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Ricardo Alves

3 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Os oxímoros como sinal de desespero argumentativo

Existem crentes que, quando em desespero argumentativo, declamam extravagâncias sobre «a religião do ateísmo» ou «os dogmas da ciência» (outros clássicos são «a anti-religião do laicismo» e «a ciência é uma tradição»).

Quem se compraz com estes oxímoros, fá-lo por se sentir encurralado. Como não temos religião alguma, não podem acusar-nos de seguir a religião errada, e por isso preferem renunciar ao rigor conceptual e proclamar que não ter religião é uma religião. Não compreendem que é um perfeito absurdo chamar fé à ausência de fé, como é outro disparate dizer que rejeitar a tradição é uma tradição, ou que a saúde é uma doença.

29 de Junho, 2006 Ricardo Alves

A indignação de um ateu

Os muçulmanos consideraram-se insultados por alguém ter rabiscado num papel a cara de Maomé. Os católicos dizem-se indignados porque alguém fez um telão com a «Virgem» a entrar numa sanita. E os ateus, será que também se ofendem?

Este ateu responde que sim. Sinto-me indignado quando vejo na rua uma adolescente tapada até só se verem os olhos. (Porque sei que o véu raramente é uma escolha livre e porque compreendo que significa repressão sexual e menorização da mulher.) Sinto-me ofendido quando vejo uma mulher caminhar dois passos atrás do marido, de olhos no chão e submissa. (Porque tenho a convicção, penso que legítima, de que o homem e a mulher devem ter igual dignidade social.) Sinto-me insultado quando os media falam dos eventos de Fátima como se algo de sobrenatural se tivesse passado por lá. (Porque é tratar-nos a todos, portugueses, como se fossemos estúpidos.)

Todas estas situações me indignam. No entanto, não defendo que se proíba o uso do véu na rua, nem que se proíba as mulheres (muçulmanas ou outras) de andarem dois passos atrás do marido, nem que se proíba as pessoas de acreditarem que apareceu em Fátima um «cadáver vivo» com dois mil anos. Convivo com tudo isso, que ofende as minhas convicções mais profundas, desde que me permitam criticá-lo.

Desgraçadamente, há católicos no país onde vivo que não aprenderam a conviver com o que lhes desagrada, e que defendem que as expressões públicas ou até privadas que «ofendam a religião» devem ser criminalizadas, e que enquanto esperam por esse novo Tribunal do Santo Ofício expressam indiferença ou mesmo simpatia por quem comete crimes de vandalismo e furto de objectos blasfemos. Sinceramente, exaspera-me que não compreendam que a liberdade religiosa não desculpa a prática de crimes. Se eu desenhar a cara de Maomé na privacidade da minha casa, esse «insulto» não descriminalizará o meu assassinato por um islamista. Se um grupo de brincalhões insultar uma representação em loiça da «Virgem Maria», qualquer agressão física que lhes seja feita não deixa de ser crime. E alguém dizer em público que é ateu não autoriza os católicos a roubar-lhe a carteira nem belisca a liberdade religiosa dos crentes.
28 de Junho, 2006 Ricardo Alves

Vandalismo e roubo por motivos religiosos?

Nos comentários ao meu artigo «“Me cago en Dios”, uma peça a ver», lê-se o seguinte:

  • «É vdd Carlos.
    Mas se quiser ver o cartaz do “Cago en Dios” diga me que eu conto-lhe onde o deitei fora…
    Segunda-feira, 26 Junho, 2006 22:54:59»

E logo a seguir:

  • «É verdade, meu caro Carlos. Olhe que eu não fui deitá-lo fora, mas era para ir…os meus amigos não me disseram que iam logo e acabei por ir para a casa. Fica para a próxima!
    Luís
    Terça-feira, 27 Junho, 2006 00:54:19»
O José Duque e o Luís Froes são ambos visitas habituais das nossas caixas de comentários. Escrevem no blogue Samurais de Cristo e aparentam ser próximos do movimento católico integrista Comunhão e Libertação. Recuso-me a acreditar que este grupo se esteja a transformar numa célula de acção directa dedicada a vandalizar e a roubar a propriedade alheia. E também não quero acreditar que o Zé e o Luís tenham estado envolvidos nos actos de vandalismo e posterior roubo do telão que, no exterior do teatro d´«A Comuna», anunciava o espectáculo «Me cago en Dios». Espero que assumam na caixa de comentários deste artigo que os comentários reproduzidos mais acima foram uma brincadeira.
27 de Junho, 2006 Ricardo Alves

Paul Touvier, um protegido da ICAR

Paul Touvier cometeu crimes contra a humanidade e foi um protegido da ICAR. Nascido em 1915 numa família muito católica da Sabóia, Paul Touvier adere primeiro à Légion française des combattants e depois ao Service d´Ordre Légionnaire e à Milice Française. Todas estas organizações foram milícias fascistas que apoiaram o Estado colaboracionista de Vichy.

Paul Touvier esteve envolvido na luta contra a Resistência francesa, incluindo a deportação de judeus e a pilhagem dos seus bens. Dirigiu pessoalmente o fuzilamento de sete judeus, e provavelmente também as execuções do presidente da Liga dos Direitos do Homem e da sua mulher.

Em 1946, é condenado à morte por traição. No entanto, consegue fugir em 1947 (após uma detenção por assalto à mão armada) e esconde-se sucessivamente em várias igrejas e mosteiros. Sempre em fuga, começa por casar-se tranquilamente numa capela de Paris em Agosto de 1947, e em seguida tem dois filhos. Este assassino, ladrão e esbirro fascista passará mais de 40 anos da sua vida sempre em fuga, de igreja em igreja e mosteiro em mosteiro, protegido pela sua Santa Madre Igreja Católica Apostólica e Romana.

As condenações prescrevem em 1967 e Pompidou concede-lhe um perdão presidencial em 1971. O escândalo é tal que, perante as queixas de associações de antigos resistentes, Touvier e a sua família voltam novamente à clandestinidade (conventos e igrejas) em 1973. Será condenado por crimes contra a humanidade em 1981. É detido apenas em maio de 1989, num priorado de Nice pertencente aos integristas da Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Morre em 1996, na prisão. Na missa católica em sua honra, o padre diz que Touvier era «uma alma delicada e sensível».

26 de Junho, 2006 Ricardo Alves

«Me cago en Dios»: uma peça a ver

Fui ver o espectáculo teatral «Me cago en Dios», em exibição n´«A Comuna». Resumidamente, é uma encenação cheia de imaginação sobre um texto divertido, mas que não aponta pistas sobre como se vive sem deuses. Gostei, e recomendo a quem tiver estômago para a sátira anti-religiosa. O espectáculo estará em cena até ao dia 2 de Julho.

Quanto à mini-polémica que provocou (já referida pelo Carlos Esperança), demonstra que os católicos continuam parecidíssimos com os muçulmanos: em Madrid registaram-se agressões contra actor e autor, a ICAR espanhola pediu que o espectáculo fosse proibido, e em Portugal os clericais vandalizaram a tela que anunciava a peça, tendo também uma militante clerical sido acompanhada a casa pela PSP por duas vezes. A pulsão totalitária (o impulso irresistível para proibir os outros de fazerem, mesmo que em privado, algo com que não se concorda) é comum ao islão e ao catolicismo, e depois dos casos dos cartunes de Momé, d´«O Código da Vinci» e deste mesmo, só quem não quer é que não vê que a liberdade de expressão é um direito que se conquista e defende contra todas as religiões.

Finalmente, acrescente-se que ao contrário de uma vil calúnia posta a circular pela «civilizacionista» Helena Matos (que não deve ter visto o espectáculo), a peça não isenta o Islão de crítica (como também não isenta os neopentecostais). Um crescente islâmico (nada equivalente à Cruz Vermelha dos cristãos) está bem visível ao longo de todo o espectáculo (assim como outros símbolos religiosos), e referem-se os «milhões de mortos» do islão (e das outras religiões). E a mesquita de Lisboa fica ali do outro lado da Praça de Espanha…

Islão e ICAR, a mesma luta.
21 de Junho, 2006 Ricardo Alves

«O Código Da Vinci» visto por um ateu

Sim, fui ver o filme. Na minha opinião, não é um manifesto anti-cristão, mas apenas um filme de entretenimento como muitos outros que todos os anos saem de Hollywood.

Quem gosta de filmes policiais, com perseguições de carro, pistolas apontadas, enigmas em série e actores competentes, não ficará decepcionado com «O Código Da Vinci». Quem é ateu e espera um manifesto anti-cristão (eu não esperava) sairá defraudado: perto do final, Robert Langdon diz algo como «não interessa se Cristo foi humano ou divino, o importante é que inspirou as pessoas», e recomenda os efeitos tranquilizantes da oração independentemente de se crer ou não. Pressiona ainda Sophie Neveu, que no início era ateia, a seguir esta espiritualidade, no fundo semelhante à de muitos grupos cristãos ditos «liberais», como os quakers ou os unitários. Tudo muito «cristianismo light», portanto.

Então, porquê a polémica? Pelo pouco que sei, por três razões. Primeira, o filme atribui uma descendência a dois personagens do Novo Testamento, «Jesus Cristo» e «Maria Madalena». Talvez por nunca ter sido cristão, não compreendo a aflição que a hipótese de que o semi-deus dos cristãos tivesse tido relações sexuais provoca. O «Deus» cristão em forma humana teria necessariamente que ser um castrado ou um impotente? Ou será a contradição com a misoginia doentia de Paulo de Tarso que incomoda?

Segunda razão para a polémica, o filme refere alguns factos históricos genuínos mas inconvenientes para a religião cristã, como a existência de evangelhos «não canónicos» que contradizem os evangelhos escolhidos no Concílio de Niceia, no ano 325 da nossa era, existência e escolha estas que são desconhecidas pela esmagadora maioria dos católicos. (Creio que o livro, que não li, se alarga mais sobre os evangelhos «não canónicos».)

Terceira razão de polémica (e talvez a mais importante), o filme mostra as auto-flagelações corporais praticadas no Opus Dei, embora com algum exagero (como as cicatrizes e o sangue a escorrer). No entanto, em boa verdade não se pode condicionar comunidades inteiras de pessoas numa cultura de auto-agressão e esperar que nem uma única pessoa exagere (particularmente quando circulam rumores, dentro da própria organização, de que Escrivá se flagelava até deixar as paredes da casa de banho esguichadas com sangue). Mas o nervosismo de certos sectores era desnecessário. Afinal, tanta publicidade até atraiu masoquistas à Obra…

Quanto aos «erros históricos», será verdade que no início do livro Dan Brown atribui uma data errónea (1099) à fundação do «Priorado de Sião», uma criação recente (século 20) de um grupo de brincalhões, e que inclui essa data num conjunto de afirmações apresentadas como «factos». Mas, das duas uma: ou é um recurso estílistico deliberado (muitas obras de ficção arrancam prometendo contar uma estória verídica) ou é efectivamente um erro do autor, que poderia ser corrigido em edições posteriores. Todos os anos são publicados romances históricos com «erros» (recordar «Equador», de Miguel Sousa Tavares), sem provocarem a fúria a que temos assistido. A razão real para a fúria católica deverá ser a ameaça que a narrativa «cristã alternativa» d´«O Código Da Vinci» representa para uma instituição habituada a ter o monopólio da fantasia e dos erros históricos e científicos (nascimentos a partir de virgens, a «ressurreição», a pretensamente incontroversa historicidade de «Jesus Cristo», a suposta fundação de uma nova igreja por «Jesus Cristo», etc.). Convém acrescentar que o filme «O Código Da Vinci» já foi visto por mais de meio milhão de portugueses, que assim têm acesso a factos, dúvidas e especulações que a ICAR lhes escondeu durante séculos, e que portanto lhes podem semear dúvidas…
Acrescente-se que existem centenas de filmes com «erros históricos», fantasias contraditas pela ciência e imprecisões várias. Encontrar «erros» em filmes é um pouco como encontrar pessoas na rua. Só choca quem não percebe que os filmes são ficção e que as pessoas circulam nas ruas. Dois exemplos: existe um filme com Marlon Brando em que os portugueses têm uma colónia nas Caraíbas («erro histórico»…) e oprimem os trabalhadores locais; existe um filme estado-unidense sobre Fátima em que se afirma, logo no início, que as igrejas em Portugal foram «mandadas fechar» em 1910 e que só em 1916 «reabriram algumas na província» («erro histórico» ideologicamente intencionado), e em que aparece uma «Virgem» suspensa no ar a falar à multidão (o que, sendo cientificamente disparatado, é uma fantasia habitual em filmes de ficção científica).
A terminar, é espantoso que ninguém tenha reparado que os países que proibiram a exibição de «O Código Da Vinci» são, salvo uma ou outra excepção, aqueles em que houve protestos violentos contra os cartunes dinamarqueses. A ICAR e o islão, com toda a coerência, são contra toda e qualquer crítica aos seus dogmas, e sabem cooperar quando necessário.
20 de Junho, 2006 Ricardo Alves

O grau zero da liberdade religiosa

No Portugal anterior à revolução republicana de 1910, o culto religioso não católico era tolerado aos estrangeiros, e em espaços privados «sem forma exterior de templo». No entanto, antes de 1820, nem o culto privado praticado por estrangeiros era permitido. Os residentes do reino português ou se conformavam com a religião oficial do Estado, ou iam aquecer os pés (e o resto) nas fogueiras da Inquisição.

Existe, ainda hoje, pelo menos um país em que a situação é rigorosamente esta: o Islão é a religião oficial do Estado, os nacionais são legalmente obrigados a ser muçulmanos, e os estrangeiros nem na privacidade das suas casas têm liberdade religiosa. É a Arábia Saudita.

No dia 9 de Junho, a polícia saudita invadiu uma casa particular onde cerca de cem cristãos se encontravam em oração. No final da cerimónia, prendeu os quatro líderes cristãos que se encontravam no local. À semelhança de ocasiões anteriores, imagina-se que o seu destino seja a prisão, possivelmente a tortura, e finalmente a deportação.

A Arábia Saudita alberga neste momento sete milhões de imigrantes, nem todos originários de países muçulmanos. Residem no país de Meca e Medina quase um milhão de cristãos (sobretudo filipinos mas também etíopes e eritreus) e um número considerável de hindus (principalmente indianos).

Os xiitas sauditas (quase dois milhões de pessoas), apesar de serem muçulmanos são oficialmente discriminados no acesso às universidades e aos empregos públicos, e enfrentam restrições à abertura de mesquitas.

É normal serem conduzidas orações pedindo a morte dos judeus e dos cristãos, mesmo nas grandes mesquitas de Meca e Medina, devendo notar-se que os imãs que conduzem estas orações são (como todos os imãs sunitas do reino) salariados pelo Estado. A polícia religiosa (os mutawwa’in) prende e agride pessoas de minorias religiosas rotineiramente, e detém também muçulmanos sunitas que não se vistam de forma suficientemente conservadora ou que se desloquem acompanhados de pessoas de outro sexo que não sejam familiares.

E não há qualquer perspectiva de melhorias na situação lastimável do reino saudita.
14 de Junho, 2006 Ricardo Alves

Derrota judicial para o ateu Michael Newdow

O militante ateísta Michael Newdow sofreu, na segunda-feira, uma pequena derrota judicial: a sua queixa, avançada em Novembro, de que as palavras «In God we trust» não deveriam estar inscritas na moeda dos EUA foi derrotada em tribunal. O juiz alegou que o lema nacional estado-unidense («confiamos em Deus») «é secular» e «não tem impacto teológico ou ritualista».

Trata-se do mesmo ateu que desafiou em tribunal a declaração de lealdade («pledge of allegiance») dos EUA, conforme noticiado aqui no Diário Ateísta em várias ocasiões.

Michael Newdow já anunciou que vai recorrer desta decisão.
12 de Junho, 2006 Ricardo Alves

Citação do dia (12/6/2006)

«Se todas as realizações dos cientistas desaparecessem amanhã, não haveria médicos que não fossem curandeiros, nem tranporte mais rápido do que o cavalo, nem computadores, nem livros impressos, nem agricultura para além de agricultura de subsistência. Se todas as realizações dos teólogos desaparecessem amanhã, alguém notaria a mais pequena diferença?»

(Richard Dawkins, via National Secular Society.)

(“If all the achievements of scientists were wiped out tomorrow, there would be no doctors but witch doctors, no transport faster than horses, no computers, no printed books, no agriculture beyond subsistence peasant farming. If all the achievements of theologians were wiped out tomorrow, would anyone notice the smallest difference?“)