Qualquer pessoa sensata que perca algum tempo acompanhando os debates, em blogues e caixas de comentários, sobre o Diário Ateísta e os seus artigos, não deixará de se espantar quer com o ódio que por aí grassa aos autores deste blogue, quer com a má-fé que revelam as acusações que lhes são dirigidas.
Seria fastidioso documentar essas acusações. Desde sermos marxistas-leninistas encapotados até termos falta de rigor histórico, passando por insinuações de falta de conhecimentos científicos, de tudo se tem visto. O mais lamentável, mas que demonstra a má-fé de que falo, é que raramente se lêem tentativas de refutação honestas e ponderadas dos nossos argumentos. O que não demonstra necessariamente que temos razão em cada ponto, mas sobretudo que o estado do debate blogo-esférico é lastimável.
Quem nos lê sem preconceitos sabe que partilhamos uma visão materialista do universo, mas que defendemos também as liberdades individuais contra todos os totalitarismos e o espírito crítico contra todas as abordagens dogmáticas.
Se alguém acede ao Diário Ateísta procurando um discurso fanático e verbalmente terrorista, enganou-se no endereço de http. Teria mais sorte na Voz de Fátima, onde esta semana um senhor padre chamado Luciano Guerra imagina uma Europa com «em todos os países e classes sociais, abortos aos milhões, e casamentos de homossexuais aos milhares», em que «os contentores de resíduos hospitalares vão transbordar de crianças mortas» e «corpos esquartejados de bebés vão aparecer em lixeiras de toda a espécie», e mesmo ser «transformados em cremes de amaciar a pele das próprias mães». Este padre fantasia ainda que o «Parlamento de Estrasburgo amanhã poderá vir a impôr a toda a Europa» o casamento de homossexuais, o que mostra que Luciano Guerra não leu o Tratado constitucional (que no seu artigo II-69º define o casamento como uma competência dos Estados membros).
As hipérboles de Luciano Guerra, como as daqueles que falam do «catolicismo perseguido», da «inquisição laica» e da «intolerância ateia», não são mero terrorismo verbal. São também uma forma subtil de revisionismo histórico. Na realidade pretendem, simultaneamente, banalizar os horrores passados (e reais) da responsabilidade da instituição católica, e equivaler-lhes os «horrores» futuros (e fantasiados) que aqueles que a denunciam pretenderiam perpetrar.
Recordemos, a bem da memória histórica, o pogrom de Lisboa em 1506, que foi instigado por padres e em que terão perecido cerca de duas mil pessoas.
Entre as atrocidades reais cometidas em 1506, por católicos, e as atrocidades fantasiadas por Luciano Guerra, quase 500 anos depois, existem semelhanças perturbantes, que eu suspeito que são intencionais. Note-se que era a inquisição que esquartejava as suas vítimas.
O revisionismo histórico, e a deturpação das palavras que o acompanha, devem ser confrontados com a realidade histórica. Em boa verdade, as piores ditaduras portuguesas tiveram sempre o apoio da ICAR, e os piores horrores que se verificaram em terras portuguesas foram perpetrados pela Inquisição. Jamais existiu uma «inquisição laica» e a tolerância religiosa foi imposta à ICAR a partir de fora. A insistência icaresca em ficcionar-se como uma instituição «perseguida» é parte da cultura católica do martírio, mas é também uma forma de revisionismo.
Convém, portanto, ter memória histórica e rigor nas palavras.
Chega, senhores bispos? Se não chega, podemos discutir a questão no plano dos princípios. Eu estou pronto a defender o direito de qualquer católico a que não lhe seja imposto o crescente islâmico, durante a escolaridade que é obrigatória e paga por todos. Do mesmo modo, defendo que o muçulmano não deve ser obrigado a conviver com símbolos de outra religião nesse mesmo espaço. As escolas não são igrejas, nem são propriedade da ICAR. As escolas são para aprender, não são para rezar. Rezem nas vossas igrejas, dêem a catequese a quem o desejar, tenham crucifixos nas igrejas ou nas vossas casas. Os senhores bispos pretendem que a adesão à vossa religião seja livre, ou que resulte da imposição sistemática de símbolos e rituais? Se querem a segunda resposta, a «guerra», caros senhores, não é apenas com os laicistas, é com o regime democrático. Meditai nisso. Portugal não é Timor. E finalmente, se quereis ser referências éticas, deveis abster-vos de palavras belicosas e de mau gosto…
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.