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Ricardo Alves

19 de Janeiro, 2006 Ricardo Alves

Nem um cêntimo para as igrejas

A Americans United for Separation of Church and State anunciou quarta-feira que retirou uma queixa judicial contra a autorização de financiamento, pelo Congresso dos EUA, de vinte e uma igrejas católicas da Califórnia.

Deve notar-se que a laicidade do Estado, no que diz respeito ao financiamento de edifícios religiosos, é praticada de forma mais radical nos EUA do que, por exemplo, na França. Assim, enquanto a lei francesa de 1905 garante a propriedade estatal de centenas de igrejas católicas que existiam em território francês nessa data (com o consequente financiamento público da manutenção de edifícios que são usados gratuitamente para o culto católico), nos EUA as igrejas com serviços religiosos regulares não recebem um cêntimo do dinheiro público.

O Governo de George W. Bush tentara contornar a proibição constitucional de apoiar as igrejas alegando que as «missões da Califórnia», fundadas nos séculos 18 e 19 por missionários espanhóis, tinham interesse histórico e monumental. Sem pôr em causa este último, a Americans United apresentou queixa em nome de contribuintes da Califórnia, notando que existem congregações activas em dezanove dessas vinte e uma igrejas. No seu depoimento no Senado dos EUA, Barry Lynn (o Presidente desta associação laicista) baseou a sua argumentação na interpretação da Constituição dos EUA feita pelo Presidente James Madison (considerado o «pai» da Constituição dos EUA), que em 1811 vetou a cedência de um terreno a uma igreja baptista com o argumento de que o dinheiro público não pode ser apropriado pelo Estado para apoiar associações religiosas. A interpretação da Constituição feita em três casos judiciais em 1971 e em 1973 foi também no sentido de que as igrejas se devem sustentar a si próprias, e não viver à custa dos contribuintes.

Aparentemente, a acção judicial inibiu o Congresso dos EUA de avançar com o financiamento das «missões da Califórnia», uma vez que não se registou qualquer movimento nesse sentido. Segundo um dirigente da Americans United, «ganhámos sem ir a Tribunal».
18 de Janeiro, 2006 Ricardo Alves

O mundo das religiões dá mais uma volta

A Igreja Anglicana da Inglaterra poderá, muito em breve, autorizar que as mulheres ascendam a bispo ou arcebispo.

O relatório que propõe esta alteração será discutido em Fevereiro, e poderá provocar uma cisão semelhante à registada em 1994, quando a autorização para que as mulheres fossem sacerdotes levou a que 400 padres anglicanos (alguns dos quais estavam e permanecem casados) se tornassem católicos. Deve acrescentar-se que as igrejas anglicanas dos EUA, do Canadá e da Irlanda (entre outras) já autorizam que as mulheres sejam bispos e que portanto ordenem padres.

Este último avanço para a causa da igualdade dos sexos na sociedade civil isolará ainda mais as igrejas católica ortodoxa e católica romana como derradeiros bastiões, entre as maiores igrejas cristãs, da total misoginia eclesiástica. A variedade católica romana, que demonstra uma tão doentia aversão aos mais naturais impulsos humanos que até proíbe o matrimónio à esmagadora maioria dos seus sacerdotes, é neste particular ainda mais retrógrada do que os católicos ortodoxos.

A decisão anglicana, a confirmar-se, será também um fracasso para a diplomacia do Vaticano, que conseguira dos Anglicanos, em Maio de 2005, um documento comum sobre a «virgindade» e a «assunção» de Maria. A ICAR esperava, presumivelmente, que este documento orientasse a Igreja de Estado da Inglaterra na promoção da mulher casta e submissa que os dogmas católicos mais recentes tentam garantir.

11 de Janeiro, 2006 Ricardo Alves

A próxima campanha política da ICAR

O Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa divulgou hoje a prometida «Nota sobre a procriação medicamente assistida», através da qual Jorge Ortiga, José Policarpo e os restantes bispos católicos tentam ansiosamente intervir num debate legislativo em curso na Assembleia da República. Sumarizo e comento em seguida as exigências políticas apresentadas pelos dirigentes clericais nessa «Nota…».
  1. A CEP exige que a legislação restrinja a casais heterossexuais o direito à procriação medicamente assistida. Segundo os bispos, é mesmo um «dever ético» impedir as pessoas sozinhas ou os casais homossexuais de terem filhos por fecundação assistida. Depreende-se que será também um «dever ético» impedir essas pessoas de procurarem a felicidade de qualquer outra forma que os bispos católicos não aprovem.
  2. A CEP exige que se interdite a doação de esperma ou óvulos, para que não haja «dissociação entre paternidade genética e social». Registe-se que tão desastrado é o argumento que a CEP encontrou para repudiar a generosidade de quem ajuda outrem a ter filhos que, se fosse levado a sério, implicaria a proibição da adopção!
  3. A CEP exige que se proíba o «recurso a mães portadoras», devido ao potencial de «conflito» que esta situação demonstrou «noutros países». Neste ponto, os bispos católicos voltam a rejeitar liminarmente as práticas potencialmente generosas que não compreendem.
  4. A CEP exige ainda que se «[evite] a existência de embriões excedentários» e, se existirem, que se proíba a investigação científica nestes. Curiosamente, os bispos católicos nada dizem quanto à possibilidade de a investigação em embriões vir a melhorar vidas. Não é, nitidamente, a qualidade de vida das pessoas que preocupa estes clericais.
Que a ICAR portuguesa se empenharia na luta contra o direito de ter filhos por fecundação assistida, já fora anunciado por José Policarpo na homilia de ano novo, que foi invulgarmente politizada, mesmo para os padrões habituais da ICAR. Como expliquei na altura, não discuto o direito da ICAR a falar de política, tal como não discuto o direito às liberdades de associação e de expressão da Associação Portuguesa de Satanismo ou da Federação Espírita Portuguesa, mas assinalo que a postura clerical de quem se acha patrono da ética e consultor permanente obrigatório do poder legislativo é perigosa para a democracia. E é perigosa porque a ICAR é uma organização autoritária (ninguém elegeu Ortiga e Policarpo: foram nomeados por um ditador estrangeiro), totalitária (pretende limitar a liberdade em assuntos íntimos que só dizem respeito aos próprios) e com princípios éticos duvidosos (veja-se a leveza com que os bispos condenam a procura de felicidade e a generosidade daqueles que não compreendem). Em vez de opinarem sobre assuntos éticos complexos, os bispos fariam melhor em dedicar-se, por exemplo, à missa.
8 de Janeiro, 2006 Ricardo Alves

Laicidade, igualdade e privacidade

A iniciativa da Associação República e Laicidade (ARL) de denunciar situações de realização de rituais religiosos e de permanência de símbolos religiosos em escolas públicas gerou uma polémica esclarecedora.

Significativamente, nem os mais veementes na defesa da perpetuação dessas situações ousam negar que elas são inconstitucionais e ilegais. De facto, constitucionalmente as igrejas estão separadas do Estado e o ensino público não é confessional, todos os cidadãos são iguais perante a lei independentemente das suas convicções religiosas, e segundo a Lei da Liberdade Religiosa o Estado não adopta qualquer religião e ninguém pode ser obrigado a praticar ou a assistir a actos de culto, ou a receber propaganda em matéria religiosa. O entendimento de que a permanência de crucifixos em salas de aula de escolas públicas é inconciliável com os preceitos constitucionais foi aliás reiterado em 1999 pelo Provedor de Justiça, num parecer em que afirmou que «[se trata] de uma situação desconforme com o princípio da separação das confissões religiosas do Estado». Parecendo a situação jurídica consensual, existe porém quem defenda a desobediência à lei.

A resistência ao cumprimento da Constituição da República evidencia que a pedagogia da laicidade do Estado não tem sido adequadamente realizada. Deveria ser óbvio que a laicização do Estado não privará a Igreja Católica, ou qualquer outra comunidade religiosa, de uma única das liberdades que lhes são indispensáveis ao exercício do culto. No entanto, a acreditar em alguns dos opositores à laicização, estas medidas seriam inseparáveis de puros desvarios que se lhes seguiriam inexoravelmente, como a interdição da posse de crucifixos, a implosão de todas as igrejas em território nacional ou a proibição de todo e qualquer culto religioso! Quem tal afirma entende a laicidade – erradamente – como um totalitarismo simétrico do totalitarismo católico e inquisitorial, quando pelo contrário, ao impor limites ao poder do Estado sobre os cidadãos, é a defesa do indivíduo contra todos os totalitarismos religiosos e ideológicos que se assegura. A laicidade implica exactamente que o Estado não professa uma religião nem patrocina qualquer coacção religiosa sobre os cidadãos, ficando assim os cidadãos efectivamente livres de professar uma religião ou nenhuma no domínio privado e associativo, ou mesmo em público desde que no respeito pela possibilidade de outros também o fazerem.

Recorda-se a quem argumenta com a tradição que deve fazê-lo ciente de que esta foi inventada pelo salazarismo em 1936, quando se legislou que «em todas as escolas públicas (…) existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã determinada pela Constituição». E aos que defendem que as maiorias sociológicas podem suspender a aplicação de direitos individuais que, como a liberdade de consciência, estão assegurados constitucionalmente, assinalamos que tomamos esta iniciativa justamente por recebermos numerosas queixas de encarregados de educação e professores que nem sempre desejam revelar, perante as comunidades em que estão inseridos, as suas convicções em matéria religiosa. Permitir que cada comunidade decidisse quais as leis e preceitos constitucionais a aplicar localmente seria demitir o Estado do seu papel de garante dos direitos individuais contra as coacções das maiorias locais, e nomeadamente do direito à privacidade das opções em matéria religiosa.

Finalmente, a posição assumida pelo Ministério da Educação – ao fazer depender a retirada dos crucifixos ou a cessação de rituais religiosos de queixas recebidas – é manifestamente insuficiente. Novamente porque a aplicação de preceitos constitucionais de aplicação geral não pode depender de pedidos pontuais nem da desistência, pelos cidadãos, do direito à privacidade das suas convicções.

Só se o Estado for realmente laico a sociedade poderá ser livre e plural. Só a laicidade garante a liberdade de consciência de todos, os que têm uma qualquer religião e os que não têm nenhuma.

Ricardo Alves (Secretário da Direcção da Associação República e Laicidade)

Nota: texto publicado como carta de leitor no jornal «Público» de 7/1/2006.

2 de Janeiro, 2006 Ricardo Alves

Policarpo reincide em meter-se em política

Na sua homilia de 1 de Janeiro, José Policarpo, designado «Cardeal Patriarca de Lisboa» pela Igreja Católica de Roma, tentou marcar a agenda política portuguesa pronunciando-se, de um só fôlego, contra o aborto, contra as mães solteiras, contra a investigação científica sem autorização clerical, contra a adopção por casais de pessoas do mesmo sexo, e contra a legislação sobre procriação medicamente assistida que está em discussão na Assembleia da República:
  • «Isso exige que os valores éticos, defensores da dignidade do homem, estejam presentes no próprio processo científico e, sobretudo, na sua aplicação prática à vida dos homens e das sociedades. (…) O momento presente da nossa sociedade portuguesa oferece-nos um exemplo preocupante: a preparação de legislação, aliás necessária, que regule as potencialidades que a ciência oferece à fecundação assistida. A dignidade da procriação humana, ligada à família e ao amor, os direitos inalienáveis do nascituro, entre os quais sobressai o direito de ter uma família, com um Pai e uma Mãe, sobrepõe-se, do ponto de vista moral, ao entusiasmo de aplicar, ao sabor dos critérios individuais, todas as possibilidades que a ciência abriu. Do mesmo modo que a dignidade do embrião humano, cujos excedentes devem e podem ser evitados pelo próprio processo técnico-científico, não permite que seja alvo, enquanto vivo, de qualquer investigação, por mais promissora que seja.»

Não discuto o direito do cidadão José Policarpo a expressar opiniões, por mais mal fundamentadas ou totalitárias que sejam, sobre os assuntos referidos mais acima. No entanto, quando o «Cardeal Patriarca» se aproveita de uma cerimónia que supostamente seria estritamente religiosa para fazer política, e baseia juízos políticos em dogmas religiosos, sujeita-se a que a igreja em nome da qual fala seja criticada politicamente, pois colocou a religião (um assunto privado) no centro do debate político (e portanto público). É claro que nada há de surpreendente nisto: a ICAR jamais compreendeu a distinção entre religião e política, e as pessoas formadas nessa cultura clericalista farão gala em repetir em 2006 este erro já velho de dezasseis séculos. Mas, sendo assim, não se devem armar em vítimas ou queixarem-se das críticas que ouvem dos anticlericais, porque as merecem plenamente.

Faltando nitidamente a José Policarpo, por herança cultural, as noções éticas e cívicas que lhe permitiriam distinguir o que são preocupações espirituais e o que são temas de debate político, seria porém de esperar que a comunicação social, por obrigação profissional, soubesse fazer a destrinça. Infelizmente, tanto os canais de televisão como a imprensa escrita incluiram as declarações de Policarpo nos espaços de «Sociedade», e não nas secções de «Política» onde indubitavelmente pertencem – o que é lamentável e mostra que também os jornalistas não separam os momentos em que Policarpo fala para os anjos daqueles em que fala para os homens.

21 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

O regresso da luz está garantido

No hemisfério norte do nosso planeta(*), o dia de hoje será o mais curto do ano, e a noite será a mais longa do ano. A repetição cíclica destas ocorrências, desde que a humanidade dela se apercebeu, induziu muitos povos a assinalarem esta época do ano com festividades várias. E compreende-se porquê: a progressiva diminuição dos períodos diários de luz causa naturalmente angústia, e causa-la-ia ainda mais em pessoas mais directamente dependentes da natureza para a sua alimentação e aquecimento…

Em locais e épocas históricas em que a humanidade não dispunha, ainda, dos conhecimentos científicos necessários para compreender o porquê do solstício de inverno, os deuses da natureza ou os seus sucessores monoteístas (inventados mais tarde) eram invocados nesta época, como forma de assegurar que o Sol (que parecia estar prestes a cair no horizonte) se voltaria a erguer, e que a luz voltaria.

E no entanto, hoje não sabemos através somente da experiência transmitida pelas gerações anteriores que a luz voltará. Sabemo-lo de ciência certa: que os dias voltarão a alargar-se e as noites a encurtarem-se, até ao final da Primavera. Não é necessário invocar um «deus» qualquer ou celebrar o seu suposto nascimento, repetir frases de livros antigos ou sacrificar animais: o regresso da luz é um facto da natureza que a ciência nos assegura que acontecerá a partir de hoje e que se repetirá ano após ano. Só deixaria de se verificar se o eixo de rotação da Terra se equilibrasse subitamente no plano da translação em volta do Sol, ou se, mais dramaticamente, o nosso planeta saísse da sua órbita ou o Sol se apagasse rapidamente. Sabemos científicamente que nenhum destes acontecimentos se produzirá nos anos mais próximos, e que, de qualquer forma, os rituais religiosos não interferem neles. Portanto, com rituais da época ou sem eles, a luz que nestes dias escasseia e que durante tão poucas horas nos aquece os ossos não nos faltará muito em breve.
Com as certezas da ciência, desejo-vos boas festas.

(*) Os cerca de 25% de leitores do Diário Ateísta que vivem no hemisfério sul farão o favor de, durante a leitura deste texto, se imaginarem seis meses mais à frente (ou mais atrás).
19 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

Colocar os direitos individuais acima das tradições

Segundo as últimas notícias, a menina que esteve prestes a ser excisada na Guiné-Bissau conseguiu chegar a Portugal, onde se reuniu ao seu pai, um guineense que vive e trabalha em Portugal. Os familiares que dela cuidavam no seu país de origem terão estado prestes a proceder ao ritual que inclui a mutilação genital.

A excisão do clítoris é efectuada num contexto cultural muçulmano e africano. Quem a defende na Europa, fá-lo em nome do respeito pela tradição e pela «identidade cultural», afirmando supostos «direitos» das comunidades sobre os indivíduos e alegando, por vezes, a «liberdade religiosa».

Pessoalmente, há já alguns anos que concluí que o combate político dos ateus é, quase sempre, o combate por colocar as leis que garantem os nossos direitos individuais muito acima de qualquer tradição, cultura ou maioria comunitária. Portanto, se reconheço aos pais o direito de educarem os filhos nas convicções religiosas que entenderem, não lhes reconheço o direito de os mutilarem por razões religiosas.

Infelizmente, tudo indica que a mutilação genital femina é praticada em território português (sobre as mutilações genitais masculinas, menos graves mas também condenáveis, não existe a menor dúvida). O assunto é delicado, também por dizer respeito a imigrantes que vivem, muitas vezes, em condições de grande pobreza. Mas transigir com estas práticas bárbaras seria negar aos imigrantes os direitos que nos concedemos a nós próprios. Permitir que estas tradições se perpetuem é, em certos casos, racismo puro.
14 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

A laicidade explicada aos católicos

Na sequência de uma «polémica dos crucifixos» que ficará na história das relações entre o Estado e as igrejas em Portugal, o Diário Ateísta (o blogue de referência para ateus, agnósticos e crentes não clericais) foi descoberto por uma turba de católicos com os quais tenho tentado manter diálogos construtivos – sempre com a minha paciência de ateu que anda desde a escola primária a explicar a católicos e outros que a virtude não depende da crença, e que o Estado não existe para resolver os problemas hipotéticos do «Céu», mas sim os problemas, indubitavelmente reais, da Terra.

Como alguns desses crentes não querem fazer o esforço de confirmar nos arquivos do Diário Ateísta o que afirmo efectivamente, talvez lhes aproveite explicar novamente que defendo a laicidade porque essa é a forma de conciliar a liberdade individual de todos: os que seguem a religião maioritária, os que aderem a uma religião minoritária, e os que não têm religião alguma. Só se o Estado for incompetente em matéria religiosa, se abstiver de se pronunciar sobre religião (quer assumindo símbolos religiosos quer apoiando uma confissão religiosa) é que seremos efectivamente livres de seguir esta ou aquela opção em matéria religiosa. Se assim não for, as confissões religiosas apoiadas pelo Estado terão vantagens indevidas, e a confusão entre espaços estatais – como a escola – e espaços privados – como as igrejas – instalar-se-á.

A distinção entre domínio público e domínio privado parece ser difícil para muitos católicos. E no entanto, é essencial que no domínio público (nos serviços públicos, nomeadamente) não haja qualquer coacção religiosa ou ideológica sobre os cidadãos, e que seja preservado o seu direito à privacidade em matéria de convicção. No domínio privado (e associativo), cada um faz o que quer e como quer, desde que não infrinja os direitos de outrem.

Muitos católicos afirmam, equivocadamente, que assim se interdita a expressão religiosa no «espaço público». No entanto, a laicidade é uma exigência de neutralidade do espaço estatal. As ruas, por exemplo, são um espaço público em que a manifestação de uma religião deve ser livre – desde que reste espaço para outras manifestações do foro privado (como as marchas do «orgulho guei») e para irmos trabalhar, às compras ou passear.

Outro equívoco consiste em confundir laicismo de Estado e ateísmo de Estado. Porém, tirar os crucifixos das escolas públicas, ao contrário do que dizem alguns católicos bastante disparatados, não é impor o ateísmo de Estado: é aprofundar a laicidade escolar. Impor o ateísmo de Estado seria fechar coercivamente as igrejas, proibir a prática do culto mesmo que em privado e colocar um cartaz em cada sala de aula com os dizeres «Deus não existe». Eu não defendo isso (e já agora, não conheço ninguém que o defenda).

A laicidade, tal como a entendo, inclui em si limites que não podem ser ultrapassados. Por exemplo, não se pode obrigar um cidadão a praticar ou não praticar um dado acto religioso. Embora, evidentemente, a liberdade religiosa não possa justificar que violações aos direitos humanos (como mutilações sexuais) não sejam consideradas crime.

Finalmente, a laicidade não é uma opção filosófica entre várias. É um tipo de regime. E não pode ser considerada uma ideologia, tal como a democracia – uma forma de governo – também não é considerada uma ideologia.

(A quem quiser aprofundar a noção de laicidade, sugiro a leitura de «Dieu et Marianne» ou «Qu´est-ce que la laïcité» ou qualquer outro livro de Henri Peña-Ruiz.)

12 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

«A religiosidade nas escolas»

O EXPRESSO de 3-12-05, a propósito da persistência de crucifixos em salas de aula de escolas públicas, refere declarações do gabinete da ministra Lurdes Rodrigues e de um responsável sindical, afirmando que essas situações se verificam exclusivamente na região Norte de Portugal e que não ultrapassam a vintena – o título da notícia é mesmo: «Só 20 escolas têm crucifixos».

Ambas as informações são factualmente incorrectas e uma simples consulta ao repertório produzido pela Associação República e Laicidade permitiria verificar que existem escolas com símbolos religiosos permanentes distribuídas pela região Norte, pela região Centro, pela região de Lisboa e pela do Alentejo e, sobretudo, permitiria perceber que essas situações foram citadas a título meramente exemplificativo, sendo muitas outras aí deliberadamente omitidas para proteger a privacidade das pessoas que fizeram chegar a informação à associação.

Acrescente-se que a Associação República e Laicidade considera a medida entretanto tomada pelo Ministério da Educação – mandar retirar crucifixos de salas de aula a pedido explícito de encarregados de educação – claramente insuficiente: está constitucionalmente garantido aos cidadãos portugueses o direito de não serem, por forma alguma, postos na situação de terem que revelar convicções (positivas ou negativas) que mantenham, designadamente em matéria religiosa, e o exercício desse direito, que não se compadece com a postura agora adoptada pelo Governo, requer a retirada de todos os símbolos religiosos das salas de aula, garantindo assim, a par da não confessionalidade da escola pública, a separação entre o Estado e as igrejas e a igualdade entre todos os cidadãos independentemente das suas convicções em matéria de religião.

Ricardo Alves (membro da Direcção da A.R.L.)

(Texto publicado no Expresso de 10/12/2005 como carta de leitor.)
5 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

Um clerical anglófilo e francófobo

João Carlos Espada (JCE) constitui para mim uma referência intelectual de gabarito comparável a João César das Neves e Boaventura Sousa Santos. Sou um leitor habitual das suas colunas sociais do Expresso, onde fala sempre de clubes britânicos, idas à missa e outros comportamentos exóticos que me fascinam. No seu artigo deste Sábado, JCE defende a permanência dos crucifixos nas salas de aula das escolas públicas a partir de princípios políticos comunitaristas e tradicionalistas. O artigo consiste numa sucessão de estorietas sonsas em segunda mão, das quais não se segue qualquer conclusão óbvia, a não ser a de aceitar submissamente os preconceitos e constrangimentos nelas evocados.

A primeira estorieta, contada de forma deliberadamente capciosa, refere um artigo de Umberto Eco. A acreditar em JCE, o escritor italiano veria «com crescente preocupação o ataque ao cristianismo em nome do laicismo», um ataque que conduziria a um «vazio» logo preenchido pelo «paganismo», por leituras do «Código Da Vinci» e finalmente pelo fascismo, e ao qual Umberto Eco resistiria fazendo o presépio com o neto. Como rejeito tanto o cristianismo como o pós-modernismo, afoitei-me a procurar o artigo de Umberto Eco. Não foi tempo perdido: na realidade, JCE induziu os seus leitores em erro. O escritor italiano não refere qualquer «ataque do laicismo» ao cristianismo: esmera-se a condenar as tontices pós-modernistas da «Nova Era» e a fúria consumista (o que eu compreendo e aplaudo) e a opôr-lhe a religião, que considera uma necessidade natural da espécie humana (o que eu já não acompanho).

A segunda estorieta diz respeito a David Cameron, o candidato favorito à liderança do Partido Conservador. JCE, fanático dos princípios anglo-saxónicos segundo os quais «o pessoal é político» e a identidade religiosa deve ser explorada para fins eleitorais, elogia Cameron por este «afirmar claramente a sua fé cristã» numa entrevista televisiva. Creio que JCE não se apercebe de que quem legitima a exibição pública do privado, quer este seja o privado religioso ou familiar, justifica também a devassa pública da intimidade de quem assim se exibe, e dos seus desvios aos mandamentos religiosos ou às lealdades conjugais. Também por isso e ao contrário de JCE, parece-me preferível que o debate político se centre em questões de interesse público, e não em sentimentos privados, sejam eles a fé ou a «identidade» religiosa.

A terceira estorieta é sobre outro cronista do Daily Telegraph que, aparentemente, protestou contra a retirada de símbolos religiosos dos espaços públicos, embora não seja claro se as escolas britânicas aí se incluem. Esta estorieta parece-me suspeita, quanto mais não seja porque não é um hábito muito protestante andar a espalhar símbolos religiosos, particularmente crucifixos, pelas escolas.

A quarta estorieta é sobre a Elizabeth, por acaso rainha do Reino Unido, e líder formal da Igreja Anglicana. JCE, que (por preguiça?) não consegue escrever um artigo inteiro sem citar longamente terceiros, transcreve uma passagem de um discurso da senhora, em que ela nos diz que «todas as pessoas (…) podem encontrar significado e propósito no Evangelho de Jesus Cristo». Nem Elizabeth nem JCE parecem querer conceder-nos a possibilidade de recusarmos o cristianismo como referência de vida, uma opção que, no entanto, constitui para muitos de nós uma consequência elementar da liberdade de consciência.

No parágrafo final, JCE tira uma conclusão que não surpreenderá os seus leitores habituais: a culpa é dos franceses. Se fosse tudo como em Inglaterra, se todos tentássemos ser lordes britânicos e falar com batatas quentes na boca, se todos espumássemos de raiva cada vez que ouvíssemos falar francês ou falar da França (seja do laicismo ou dos cruássans), então o mundo seria um paraíso. Mais, JCE sugere que a solução perfeita será a adaptação das leis gerais do Estado a todas as «realidades locais» e «circunstâncias particulares», incluindo naturalmente a adaptação da Constituição a todas as tradições religiosas e costumes comunitários. Porém, se seguíssemos esta sugestão, não apenas os crucifixos continuariam nas escolas públicas portuguesas de todo o país, como seriam substituídos na península de Setúbal pela foice e pelo martelo, e na Madeira seriam acompanhados pelo retrato de Alberto João Jardim. Esta perspectiva horroriza-me, mas parece maravilhar JCE. Sugiro a JCE que seja mais ousado ainda e assuma que defende também que as leis que criminalizam as mutilações genitais efectuadas a menores sejam adaptadas às tradições das comunidades. Não é suficiente manter em vigor uma Concordata que em cada alínea faz uma discriminação positiva a favor da ICAR: cada comunidade que faça as suas leis. Com JCE como Grande Timoneiro, voltaremos à Idade Média. Em frente, para trás!