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Ricardo Alves

10 de Maio, 2005 Ricardo Alves

Uma ministra com coragem?

Na sequência de uma carta enviada pela Associação República e Laicidade à Ministra da Educação, e após a divulgação de um dossiê documentando algumas situações, ilegais, de presença de crucifixos nas salas de aula e de ocorrência de rituais religiosos católicos em escolas públicas, a Ministra da Educação decidiu inquirir as Direcções Regionais de Educação sobre a persistência dessas situações.
Efectivamente, segundo uma notícia do Portugal Diário, que cita o gabinete da ministra, «foi pedido às DRE que averiguassem no sentido de se saber se as situações descritas se mantêm ou não e em caso afirmativo tomar as devidas providências para que a lei seja cumprida».
Esperemos que haja coragem para fazer cumprir a lei. É só o que se pede.
5 de Maio, 2005 Ricardo Alves

O padre bom é o padre que se cala e obedece

Segundo a Agência Ecclesia, o teólogo brasileiro Leonardo Boff foi insultado pelo presidente da Conferência Nacional de Bispos do Brasil, Geraldo Majella Agnelo, que afirmou que Boff «não é uma pessoa de fé» e lhe chamou «ingrato».
Estas críticas acontecem após Boff ter declarado que o Papa Bento 16º seria «difícil de amar». Deve notar-se que foi Ratzinger, enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que reduziu Leonardo Boff ao silêncio, proibindo-o de escrever e falar.
Agnelo recordou ao «católico progressista» Boff que outras pessoas foram condenadas ao silêncio e que «nunca abriram a boca para denegrir a Igreja, o Evangelho e o Papa». Por outras palavras, mandou Leonardo Boff calar a boca. A ICAR é, antes de tudo, obediência. A liberdade de expressão não é um valor católico, como todos os católicos, «progressistas» ou não, têm obrigação de saber.
29 de Abril, 2005 Ricardo Alves

O catolicismo é uma doutrina relativista

Não falta quem, na sequência da entronização do «anti-relativista» Ratzinger (e movido mais por razões políticas do que teológicas), elogie a ICAR como um baluarte de «verdades intemporais» que supostamente «atravessam o tempo» e pretensamente se opõem ao «relativismo» que atribuem à época contemporânea. Em boa verdade, esta visão simplista esquece que o catolicismo romano, como a generalidade das doutrinas humanas, é relativista.

Efectivamente, a ICAR justificou doutrinariamente, durante a maior parte dos últimos quinhentos anos, a perseguição e o genocídio de minorias religiosas e filosóficas. Hoje, os católicos declaram, e com uma veemência tal que eu sou levado a assumir que estão de boa fé, que essas práticas foram condenadas doutrinariamente. Relativizaram-se portanto os argumentos genocidas e anti-semitas da doutrina católica, relativização essa que foi imposta de fora, mas que nem por isso deixa de ser de saudar.

Outro exemplo do relativismo católico é a defesa supostamente inflexível de uma (vaga) «lei natural», que hoje nos dizem proscrever a homossexualidade, mas que até ao ano muito recente de 1878 não impedia a ICAR de encorajar as castrações praticadas em crianças com o objectivo de fazer eunucos que abrilhantassem, em tons agudos, os coros do Vaticano. Uma castração parece-me uma violação da «lei natural» (entendida, por mim, como o respeito pelas características inatas do animal humano) muito mais óbvia do que a homossexualidade. Novamente, a ICAR aproximou-se neste caso de um princípio ético, a integridade da pessoa humana, que se afirmara em oposição ao catolicismo.Deve acrescentar-se que ainda em 1866 Pio 9º defendia que a escravatura «de forma alguma é contrária à lei natural e divina» e que a liberdade de culto devia ser negada aos não católicos. Também aqui a ICAR relativizou a doutrina, principalmente a partir do Concílio Vaticano 2º.

Um assunto de grande importância dogmática e no qual a relativização da doutrina católica é flagrante é o dogma da Imaculada Concepção de Maria. Trata-se de uma invenção modernista com uns meros 150 anos, que reflecte a adaptação ao papel das mulheres nas sociedades pós-rurais, em que estas deixaram de viver em meios fechados e passaram a ser submetidas às tentações pecaminosas das praças urbanas.

Conclui-se portanto que a ICAR é relativista na doutrina ética e mesmo nos dogmas, ou seja, adapta-se aos tempos e aos costumes, no que não difere, aliás, de outras instituições humanas.
Formalmente, é claro que a ICAR não é relativista quando afirma que a origem da sua doutrina é divina e portanto exterior ao mundo a que todos temos acesso pelos sentidos e pela razão, e neste aspecto assemelha-se ao Islão. No entanto, as únicas «verdades intemporais» que a ICAR verdadeiramente perpetua (no sentido de as manter quase inalteradas desde a concepção, histórica e culturalmente relativa, da doutrina católica) limitam-se a extravagâncias como a «ressurreição» de JC, a presença «real» de JC no pão e no vinho da missa e a imortalidade da «alma». Todas estas «verdades intemporais» são disparates evidentes que qualquer adolescente com um mínimo de formação científica percebe que não passam, numa visão benigna mas herética, de metáforas. No entanto, ao manter estes dogmas a ICAR procede a outro tipo de relativização, a relativização da realidade física. Acontece que a realidade material, o mundo físico, não é de todo relativizável, ao contrário do que argumenta a ICAR (aqui, apoiada pelo pós-modernismo)(*).

Pelo contrário, os princípios éticos podem e devem evoluir, e têm-no feito quase sempre contra a doutrina católica que, como vimos, mantém hoje muito pouco daquilo que defendeu na maior parte dos últimos 1700 anos. O papel da ICAR, historicamente, tem sido de resistência ao progresso político, científico e ético, e por isso a instituição romana é uma favorita dos conservadores políticos e dos obscurantistas. Com Ratzinger, é-o sem ambiguidades.
(*) A ciência permite compreender e descrever a realidade, mas por métodos que tentam (e, geralmente, conseguem) ultrapassar os relativismos culturais, por serem acessíveis a todos independentemente da cultura de origem.
23 de Abril, 2005 Ricardo Alves

25 de Abril em Lisboa com a ARL

A Associação República e Laicidade irá associar-se às celebrações do 25 de Abril em Lisboa, participando no desfile na Avenida da Liberdade.
O ponto de encontro é a estátua a Camilo Castelo Branco, no final da Avenida Duque de Loulé, quase na praça do Marquês de Pombal. Às 15 horas.
Todos os associados e simpatizante são convidados a participar.
19 de Abril, 2005 Ricardo Alves

Fica tudo claro: clericalismo ou liberdade

Detesto as meias-tintas e as ambiguidades. A haver luta, prefiro-a em campo aberto e de olhos nos olhos. Saúdo portanto a eleição de Joseph Ratzinger, que hoje se tornou o tirano perpétuo e absoluto dos católicos. Ou muito me engano, ou recordaremos o nome de Bento 16º com a clareza daqueles momentos em que todos sabemos de que lado estamos.
Ao contrário do que nos diziam alguns vaticanólogos, quem entra Papa não sai cardeal, sai mesmo Papa (e depressa), pelo menos se esse alguém é o membro numerário desejado para Papa pelo Opus Dei. Imagino que a Comunhão e Libertação terá lançado também o seu módico de votos cardinalícios a favor do principal candidato ultraconservador, o que deixará literalmente a apanhar papéis as facções mais moderadas, como a Comunidade de Santo Egídio ou mesmo os Focolari e os Jesuítas.

A ascensão de Ratzinger ao comando da maior máquina política do mundo significa que acabou, definitivamente, a «abertura» do Concílio Vaticano 2º. As fantasias «ecuménicas», por exemplo, terminarão. Ou qualquer sombra de «diálogo» em matérias éticas. Quem leu os escritos teóricos do homem que chefiou a ex-Inquisição durante 23 anos sabe do que falo.

Não será também um personagem idoso e pouco fotogénico como Joseph a transfigurar-se na vedeta mediática que Karol conseguiu ser. E se Karol Wojtyla podia alegar alguma «resistência» (através de orações?) à ditadura comunista polaca, Joseph Ratzinger não só não se opôs ao regime nazi como até fez o serviço militar no exército alemão, em plena guerra, quando poderia alegar os seus estudos no seminário para evitar o recrutamento. Só desertou duas semanas antes do fim da guerra, já com o exército alemão em desagregação. Deveria ter escolhido, em coerência com o seu militarismo e com os seus tempos na Juventude Hitleriana, o nome de Pio 13º. Mas deve ser supersticioso.

Joseph Ratzinger é suficientemente falho de sentido de humor para falar da música rock como um «contraculto» e para proibir as missas com danças e guitarradas. Tão radical que até fala da homossexualidade como uma «desordem», e tão clerical que considera «pecado grave» votar pelo casamento civil de homossexuais. Se já escrevia o texto de Karol, agora vai lê-lo ele próprio. Sem mediador. Joseph Ratzinger é la cosa vera.

Um dos efeitos indirectos deste papado será, provavelmente, o recrudescimento das igrejas pentecostais na América Latina e dificuldades acrescidas para um catolicismo popular em África ou na Ásia. No entanto, algumas democracias em países do Sul do planeta poderão ser presas fáceis de um clericalismo que, através do Opus Dei, terá pontos de apoio tecnocráticos e financeiros que não se devem subestimar. O catolicismo do terceiro mundo será cada vez menos a fé das massas e cada vez mais o elitismo da massa.

Porém, a batalha decisiva será na Europa, que Ratzinger encara, com um esgar de horror, como «descristianizada». Os católicos que não querem ou não podem sujeitar-se ao integrismo mais estrito da doutrina católica têm pela frente anos de chumbo. Se querem liberdade ou autonomia ética, terão que se afastar da ortodoxia. Recordo a estes católicos que a liberdade de consciência inclui a liberdade de mudar de crença, e que existe liberdade de associação, ou seja, podem perfeitamente fazer uma ICAR-Reformada, com o apoio de teólogos «progressistas» como Hans Küng e Leonardo Boff, os mesmos que Ratzinger anda a perseguir há décadas. Pensem nisso.

A polarização será agora mais clara do que nunca: ou a obediência à maior multinacional da fé, ou a liberdade individual.

19 de Abril, 2005 Ricardo Alves

Vitória!

Deu Ratzinger!

18 de Abril, 2005 Ricardo Alves

O «laicismo radical»

O texto reproduzido a seguir foi enviado para publicação ao jornal Público, em resposta a um artigo de Vital Moreira intitulado «Constituição europeia e religião». Nesse artigo, Vital Moreira acusara pessoas indeterminadas de serem «laicistas radicais» e «fundamentalistas» por defenderem a supressão do artigo I-52 da Constituição europeia, ou seja, por defenderem a laicidade da União Europeia. O Público entendeu não publicar esta carta de leitor. Fica aqui reproduzida.
«Senhor Director,
No Público de 12/4/2005, para minha perplexidade,Vital Moreira (VM) acusa os laicistas que se opõem à Constituição europeia de serem «radicais» e «fundamentalistas». VM defende, surpreendentemente, a institucionalização do diálogo europeu com as igrejas (estabelecido no artigo I-52), que apresenta como «condição da democracia participativa» (que prefere à democracia representativa?), mas não desmente que assim se institui um regime europeu semi-confessional distinto da separação das Igrejas do Estado que, felizmente, vigora em Portugal desde a Constituição (laicista «radical» e «fundamentalista»?) de 1976. VM nem sequer manifesta estranheza por a Constituição europeia separar o diálogo com as igrejas e organizações filosóficas do diálogo com as associações da sociedade civil, este já incluído no artigo I-47. Omite igualmente que o artigo I-52, ao também proteger contra a legislação europeia o estatuto de que gozam as igrejas ao nível nacional, evita que a legislação europeia contra a discriminação religiosa ou contra as sonegações de fundos afecte as igrejas, e perpetua os seus privilégios nacionais relativamente a outras associações, tornando assim o dito «diálogo» muito desigual.
Concordo no entanto com VM quando afirma que o Preâmbulo, na sua forma actual, confere à democracia e aos direitos fundamentais uma inspiração parcialmente religiosa inexacta, pois estas liberdades afirmaram-se, historicamente, em oposição ao poder das igrejas.
Tudo somado, espanta-me que VM não veja, mesmo perante o apoio das igrejas europeias ao Tratado Constitucional, que este não é laico. É caso para dizer que o europeísmo, como se diz do amor, pode cegar.
Ricardo Alves
13/4/2005»
14 de Abril, 2005 Ricardo Alves

Laicidade, liberalismo e não só

No Blasfémias, João Miranda interpela o Diário Ateísta sobre várias questões.

  1. Convém esclarecer desde já que respondo a título meramente pessoal. Os redactores do Diário Ateísta não partilham necessariamente todas as posições uns dos outros, nomeadamente (mas não só) quanto à lei francesa que proíbe os símbolos religiosos ostensivos na escola pública.
  2. Parece-me óbvio que a propriedade privada de todos os meios de comunicação social só garantiria a liberdade de expressão dos proprietários respectivos. A Rádio Renascença, por exemplo, jamais dará tempo de antena a uma associação de ateus. Penso portanto que a pluralidade de meios de comunicação social, estatais e não estatais, defende melhor a livre circulação de todas as ideias, embora, evidentemente, reconheça as dificuldades de evitar a instrumentalização da comunicação social estatal pelo poder político do momento (ou pela histeria religiosa do momento, conforme temos visto nos últimos dias). As obrigações estatutárias dos media públicos, apesar de tudo, podem limitar os danos num mundo que nunca será perfeito.
  3. É evidente que «o Estado nada tem com o que cada um pensa acerca da religião» e que «o Estado não pode ofender a liberdade de cada qual, violentando-o a pensar desta ou daquela maneira em matéria religiosa», na frase lapidar de Afonso Costa. Justamente por isso, a escola do Estado não pode impôr a presença de crucifixos aos alunos, ou constrangê-los a participarem em rituais religiosos. Se é evidente que a escolaridade limita algumas liberdades individuais, desde logo ao ser obrigatória, exactamente por o ser deve assumir-se tão neutra quanto possível em tudo o que releva do livre arbítrio individual, como é o caso da crença.
  4. João Miranda engana-se gravemente quando compara as crenças religiosas aos conhecimentos de História ou de Física. A identidade do Presidente da República no dia 24 de Abril de 1974, ou a corroboração da Relatividade Geral pela precessão do periélio de Mercúrio, ou ainda o funcionamento dos órgãos internos de um qualquer mamífero, não são crenças. São factos. A escola pública deve ensinar esses conhecimentos comprováveis e universais, e não propagar crenças religiosas que são, essas sim, arbitrárias e individuais. (E que por isso podem ser erradas para uns e não para outros.)
  5. O liberalismo defendido pelo João Miranda não será inevitavelmente adversário da laicidade. Apenas o será no limite em que defenda o desmantelamento total do Estado e a privatização integral do espaço público. Eu acredito que apenas o Estado pode garantir alguma neutralidade do espaço público. E é evidente que essa neutralidade não deve apenas precaver-se contra a religião, mas também contra as ideologias e os partidos.
12 de Abril, 2005 Ricardo Alves

«O que pensa Alá da Europa?», por Chahdortt Djavann

No actual contexto internacional, poucas mulheres ex-muçulmanas têm a coragem de militar publicamente contra a opressão a que a religião islâmica condena as mulheres. Uma delas, já muitas vezes aqui referida no Diário Ateísta, é a ateia somali Ayaan Hirsi Ali (ler ali o resumo de uma entrevista recente). Outra, é a iraniana Chahdortt Djavann, da qual foi publicado recentemente o livro «O que pensa Alá da Europa?» (da mesma autora, já fora publicado «Abaixo os véus!»).
Neste seu último livro, Chahdortt Djavann contribui para o debate sobre a lei francesa que proíbe os símbolos religiosos ostensivos desmontando os argumentos pró-véu com desassombro e eficácia.
É impiedosa com os «intelectuais europeus» e os «sociólogos “compassivos”», que acusa de serem em parte ingénuos e em parte cúmplices. Obecados com a «identidade cultural» e o «multiculturalismo», estes intelectuais chegam a comparar o piercing e o umbigo ao léu ao uso do véu. Como nos diz, a diferença é que «nenhum regime obrigou à força de kalachnikov a totalidade das mulheres de um país a usar o umbigo ao léu (…) ao passo que o véu (…) é imposto a centenas de milhões de mulheres no mundo inteiro». Djavann recorda àqueles que afirmam que o véu é uma «expressão da liberdade individual», que o véu é «o emblema do sistema islamita», «o símbolo que permite toda a violência e toda a barbárie em relação às mulheres», que as transforma num «atractivo sexual» e «[num] bem exclusivamente reservado aos homens muçulmanos». A nossa autora acrescenta que as raparigas que aparecem na televisão a defender o seu véu como «uma escolha individual» são incapazes de condenar sem ambiguidades atentados às liberdades individuais como a lapidação de mulheres adúlteras. Só não percebe quem não quer: o véu não é só o véu, é o símbolo e a arma de todo um sistema de opressão social e sexual das mulheres.
A autora, que nunca se assume como ateia mas que o sugere ao escrever várias vezes «Alá, se existe (…)», é implacável na denúncia do Islão fundamentalista. Conforme explica, um sistema como o Islão, em que se é livre de entrar, mas em que a saída (a apostasia) é punida com a pena de morte, é um sistema totalitário. Chahdortt Djavann é portanto muito dura com uma religião e uma cultura que, afirma, só poderá evoluir se separar o pensamento filosófico do pensamento religioso. De particular interesse são as páginas que dedica aos islamitas radicados na Europa, que acusa de não quererem saber dos muçulmanos, explorados laboralmente e excluídos socialmente, pois a preocupação exclusiva desses islamitas é o avanço do Islão na sua versão mais integrista. Argumenta que estes islamitas estão em convergência objectiva com a extrema direita lepenista, algo com que não posso deixar de concordar.
Num livro de 74 páginas, escritas de forma escorreita e apaixonada, Chahdortt Djavann denuncia o racismo oportunista de alguns e defende a integração numa democracia laica dos imigrantes de cultura muçulmana (que, na sua maioria, nem serão muito praticantes da sua religião de origem), apostando, subentende-se, em que na Europa possa surgir um islão que desequilibre o fanatismo dos países de origem.
São poucas as mulheres com esta coragem. Convém ouvi-las.
(«O que pensa Alá da Europa», por Chahdortt Djavann. Editorial Teorema, 2005, 74 páginas.)