Outro exemplo do relativismo católico é a defesa supostamente inflexível de uma (vaga) «lei natural», que hoje nos dizem proscrever a homossexualidade, mas que até ao ano muito recente de 1878 não impedia a ICAR de encorajar as castrações praticadas em crianças com o objectivo de fazer eunucos que abrilhantassem, em tons agudos, os coros do Vaticano. Uma castração parece-me uma violação da «lei natural» (entendida, por mim, como o respeito pelas características inatas do animal humano) muito mais óbvia do que a homossexualidade. Novamente, a ICAR aproximou-se neste caso de um princípio ético, a integridade da pessoa humana, que se afirmara em oposição ao catolicismo.Deve acrescentar-se que ainda em 1866 Pio 9º defendia que a escravatura «de forma alguma é contrária à lei natural e divina» e que a liberdade de culto devia ser negada aos não católicos. Também aqui a ICAR relativizou a doutrina, principalmente a partir do Concílio Vaticano 2º.
Conclui-se portanto que a ICAR é relativista na doutrina ética e mesmo nos dogmas, ou seja, adapta-se aos tempos e aos costumes, no que não difere, aliás, de outras instituições humanas.
Formalmente, é claro que a ICAR não é relativista quando afirma que a origem da sua doutrina é divina e portanto exterior ao mundo a que todos temos acesso pelos sentidos e pela razão, e neste aspecto assemelha-se ao Islão. No entanto, as únicas «verdades intemporais» que a ICAR verdadeiramente perpetua (no sentido de as manter quase inalteradas desde a concepção, histórica e culturalmente relativa, da doutrina católica) limitam-se a extravagâncias como a «ressurreição» de JC, a presença «real» de JC no pão e no vinho da missa e a imortalidade da «alma». Todas estas «verdades intemporais» são disparates evidentes que qualquer adolescente com um mínimo de formação científica percebe que não passam, numa visão benigna mas herética, de metáforas. No entanto, ao manter estes dogmas a ICAR procede a outro tipo de relativização, a relativização da realidade física. Acontece que a realidade material, o mundo físico, não é de todo relativizável, ao contrário do que argumenta a ICAR (aqui, apoiada pelo pós-modernismo)(*).
A ascensão de Ratzinger ao comando da maior máquina política do mundo significa que acabou, definitivamente, a «abertura» do Concílio Vaticano 2º. As fantasias «ecuménicas», por exemplo, terminarão. Ou qualquer sombra de «diálogo» em matérias éticas. Quem leu os escritos teóricos do homem que chefiou a ex-Inquisição durante 23 anos sabe do que falo.
Não será também um personagem idoso e pouco fotogénico como Joseph a transfigurar-se na vedeta mediática que Karol conseguiu ser. E se Karol Wojtyla podia alegar alguma «resistência» (através de orações?) à ditadura comunista polaca, Joseph Ratzinger não só não se opôs ao regime nazi como até fez o serviço militar no exército alemão, em plena guerra, quando poderia alegar os seus estudos no seminário para evitar o recrutamento. Só desertou duas semanas antes do fim da guerra, já com o exército alemão em desagregação. Deveria ter escolhido, em coerência com o seu militarismo e com os seus tempos na Juventude Hitleriana, o nome de Pio 13º. Mas deve ser supersticioso.
Joseph Ratzinger é suficientemente falho de sentido de humor para falar da música rock como um «contraculto» e para proibir as missas com danças e guitarradas. Tão radical que até fala da homossexualidade como uma «desordem», e tão clerical que considera «pecado grave» votar pelo casamento civil de homossexuais. Se já escrevia o texto de Karol, agora vai lê-lo ele próprio. Sem mediador. Joseph Ratzinger é la cosa vera.
Um dos efeitos indirectos deste papado será, provavelmente, o recrudescimento das igrejas pentecostais na América Latina e dificuldades acrescidas para um catolicismo popular em África ou na Ásia. No entanto, algumas democracias em países do Sul do planeta poderão ser presas fáceis de um clericalismo que, através do Opus Dei, terá pontos de apoio tecnocráticos e financeiros que não se devem subestimar. O catolicismo do terceiro mundo será cada vez menos a fé das massas e cada vez mais o elitismo da massa.
Porém, a batalha decisiva será na Europa, que Ratzinger encara, com um esgar de horror, como «descristianizada». Os católicos que não querem ou não podem sujeitar-se ao integrismo mais estrito da doutrina católica têm pela frente anos de chumbo. Se querem liberdade ou autonomia ética, terão que se afastar da ortodoxia. Recordo a estes católicos que a liberdade de consciência inclui a liberdade de mudar de crença, e que existe liberdade de associação, ou seja, podem perfeitamente fazer uma ICAR-Reformada, com o apoio de teólogos «progressistas» como Hans Küng e Leonardo Boff, os mesmos que Ratzinger anda a perseguir há décadas. Pensem nisso.
A polarização será agora mais clara do que nunca: ou a obediência à maior multinacional da fé, ou a liberdade individual.
No Blasfémias, João Miranda interpela o Diário Ateísta sobre várias questões.
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