7 de Junho, 2006 Ricardo Alves
A coragem de um crente
-Estes humanos são doidos. Venham mais.
-Estes humanos são doidos. Venham mais.
(continuação)
Como foi explicado no artigo anterior, o método Escrivá de sujeição do indivíduo funciona entre dois pólos: humilhação e obediência. A humilhação tem a finalidade de abater a vontade do indivíduo e de prepará-lo para obedecer. E a enfase na obediência nas palavras de Escrivá é tão chocante quanto a insistência na procura da dor e da humilhação.
Este dever de obediência, que teoricamente é devido a um «Deus» que não dá ordens porque não existe, é transferido para o «director espiritual», que é um personagem importantíssimo no sistema de controlo do Opus Dei.
O «director espiritual» funciona como figura parental de substituição e como «representante de Deus». A sua autoridade é portanto enorme, e é reforçada pela devassa sobre a vida privada praticada através da confissão.
Como é evidente, ao castrar os afectos terrenos (os únicos reais), a recompensa que o Opus Dei oferece em troca encontra-se noutro mundo, ilusório.
Mas o «director espiritual» não é uma ilusão, é bem real, e Escrivá cuidou até de protegê-lo da crítica.
Aliás, nunca se pode sublinhar demais que o pensamento de Escrivá é o oposto exacto do ideal iluminista de pensamento crítico e de liberdade individual. Escrivá encontra-se do lado daqueles que crêem que existem assuntos acima da crítica (a sexualidade de «Cristo», os cartunes do profeta) e que a autonomia pessoal é um perigo.
Tudo o que temos construído nos últimos 200 anos assenta na capacidade de cada indivíduo usar o seu próprio juízo e ter liberdade de escolha. Escrivá defende o oposto de tudo isto, e a sua organização não apenas pratica essa cultura internamente como a tenta difundir na sociedade. Note-se que o Opus Dei aspira a formar «chefes» (empresários, professores universitários, políticos), que coloquem as suas actividades profissionais ao serviço da causa.
O risco de que haja desvios do «Caminho» é constante. E por isso Escrivá insiste bastante em que há um único caminho, e que não se deve resistir a obedecer.
A obsessão de que existe um único caminho é fundamental para manter a ovelha no rebanho, e necessita de uma castração contínua, de uma renúncia a tudo o que não é útil para uma finalidade pretensamente sobrenatural.
O pensamento de Josemaría Escrivá é genuinamente católico. A mesma procura do sofrimento contra o prazer, a mesma defesa da humilhação contra a dignidade e a mesma imposição da obediência contra a liberdade podem ser encontradas nas encíclicas papais e nas práticas populares, por exemplo em Fátima. Mas o pensamento de Escrivá é o catolicismo exacerbado, exponenciado. E o Opus Dei é uma «seita» no mesmo sentido em que o são a Igreja da Cientologia ou o Templo do Sol, porque a vida dos indivíduos é totalmente colocada ao serviço da organização, com a cenoura enganosa do «sobrenatural» e com o chicote bem real das privações sensoriais.
Repito, como já o fiz dezenas de vezes, que as pessoas devem ser livres de aderir ao Opus Dei. No entanto, os pais católicos têm o direito de saber qual é o tipo de «espiritualidade» que se pratica numa organização para a qual os seus filhos adolescentes podem ser recrutados a partir do colégio privado ou da paróquia. E a sociedade tem o direito de se defender denunciando e criticando. Porque não há democracia sem democratas, nem a liberdade pode durar muito se grande parte dos cidadãos obedecem a uma organização autoritária e totalitária.
Os temas recorrentes do livro (para além do apelo à oração e outras trivialidades cristãs) são a humilhação e a obediência. A intenção, como se compreende pela leitura do livro e pelas descrições conhecidas do funcionamento interno da organização, é a mesma de qualquer outra seita em que se submete o indivíduo para melhor o utilizar: destruir tudo o que estrutura a personalidade do sujeito, nomeadamente o seu orgulho e os seus instintos, fazendo dessa terraplanagem da personalidade uma virtude, e recompensando-a com a progressão dentro da organização. As citações seguintes, todas retiradas do livro Caminho, ilustram a glorificação da humilhação segundo Josemaría Escrivá.
Escrivá encoraja os seus seguidores não apenas a humilhar-se ou a fazer humilhar-se por outros (convido o leitor a imaginar a cena…), mas convence-os também a procurar activamente a dor moral e até física que, numa inversão de valores típica do pensamento católico, considera «bendita».
Escrivá encoraja ainda os seus adeptos a reprimirem ferozmente os instintos mais naturais de qualquer animal (comer e procriar), elevando sempre a repressão destes instintos a virtude. É evidente que quer os prazeres da cama quer os prazeres da mesa podem desviar as suas ovelhinhas do rebanho, e «perdê-las» da seita…
Portanto, qualquer membro do Opus Dei se deve privar, em todas as refeições, de enchidos ou de açúcar no café, de água ou de vinho, de sobremesa ou de prato principal, como forma de «mortificação». Assim se assegura que o membro não se distraia perante uma mesa cheia de bons petiscos e bons vinhos. (Felizmente existe o contrário desta vida castradora: as delícias do hedonismo…)
O corpo, porque pode levar o jovem a desviar-se do caminho, é visto, obviamente, como um inimigo a tratar com violência, e a auto-tortura é inevitavelmente considerada uma virtude.
Convencido o jovem de que é «lixo», destruído o seu amor-próprio e controlados os seus instintos mais naturais, o «lixo» pode ser reciclado. Como? Obedecendo…
É neste ponto, quando a personalidade do jovem está submetida, que Escrivá lhe recomenda que se entregue aos pés de um «director espiritual» que o dirija, pense por ele, escolha livros por ele, e possivelmente lhe dê ordens não apenas «espirituais»…
(continua)
Reduzido a contemplar, da prisão, o sucesso da conspiração em que participara, Zacarias gritou «Deus é grande», mas é crível que tenha tido alguma inveja. Na religião com que o iludiram, não apenas se acredita numa «vida eterna» posterior à morte, mas também que morrer matando os inimigos da fé garante a maior das glórias nessa «vida depois da morte», em algumas versões garante mesmo umas dezenas de donzelas virgens. Devido ao seu próprio desleixo, Zacarias falhara a ida para este «paraíso das virgens».
Não tem sido devidamente sublinhado que o 11 de Setembro só foi possível porque há pessoas, na Europa e noutros continentes, que vendem a ilusão de que existe uma «vida depois da morte», e que se apresentam como únicas conhecedoras do caminho para essas maravilhas póstumas. Em Portugal, a maioria desses charlatães são muito respeitados, e a ilusão que vendem raramente é criticada em público. Mas é essa ilusão que permite o bombismo suicida.
Zacarias Moussaoui teve azar. O tribunal não o condenou à morte, que ele acha que ainda seria consideravelmente gloriosa e que lhe abriria o caminho, acredita ele, para a «glória eterna». Foi uma decisão humanista do tribunal, mas foi também a segunda desilusão de Zacarias Moussaoui. Esperemos que tenha agora tempo para compreender que foi enganado, e que a vida vale muito mais do que a morte, mesmo sem «paraíso» nem «virgens».
Em segundo lugar, apresentamos as nossas desculpas aos nossos leitores, e muito particularmente à pequena comunidade que nos acompanha nas caixas de comentários, pela interrupção na emissão. Infelizmente, por enquanto apenas o blogue voltou a estar acessível.
Em terceiro lugar, garanto-vos que embora a causa última da interrupção permaneça desconhecida, nenhum de nós passou a acreditar no sobrenatural…
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.