs como o seu símbolo principal.
Policarpo argumenta, em defesa da «Bíblia Manuscrita Jovem», dos crucifixos nas escolas e até em defesa dos juramentos religiosos, que «a Bíblia, como aliás a Cruz do Senhor, nos países que têm o cristianismo como matriz cultural, não são apenas símbolos religiosos, são realidades culturais». Acontece que, como Policarpo sabe perfeitamente, a cruz não está nas escolas por ser um «símbolo cultural». Se assim fosse, estaria lá acompanhada pelo galo de Barcelos e pela fatídica garrafa de vinho do Porto. Os crucifixos estão nas escolas, isso sim, como símbolo do poder político da ICAR.
Finalmente, o nosso caro concidadão Policarpo deve saber que nem todos os alunos das escolas deste país são cristãos, e que todos merecem o mesmo respeito, independentemente da sua crença ou ausência de crença. Ou será que a ICAR deseja impôr a todos (ateus, católicos, agnósticos, muçulmanos) um símbolo que apenas para alguns é sagrado? E não seria preferível que quem deseja aderir a uma fé o fizesse livremente, sem pressões proselitistas que não devem existir em espaços que são de todos?
Os argumentos de Boaventura Sousa Santos (BSS) favoráveis à existência de «Deus» são mais sofisticados e pomposos do que os de César das Neves e seus seguidores, mas são também, sem dúvida, mais irracionais do que os de um Tomás de Aquino. Atente-se na argumentação que se segue, retirada do célebre «Um discurso sobre as ciências».
«Hoje é possível ir muito além da mecânica quântica. Enquanto esta introduziu a consciência no acto do conhecimento, nós temos hoje de a introduzir no próprio objecto do conhecimento, sabendo que, com isso, a distinção sujeito/objecto sofrerá uma transformação radical. Num certo regresso ao pan-psiquismo leibniziano, começa hoje a reconhecer-se uma dimensão psíquica na natureza, “a mente mais ampla” de que fala Bateson, da qual a mente humana é apenas uma parte, uma mente imanente ao sistema social global e à ecologia planetária que alguns chamam Deus.»
Neste parágrafo, BSS joga com as palavras e confunde os registos à pior maneira pós-modernista, com o objectivo de tentar legitimar um argumento teísta a partir da mecânica quântica. Deve notar-se que a mecânica quântica (MQ), como descrição da realidade que é, implica tanto a consciência (humana ou animal) na natureza como a mecânica clássica ou a termodinâmica. BSS escreve, no entanto, como se o princípio da incerteza implicasse a «consciência» nos fenómenos quânticos, uma ideia que não se encontra nos manuais de física quântica mas sim em alguns maus livros de divulgação científica. BSS cita muito estes últimos, mas nenhum manual, o que denuncia a origem do seu equívoco.
Deve também assinalar-se que o «Deus» de BSS só tem de comum com o «Deus» da tradição judaico-cristã o nome. O de BSS não falou com Moisés no cimo do Sinai e não ressuscitou um pregador qualquer. Pelo contrário, está presente nas federações sindicais mundiais e no meio ambiente do nosso planeta (mas não no dos outros planetas?), quiçá mesmo nos calhaus e nos dejectos… Esta ideia é retomada no trecho seguinte.
«(…) Os conceitos de “mente imanente”, “mente mais ampla” e “mente colectiva” de Bateson e outros constituem notícias dispersas de que o outro foragido da ciência moderna, Deus, pode estar em vias de regressar. Regressará transfigurado, sem nada de divino senão o nosso desejo de harmonia e comunhão com tudo o que nos rodeia e que, vemos agora, é o mais íntimo de nós.»
Portanto, segundo BSS, «Deus» voltará (onde esteve entretanto, BSS não nos diz; mas que a ciência foi mazinha para «Ele», lá isso foi…). Sendo um «Deus» tão diferente do original (judaico/cristão/muçulmano), seria da mais elementar honestidade chamá-lo por outro nome. É que, ao contrário do que assumem os pós-modernistas, não se pode alterar o significado das palavras à medida das necessidades argumentativas, sob risco de acabarmos por não nos entender uns aos outros. E o «desejo de harmonia e comunhão» de BSS também pode ser satisfeito ouvindo música ou vendo um quadro, o que não faz de Wagner ou de Van Gogh «deuses». Quando muito, sê-lo-iam em sentido figurado, não no sentido tradicional e exacto do termo.
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