A decisão anglicana, a confirmar-se, será também um fracasso para a diplomacia do Vaticano, que conseguira dos Anglicanos, em Maio de 2005, um documento comum sobre a «virgindade» e a «assunção» de Maria. A ICAR esperava, presumivelmente, que este documento orientasse a Igreja de Estado da Inglaterra na promoção da mulher casta e submissa que os dogmas católicos mais recentes tentam garantir.
A iniciativa da Associação República e Laicidade (ARL) de denunciar situações de realização de rituais religiosos e de permanência de símbolos religiosos em escolas públicas gerou uma polémica esclarecedora.
Significativamente, nem os mais veementes na defesa da perpetuação dessas situações ousam negar que elas são inconstitucionais e ilegais. De facto, constitucionalmente as igrejas estão separadas do Estado e o ensino público não é confessional, todos os cidadãos são iguais perante a lei independentemente das suas convicções religiosas, e segundo a Lei da Liberdade Religiosa o Estado não adopta qualquer religião e ninguém pode ser obrigado a praticar ou a assistir a actos de culto, ou a receber propaganda em matéria religiosa. O entendimento de que a permanência de crucifixos em salas de aula de escolas públicas é inconciliável com os preceitos constitucionais foi aliás reiterado em 1999 pelo Provedor de Justiça, num parecer em que afirmou que «[se trata] de uma situação desconforme com o princípio da separação das confissões religiosas do Estado». Parecendo a situação jurídica consensual, existe porém quem defenda a desobediência à lei.
A resistência ao cumprimento da Constituição da República evidencia que a pedagogia da laicidade do Estado não tem sido adequadamente realizada. Deveria ser óbvio que a laicização do Estado não privará a Igreja Católica, ou qualquer outra comunidade religiosa, de uma única das liberdades que lhes são indispensáveis ao exercício do culto. No entanto, a acreditar em alguns dos opositores à laicização, estas medidas seriam inseparáveis de puros desvarios que se lhes seguiriam inexoravelmente, como a interdição da posse de crucifixos, a implosão de todas as igrejas em território nacional ou a proibição de todo e qualquer culto religioso! Quem tal afirma entende a laicidade – erradamente – como um totalitarismo simétrico do totalitarismo católico e inquisitorial, quando pelo contrário, ao impor limites ao poder do Estado sobre os cidadãos, é a defesa do indivíduo contra todos os totalitarismos religiosos e ideológicos que se assegura. A laicidade implica exactamente que o Estado não professa uma religião nem patrocina qualquer coacção religiosa sobre os cidadãos, ficando assim os cidadãos efectivamente livres de professar uma religião ou nenhuma no domínio privado e associativo, ou mesmo em público desde que no respeito pela possibilidade de outros também o fazerem.
Recorda-se a quem argumenta com a tradição que deve fazê-lo ciente de que esta foi inventada pelo salazarismo em 1936, quando se legislou que «em todas as escolas públicas (…) existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã determinada pela Constituição». E aos que defendem que as maiorias sociológicas podem suspender a aplicação de direitos individuais que, como a liberdade de consciência, estão assegurados constitucionalmente, assinalamos que tomamos esta iniciativa justamente por recebermos numerosas queixas de encarregados de educação e professores que nem sempre desejam revelar, perante as comunidades em que estão inseridos, as suas convicções em matéria religiosa. Permitir que cada comunidade decidisse quais as leis e preceitos constitucionais a aplicar localmente seria demitir o Estado do seu papel de garante dos direitos individuais contra as coacções das maiorias locais, e nomeadamente do direito à privacidade das opções em matéria religiosa.
Finalmente, a posição assumida pelo Ministério da Educação – ao fazer depender a retirada dos crucifixos ou a cessação de rituais religiosos de queixas recebidas – é manifestamente insuficiente. Novamente porque a aplicação de preceitos constitucionais de aplicação geral não pode depender de pedidos pontuais nem da desistência, pelos cidadãos, do direito à privacidade das suas convicções.
Só se o Estado for realmente laico a sociedade poderá ser livre e plural. Só a laicidade garante a liberdade de consciência de todos, os que têm uma qualquer religião e os que não têm nenhuma.
Ricardo Alves (Secretário da Direcção da Associação República e Laicidade)
Nota: texto publicado como carta de leitor no jornal «Público» de 7/1/2006.
Não discuto o direito do cidadão José Policarpo a expressar opiniões, por mais mal fundamentadas ou totalitárias que sejam, sobre os assuntos referidos mais acima. No entanto, quando o «Cardeal Patriarca» se aproveita de uma cerimónia que supostamente seria estritamente religiosa para fazer política, e baseia juízos políticos em dogmas religiosos, sujeita-se a que a igreja em nome da qual fala seja criticada politicamente, pois colocou a religião (um assunto privado) no centro do debate político (e portanto público). É claro que nada há de surpreendente nisto: a ICAR jamais compreendeu a distinção entre religião e política, e as pessoas formadas nessa cultura clericalista farão gala em repetir em 2006 este erro já velho de dezasseis séculos. Mas, sendo assim, não se devem armar em vítimas ou queixarem-se das críticas que ouvem dos anticlericais, porque as merecem plenamente.
Faltando nitidamente a José Policarpo, por herança cultural, as noções éticas e cívicas que lhe permitiriam distinguir o que são preocupações espirituais e o que são temas de debate político, seria porém de esperar que a comunicação social, por obrigação profissional, soubesse fazer a destrinça. Infelizmente, tanto os canais de televisão como a imprensa escrita incluiram as declarações de Policarpo nos espaços de «Sociedade», e não nas secções de «Política» onde indubitavelmente pertencem – o que é lamentável e mostra que também os jornalistas não separam os momentos em que Policarpo fala para os anjos daqueles em que fala para os homens.
A laicidade, tal como a entendo, inclui em si limites que não podem ser ultrapassados. Por exemplo, não se pode obrigar um cidadão a praticar ou não praticar um dado acto religioso. Embora, evidentemente, a liberdade religiosa não possa justificar que violações aos direitos humanos (como mutilações sexuais) não sejam consideradas crime.
(A quem quiser aprofundar a noção de laicidade, sugiro a leitura de «Dieu et Marianne» ou «Qu´est-ce que la laïcité» ou qualquer outro livro de Henri Peña-Ruiz.)
Ambas as informações são factualmente incorrectas e uma simples consulta ao repertório produzido pela Associação República e Laicidade permitiria verificar que existem escolas com símbolos religiosos permanentes distribuídas pela região Norte, pela região Centro, pela região de Lisboa e pela do Alentejo e, sobretudo, permitiria perceber que essas situações foram citadas a título meramente exemplificativo, sendo muitas outras aí deliberadamente omitidas para proteger a privacidade das pessoas que fizeram chegar a informação à associação.
Acrescente-se que a Associação República e Laicidade considera a medida entretanto tomada pelo Ministério da Educação – mandar retirar crucifixos de salas de aula a pedido explícito de encarregados de educação – claramente insuficiente: está constitucionalmente garantido aos cidadãos portugueses o direito de não serem, por forma alguma, postos na situação de terem que revelar convicções (positivas ou negativas) que mantenham, designadamente em matéria religiosa, e o exercício desse direito, que não se compadece com a postura agora adoptada pelo Governo, requer a retirada de todos os símbolos religiosos das salas de aula, garantindo assim, a par da não confessionalidade da escola pública, a separação entre o Estado e as igrejas e a igualdade entre todos os cidadãos independentemente das suas convicções em matéria de religião.
Ricardo Alves (membro da Direcção da A.R.L.)
A primeira estorieta, contada de forma deliberadamente capciosa, refere um artigo de Umberto Eco. A acreditar em JCE, o escritor italiano veria «com crescente preocupação o ataque ao cristianismo em nome do laicismo», um ataque que conduziria a um «vazio» logo preenchido pelo «paganismo», por leituras do «Código Da Vinci» e finalmente pelo fascismo, e ao qual Umberto Eco resistiria fazendo o presépio com o neto. Como rejeito tanto o cristianismo como o pós-modernismo, afoitei-me a procurar o artigo de Umberto Eco. Não foi tempo perdido: na realidade, JCE induziu os seus leitores em erro. O escritor italiano não refere qualquer «ataque do laicismo» ao cristianismo: esmera-se a condenar as tontices pós-modernistas da «Nova Era» e a fúria consumista (o que eu compreendo e aplaudo) e a opôr-lhe a religião, que considera uma necessidade natural da espécie humana (o que eu já não acompanho).
A segunda estorieta diz respeito a David Cameron, o candidato favorito à liderança do Partido Conservador. JCE, fanático dos princípios anglo-saxónicos segundo os quais «o pessoal é político» e a identidade religiosa deve ser explorada para fins eleitorais, elogia Cameron por este «afirmar claramente a sua fé cristã» numa entrevista televisiva. Creio que JCE não se apercebe de que quem legitima a exibição pública do privado, quer este seja o privado religioso ou familiar, justifica também a devassa pública da intimidade de quem assim se exibe, e dos seus desvios aos mandamentos religiosos ou às lealdades conjugais. Também por isso e ao contrário de JCE, parece-me preferível que o debate político se centre em questões de interesse público, e não em sentimentos privados, sejam eles a fé ou a «identidade» religiosa.
A terceira estorieta é sobre outro cronista do Daily Telegraph que, aparentemente, protestou contra a retirada de símbolos religiosos dos espaços públicos, embora não seja claro se as escolas britânicas aí se incluem. Esta estorieta parece-me suspeita, quanto mais não seja porque não é um hábito muito protestante andar a espalhar símbolos religiosos, particularmente crucifixos, pelas escolas.
A quarta estorieta é sobre a Elizabeth, por acaso rainha do Reino Unido, e líder formal da Igreja Anglicana. JCE, que (por preguiça?) não consegue escrever um artigo inteiro sem citar longamente terceiros, transcreve uma passagem de um discurso da senhora, em que ela nos diz que «todas as pessoas (…) podem encontrar significado e propósito no Evangelho de Jesus Cristo». Nem Elizabeth nem JCE parecem querer conceder-nos a possibilidade de recusarmos o cristianismo como referência de vida, uma opção que, no entanto, constitui para muitos de nós uma consequência elementar da liberdade de consciência.
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