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Ricardo Alves

18 de Outubro, 2005 Ricardo Alves

O criacionismo é ensinado na escola pública portuguesa (2)

…Eu viria a ter um segundo choque quando li o programa da EMRE (disponível no Portal Evangélico): trata-se de um programa aberta e profundamente proselitista, onde se afirma logo de início que os professores de EMRE não devem ser nem «neutros» nem «objectivos», mas sim «convincentes» na difusão das suas crenças. Seguem-se os «Princípios de Referência Teológica (Ideológica)» (sic!), que eu me abstenho de ridicularizar por pura falta de espaço, e o «Credo Apostólico». Ao que me consta (e acredito, porque a impressão que fica da leitura é mesmo essa), o programa é quase integralmente copiado do que se faz na «Escola de Domingo» protestante, ou seja, é um programa de ensino da religião (e até catequético) nem sequer mascarado de «ensino de valores» (que é o que os católicos, prudentemente, dizem fazer na EMRC…). O programa é evidentemente extenso, mas alguns dos «saberes», «objectivos» e «sugestões de actividades» que me parecem mais controversos merecem ser transcritos:
  • «O aluno reconhece a Bíblia como expressão do Pensamento, dos Planos e da Vontade de Deus, Criador e Senhor
  • «O aluno discute as matérias escolares que aprende na Escola, à luz da Revelação bíblica de Deus, e em interdisciplinaridade
  • «O aluno estabelece uma relação pessoal com Deus e com Jesus Cristo, como Senhor e Salvador.»
  • «Identificar a Mensagem cristã, de forma a saber aquilo que ideologicamente coincide com ela e o que dela diverge, em vistas de fazer opções inteligentes
  • «Assumir a sexualidade como um valor enriquecedor da personalidade, da Vida e da relação, com outro ser do sexo oposto
  • «Preparação e concretização de uma Exposição sobre a Natureza e o ponto de vista criacionista.»

Muito mais poderia ser dito sobre a EMRE, mas os factos são claros: ensina-se o criacionismo e valores éticos retrógrados, dá-se orientação política, e industriam-se os alunos para porem em causa o que aprendem, na escola, fora do âmbito da EMRE. A existência na escola pública da Educação Moral e Religiosa acarreta portanto consequências para todos os alunos, evangélicos, católicos, ateus ou outros. É um autêntico cancro, que deveria ser debelado, sob perigo de estarmos a educar na escola pública gerações inteiras expostas à crença de que o mundo foi criado há seis mil anos (com fósseis e tudo) e que o ser humano sem «Deus» está ética e politicamente perdido. Por mim, que sou ateu e tolerante, até podem ensinar estes disparates na privacidade das suas igrejas. Mas será que peço demais quando exijo que o façam fora da escola pública e sem usarem o meu dinheiro?

18 de Outubro, 2005 Ricardo Alves

O criacionismo é ensinado na escola pública portuguesa (1)

No final de Setembro assisti, na Universidade Lusófona, a um debate integrado no colóquio «A religião na escola». Na mesa encontrava-se, entre outras pessoas ligadas ao ensino da religião, a responsável principal da COMACEP (Comissão para a Acção Educativa Evangélica nas Escolas Públicas). Suspeitando eu, há já alguns anos, de que o criacionismo é ensinado nas aulas de «Educação Moral e Religiosa Evangélica» (EMRE, que existe na Escola Pública portuguesa a par das aulas de «Educação Moral e Religiosa Católica», «Educação Moral e Religiosa Baha´i» e – já com quatro turmas em 2004-2005 mas ainda sem programa aprovado – «Educação Moral e Religiosa» das Testemunhas de Jeová) aproveitei a oportunidade para fazer, directamente, a pergunta que me pesava na consciência:

– O criacionismo é ensinado nas aulas de Educação Moral e Religiosa Evangélica?

A resposta, para mim chocante, veio imediatamente, olhos nos olhos:

– Exactamente.

Portanto, meninas e meninos, senhoras e senhores, cidadãs e cidadãos, o criacionismo é admitidamente ensinado nas escolas públicas portuguesas, por professores pagos pelo erário público, e em aulas a que neste momento já assistem quase dois mil alunos em quase duzentas turmas de todos os distritos do continente e ilhas. O obscurantismo criacionista não é exclusivo de países exóticos do outro lado do Atlântico, existe e medra com o apoio do Estado aqui em Portugal…

Posto isto, a questão que qualquer pessoa, se se preocupar com a difusão de uma mentalidade crítica e científica, ou meramente com a realidade factual, imediatamente se coloca, é se será legal ensinar na Escola Pública falsidades cientificamente comprovadas como tal, como é o caso (flagrante) do criacionismo? Em abono da verdade, diga-se que o programa de EMRE foi aprovado há já mais de quinze anos pelo Ministro da Educação da época, Roberto Carneiro (significativamente, ele próprio membro de uma organização católica obscurantista, o Opus Dei). Portanto, foi considerado legal pelo poder político… mas nem por isso deixa de ser uma vergonha e um escândalo.

Os clericais argumentam, em defesa do proselitismo evangélico (ou outro) na Escola Pública, que se trata de uma matéria opcional. Mas, mesmo como opção curricular, será legítimo usar a escola pública e o dinheiro público para fazer proselitismo religioso? Esta é uma questão de princípio, à qual eu, como laicista, respondo «não». Mais ainda, a simples presença da disciplina de EMRE (e respectivos professores) na Escola Pública tem consequências para alunos que não se inscreveram em «Educação Moral e Religiosa» alguma, devido à organização de actividades proselitistas dentro das escolas do nosso país, como foi o caso (escandaloso e mediatizado) da Bíblia Manuscrita Jovem, e como acontece com exposições e passeios organizados pelos professores de EMRE (e EMRC). Portanto, mesmo os filhos de pais ateus ou agnósticos são expostos aos dogmas absurdos do criacionismo evangélico, e aos valores ético-políticos reaccionários que também são inculcados na disciplina referida.

Eu viria a ter a um segundo choque… (continua)

14 de Outubro, 2005 Ricardo Alves

Em defesa da República

As calúnias e falsidades sobre a 1ª República, originalmente inventadas pela propaganda católica e muito inculcadas durante as duas gerações de salazarismo, são hoje tomadas como verdades e repetidas dogmaticamente por muitos, inclusivamente por alguns não católicos.

A falsidade mais comum é a atribuição a Afonso Costa da frase «Em duas gerações Portugal terá eliminado completamente o catolicismo», que no entanto não terá sido por ele pronunciada, conforme provei num artigo anterior. Essa frase é geralmente citada em abono da tese de que a República «perseguiu» a ICAR. Convém notar, a este respeito, que a ICAR se diz perseguida sempre que se legisla num sentido divergente daquele que deseja. Por exemplo, aqui ao lado em Espanha e nos dias de hoje, a ICAR considera-se «perseguida» porque pessoas não católicas podem casar-se através de uma cerimónia não católica e eventualmente serem felizes de uma forma não católica porque homossexual. Em 1911, a ICAR sentiu-se igualmente «perseguida» por legislação que não a afectava directamente, como a lei do divórcio ou a lei da família.

Raramente aqueles que defendem a tese da «perseguição» à ICAR em 1910-26 são concretos quanto à substância dessa «perseguição». Uma das raras tentativas recentes que se encontra na blogo-esfera está num artigo do blogue Semíramis intitulado «5 de Outubro-As Origens». Aí, aponta-se o ter-se medido o crâneo aos jesuítas detidos como exemplo dos «extremos inverosímeis» da famosíssima «perseguição à Igreja Católica». Esconde-se que era esse o procedimento de rotina para todos os detidos, fossem quem fossem, e que nos dias de pólvora da revolução republicana se disparava e largavam bombas a partir dos conventos e contra a população republicana. Extremamente chocante é o total relativismo ético que a autora desse artigo evidencia quando afirma que o acto de medir o crâneo aos detidos jesuítas «não é diferente do que os “cientistas” nazis fizeram com os judeus», o que sugere que para conspurcar a República vale tudo, até comparar o assassinato de milhões de pessoas nas câmaras de gás e à bala com medições ao crâneo a algumas dezenas de jesuítas…

Deixando as congregações religiosas, afirma-se ainda no artigo referido e quanto à substância da «perseguição» à ICAR, que «O Estado passou, de facto, a administrar a Igreja, destruindo-lhe a hierarquia e privando-a de meios de subsistência». Há aqui uma falsidade óbvia, pois a Lei de Separação libertou o Estado da obrigação de «administrar» a dita Igreja, embora o Estado mantivesse a seu encargo a manutenção de muitos edifícios adstritos ao culto católico (o que ainda hoje acontece) e tivessem sido atribuídas pensões aos padres. No entanto, há uma parte de verdade: antes do 5 de Outubro, o clero católico português era um ramo do funcionalismo público e a ICAR era financiada pelo erário público, situação à qual a Lei de Separação veio pôr cobro (em parte!). Porém, não sei como se pode considerar que o Estado tem a obrigação de onerar os cidadãos com impostos a favor de estruturas eclesiásticas. As igrejas, na minha laica opinião, devem sustentar-se a si próprias. E em abono da verdade, diga-se que houve padres católicos que não apenas não consideraram a Lei de Separação como uma «perseguição» como a aceitaram na sua integridade.
Finalmente, seria útil deixar de contemplar a Lei de Separação exclusivamente a partir do ponto de vista dos interesses católicos: a outra religião activa em Portugal em 1910 não apenas saudou efusivamente a República que a vinha tirar da semi-clandestinidade, como considerou que a Lei de Separação ainda deixava a ICAR com muitos privilégios
13 de Outubro, 2005 Ricardo Alves

Prisão por crime de blasfémia no Afeganistão

Mohaqiq Nasar, o chefe de redacção da revista afegã Hoqooq-i-Zan («Direitos das Mulheres») foi detido no dia 29 de Setembro sob a acusação de blasfémia. A detenção terá sido ordenada pelo conselheiro religioso do Presidente afegão (Hamid Karzai) e viola, aparentemente, as condições da lei de imprensa do Afeganistão.

O «crime» de Nasar consistiu em publicar, antes das eleições de 18 de Setembro, um artigo em que defendia alterações à lei penal do seu país, que pune a blasfémia com a morte, o adultério com o apedrejamento e o roubo com a mutilação das mãos (deve notar-se que a Constituição de 2004, redigida após a queda do regime talibã, exige a conformidade de todas as leis com a chária).

O caso está agora nas mãos do Tribunal Supremo do Afeganistão. Deve notar-se que este Tribunal é presidido por um clérigo fundamentalista que, em Agosto de 2003, condenou dois jornalistas à morte pelo crime de blasfémia.

(Fonte: boletim noticioso por correio electrónico da Rationalist International; a notícia do caso de 2003 pode ser lida aqui.)
6 de Outubro, 2005 Ricardo Alves

Afonso Costa nunca disse a frase que lhe atribuíram

«[Afonso Costa] teria dito, em mais de um lugar e de uma ocasião, que com a Lei da Separação se propunha extinguir a religião católica em Portugal, em duas ou três gerações.
(…)
Segundo os autores da campanha, a frase teria sido proferida em três locais diferentes: em Lisboa, na sede do Grémio Lusitano (Maçonaria), em Braga e no Porto, respectivamente em 26 de Março, 24 e 25 de Abril de 1911. (…) Acontece, (…) que do discurso proferido por Afonso Costa no Grémio Lusitano, dada a natureza desta agremiação, não há relato jornalístico, a não ser a versão fantasiada do “Tempo”, logo desmentida por jornalistas que, não nesta qualidade mas como membros do Grémio, assistiram à sessão. Quanto aos discursos que proferiu, nas datas atrás indicadas, em Braga e no Porto, dos quais há relatos nos jornais de Lisboa e do Porto, não figura em qualquer deles a frase e, pelo contrário, figuram afirmações que são o contrário daquela que, sem provas, lhe atribuíram.
(…)
Não há relato jornalístico da frase atribuída ao dr. Afonso Costa e há, publicado na Imprensa, o desmentido.
(…)
“Os reacionários, à falta de argumentos, atribuíram-me a intenção de, servindo-me da Lei da Separação, querer acabar com a religião católica entre nós ao fim de duas ou três gerações! (…) A verdade não é que a República queira mal à religião católica ou outra, mas que aquela entrou numa fase de decadência, em Portugal e na Europa, por culpa dos seus servidores. Isto escrevi eu já em 1895 no meu livro «A Igreja e a Questão Social». A Lei da Separação, em vez de ferir a religião católica, pretende que ela viva à margem da agitação política e procure ressurgir, pura e respeitável, pela fé e bondade dos seus sacerdotes”.
(…)
Repetimos o que ele disse no Grémio Lusitano e foi textualmente o seguinte: “Com o seu aspecto mercantil degradante, consequência da influência dos jesuítas, aspecto a que emprestaram o seu selo as congregações e a Companhia de Jesus, a continuar esta situação, em breve a religião católica se extinguiria”.
»
(Excertos do texto das páginas 147-163 do livro «Desfazendo Mentiras e Calúnias», de Carlos Ferrão.)
4 de Outubro, 2005 Ricardo Alves

O Pluralismo da Igreja

O «Boston.Com News» relata que o padre católico George Lange, de uma igreja da cidade de Westborough no estado norte-americano de Massachussets, foi suspenso das suas funções depois de se recusar a apoiar uma petição contra o casamento homossexual de iniciativa dos bispos daquele estado.

O «crime» do padre Lange consistiu na ousadia de publicar no boletim da igreja um artigo em que cometia o sacrilégio de se manifestar contra a proposta de emenda constitucional que visa proibir o casamento homossexual nos Estados Unidos e que, com o incansável e entusiástico apoio da ICAR, tem vindo a ser implementada pelos mais conservadores e reaccionários sectores das igrejas evangélicas americanas:

«Os padres desta paróquia não podem apoiar esta emenda à Constituição; não lhe reconhecem qualquer utilidade e vêem-na como um ataque a certas pessoas da nossa paróquia, nomeadamente as que são gays».

É perfeitamente típica esta posição dos responsáveis católicos americanos que, coerentemente, diga-se, continuam a preferir os mais reprováveis e retrógrados sentimentos homofóbicos, à liberdade de consciência dos seus próprios membros.

Luis Rodrigues (Random Precision)
3 de Outubro, 2005 Ricardo Alves

Propaganda religiosa em hospital público


No Hospital Dona Estefânia (Lisboa) encontra-se patente há vários meses uma exposição de fotografias sobre os acontecimentos de Fátima (referidos, nas legendas, como «aparições»). A exposição encontra-se de ambos os lados do corredor onde passam os utentes.
Como se sentiriam se eu lá colasse cartazes com a frase «FÁTIMA NÃO DÁ SAÚDE»?
27 de Setembro, 2005 Ricardo Alves

Já vai havendo católicos que me dão esperança

É muito raro encontrar entre os crentes, e muito particularmente entre os crentes católicos, quem assuma uma posição, por mais tímida ou ambivalente que seja, favorável à laicização do Estado. É portanto de saudar a declaração de Miguel Marujo (no penúltimo Terra da Alegria, a 21 de Setembro) pedindo a remoção da «quinquilharia» religiosa (crucifixos, santinhos e demais imagética religiosa) que ornamenta tantas salas de aula de escolas públicas. Efectivamente, há consequências a tirar quer da diversificação crescente da sociedade portuguesa (existem hoje comunidades muçulmanas e hindus em Lisboa) quer da sua secularização (e, para além dos factos sociais, existem leis que estão a ser infringidas…). Porém, convém precisar o sentido em que se usam algumas palavras.
  • Secularização é uma palavra que remete para práticas sociais. Deve usar-se no sentido de perda de importância das referências religiosas na vida quotidiana dos indivíduos ou das sociedades. O decréscimo da percentagem de católicos praticantes ou da percentagem de casamentos religiosos são indícios de secularização, não de laicização.
  • Porque laicidade é um termo que se deve reservar para a esfera política e estatal. Um Estado laico é independente das igrejas e comunidades religiosas e neutro quer quanto às opções filosóficas e religiosas dos cidadãos quer quanto às ideologias. A remoção de símbolos religiosos dos serviços estatais será um avanço na laicização do Estado, como o seria o fim da Educação Moral e Religiosa nas escolas públicas.

E aqui divirjo, num ponto importante, do católico leigo Miguel Marujo: um Estado laico não tem qualquer obrigação de ajudar uma facção dos seus cidadãos (ou várias facções) a difundir a sua religião, e ainda menos integrando uma disciplina confessional no espaço físico e no horário do ensino público. A laicidade significa justamente que o Estado não deve promover nem constranger desnecessariamente qualquer religião. A transmissão da religião pode ser feita (e deverá continuar a sê-lo enquanto houver quem assim o queira) no âmbito associativo. Aliás, isso já acontece, o que torna mais prescindível a duplicação que a Educação Moral e Religiosa constitui face aos cursos fornecidos nas igrejas.

A terminar, devo recordar que somos todos anti-qualquer-coisa. Por mais diálogo inter-religioso que façam, existirão sempre muitos católicos anti-ateísmo, anti-IURD ou anti-Testemunhas-de-Jeová, enquanto existem ateus anti-religiosos e muçulmanos anti-quase-tudo. Justamente para gerir estes conflitos potenciais, o Estado não pode ser nem pró nem anti; pelo contrário, deverá abster-se em matéria religiosa e assim ser efectivamente laico.

26 de Setembro, 2005 Ricardo Alves

Arte proibida em Londres

A Tate Gallery de Londres retirou uma obra de arte intitulada «Deus é grande» de uma exposição por recear que pudesse ofender os muçulmanos. O trabalho artístico retirado consiste numa folha espessa de vidro contendo cópias da Bíblia, do Corão e do Talmude.

A direcção desta conhecida galeria de arte assumiu que a decisão se deveu ao temor de chocar «sensibilidades religiosas». John Latham (autor desta e de outras obras em exibição na exposição) acusou a Tate Gallery de «cobardia».

O único comentário que me ocorre é que, a partir do momento em que nos começamos a censurar a nós próprios, as leis que restringem a liberdade de expressão podem avançar: arrombarão portas abertas.

Fonte: The Observer.