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Ricardo Alves

17 de Agosto, 2006 Ricardo Alves

«Laicidade e igualdade, alavancas da emancipação»

Henri Peña-Ruiz é um filósofo francês para o qual já chamei a atenção algumas vezes aqui no Diário Ateísta. Na minha opinião, é quem melhor expõe o sentido contemporâneo da laicidade e do combate laicista. O artigo «Laicidade e igualdade, alavancas da emancipação» ficou recentemente disponível, traduzido para português, no site da Associação República e Laicidade. Nele, Peña-Ruiz discute as razões que fundamentaram a sua posição durante o debate sobre a lei que proibiu os sinais religiosos ostensivos, em França. Peña-Ruiz fez parte da Comissão Stasi, nomeada pelo presidente francês e que defendeu a proibição do véu islâmico e outros símbolos religiosos ostensivos…

  • «A propósito das leis políticas, o padre Lacordaire afirmou o essencial: “Entre o forte e o fraco, é a liberdade que oprime e a lei que liberta.” Desse modo, em período de desemprego, a lei que disciplina os despedimentos protege os assalariados contra a ordem da força económica. Numa comunidade de direito, como na República, a lei política, vector do interesse geral, permite subtrair os relacionamentos entre os homens ao império multiforme da força. A laicidade assegura um tal requisito, ao favorecer unicamente o que é de interesse comum. Ela promove, juntamente com a autonomia moral e intelectual das pessoas, a liberdade de consciência, bem como a igualdade plena dos seus direitos, sem discriminação fundada no sexo, na origem ou na convicção espiritual.
    A laicidade nunca foi inimiga das religiões, enquanto estas se afirmam como demandas espirituais e não reivindicam o domínio do espaço público.
    (…)»
26 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Israel não é um Estado laico

O Estado israelita é, desde a sua fundação, confessional. A própria declaração de independência contém numerosas referências religiosas e estabelece Israel como um «Estado judeu». Infelizmente, uma fatia importante e muito influente da população judaica continua a encarar Israel como um Estado criado por razões religiosas e para finalidades religiosas, mesmo apesar da grande diversidade religiosa de Israel (pelo menos um em cada cinco israelitas são muçulmanos ou cristãos) e da secularização dos descendentes de judeus (dos quais metade serão não religiosos). Israel permanece assim a única democracia do mundo em que não existe casamento civil, e o único Estado do planeta que outorga a nacionalidade (um vínculo público e estatal) a quem se converta a uma religião (uma opção privada e espiritual). São ainda generalizadas, particularmente entre os judeus, as mutilações sexuais impostas a menores do sexo masculino sob pretextos religiosos, uma violação grave do direito da criança a preservar a integridade do seu corpo.

O domínio público israelita continua profundamente clericalizado: o casamento, o divórcio e o enterro são competências das comunidades religiosas (judaicas, cristãs ou muçulmanas), que têm os seus próprios tribunais para questões de família, nos quais aplicam as suas anacrónicas leis religiosas (sendo a chária aplicada à comunidade muçulmana, como é evidente). As comunidades reconhecidas pelo Estado são totalmente sustentadas com dinheiro público, embora com discriminação positiva a favor das congregações judaicas. Há escolas diferentes para cada comunidade religiosa, cada uma com a sua religião obrigatória, o que ajuda a manter a segregação social de grupos entendidos como monolíticos. Como se não bastasse, o Ministério do Interior mantém um registo da «nacionalidade» de cada cidadão, que na realidade é um registo da comunidade religiosa a que se pertence pelo nascimento, e os direitos civis são distintos conforme se seja, ou não, considerado judeu pelo rabinato ortodoxo. Está assim dificultado aos cidadãos israelitas o exercício daquela liberdade de consciência básica que já quase tomamos por garantida em Portugal, que consiste em poder renunciar de todo à religião e conduzir a sua vida ignorando os sacerdotes e os seus templos (para nada dizer da privacidade das opções em matéria religiosa). A igualdade entre cidadãos também não existe: o governo discrimina os cidadãos muçulmanos ou cristãos no emprego, na educação e no alojamento, só financia a construção de sinagogas ortodoxas (discriminando negativamente todas as outras confissões religiosas) e tem demolido mesquitas em zonas onde não existe guerra. A comunidade judaica ortodoxa é actualmente a mais beneficiada, tendo mesmo o poder de dizer que imigrantes podem, ou não, tornar-se cidadãos israelitas. Não admira portanto que a tensão entre laicos e clericais na sociedade israelita seja tão grande que 80% da população tema que descambe para a violência.

A ausência de casamento civil é especialmente problemática para os descendentes de judeus, pois apenas os casamentos efectuados pela corrente mais ortodoxa do judaísmo são reconhecidos. O sacramento religioso (e portanto o contrato público) é negado a quem queira casar com um não judeu, ou a quem não frequente as aulas de preparação para o casamento dadas pelos rabis ortodoxos (também profundamente homofóbicos). Também não existe divórcio civil: uma mulher casada pela lei judaica não se pode divorciar se o marido não quiser, e portanto milhares de mulheres ficam amarradas a casamentos que não desejam. Perante esta situação, não é de admirar que milhares de judeus secularizados optem por casar fora do país, nomeadamente em Chipre.

Nas discussões suscitadas pela guerra actual, argumenta-se frequentemente que Israel é um Estado mais democrático do que qualquer dos seus vizinhos, o que é inteiramente verdade. No entanto, as relações entre Estado e religião em Israel são mais parecidas com aquelas dos seus vizinhos muçulmanos do que com as outras que, felizmente, existem na Europa laicizada.

[Publicação simultânea Diário Ateísta/Esquerda Republicana.]
22 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Comunicado da ARL

Protocolo de Estado… e não só!

  1. A Associação Cívica República e Laicidade (R&L) congratula-se com a recente aprovação, em comissão parlamentar, da «Lei do Protocolo de Estado», entendendo que tal norma vem clarificar — de vez, espera-se — um dos aspectos da tradução prática do princípio constitucional republicano que estabelece que o Estado e as Igrejas devem ser/estar devidamente (laicamente) separados.

  2. A iniciativa legislativa que aí conduziu terá, aparentemente, surgido no seguimento ao «reparo» que a Associação R&L tornou público depois da cerimónia de tomada de posse do actual Presidente da República, cerimónia essa onde o Cardeal de Lisboa foi protocolarmente sentado junto dos ex-Presidentes da República.

  3. Lamentavelmente, porém, a Associação R&L constata também que o «Protocolo de Estado», agora em vias de definição legal, ainda salvaguarda a possibilidade da atribuição de lugares de destaque a representantes de instituições religiosas nas cerimónias públicas do Estado, fazendo depender o seu «ordenamento protocolar» da respectiva «representatividade de implantação» (?)…

  4. A esse propósito a Associação R&L faz notar que ao Estado, desejavelmente incompetente em matérias de convicção por força da sua laicidade, deverá obviamente estar vedada a avaliação dessa mesma representatividade.

    A bem da República.

Luis Mateus (Presidente da Direcção da Associação República e Laicidade)

Ricardo Alves (Secretário da Direcção da Associação República e Laicidade)

Comunicado enviado à imprensa no dia 20 de Julho de 2006.

20 de Julho, 2006 Ricardo Alves

O protocolo de Estado e as implantações presumíveis

Foi ontem aprovada em comissão parlamentar a lei de protocolo de Estado. O PS cedeu no articulado final, que terá a seguinte passagem: «as autoridades religiosas, quando convidadas para cerimónias oficiais, recebem o tratamento adequado à dignidade e representatividade das funções que exercem, ordenando-se conforme a respectiva implantação na sociedade portuguesa». Só a inclusão da ordenação segundo a «implantação» satisfez o membro do Opus Dei Mota Amaral, que ao longo de todo o processo legislativo se bateu valorosamente por um lugar de destaque para a confissão religiosa a que pertence.

Sendo clarificador e positivo que o Cardeal Patriarca de Lisboa da ICAR deixe de ter um lugar específico no protocolo de um Estado separado dessa e de outras comunidades religiosas, a avaliação da «implantação» que as «autoridades religiosas» representam anuncia problemas novos que se me afiguram irresolúveis. Em primeiro lugar, as convicções religiosas são individuais, íntimas e inconstantes. Afirmar que, num dado momento, a autoridade religiosa A representa a convicção religiosa de mais cidadãos do que a autoridade religiosa B, é uma suposição que para ser confirmada exigiria controlar os pensamentos de dez milhões de pessoas. Em segundo lugar, para além da impossibilidade física de saber o que pensam as pessoas existe a interdição constitucional de lhes perguntar («ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa»). Finalmente, não podendo inquirir os cidadãos, o Estado terá que confiar às ditas autoridades a avaliação sincera e exacta da sua «implantação». E aí, imagino já o José Policarpo de punhos erguidos para o céu, naquela posição de futebolista que julga que acaba de marcar um golo: «nove milhões, novecentos e noventa e nove mil…». (Recorde-se, no entanto, que em 2001 a ICAR contou, confessadamente, um milhão e oitocentos mil praticantes, o que a torna apenas a maior das minorias religiosas…)

Implicitamente, ficou decidido que a ICAR será a primeira das confissões religiosas «implantadas» no protocolo. O problema é quem se segue na fila. Pessoalmente, estou convencido de que a Sociedade Torre de Vigia é a segunda confissão religiosa em número de praticantes, mas as Testemunhas de Jeová cultivam o distanciamento face ao Estado e à política, o que me parece uma atitude saudável para uma comunidade religiosa (embora a doutrina das transfusões de sangue seja nada saudável), e por isso deixarão a cadeira vazia. Em terceiro e quarto lugar, a menos que a Aliança Evangélica Portuguesa consiga que as dezenas de comunidades que federa se decidam por um representante único, virão o apóstolo Jorge Tadeu da Igreja Maná ou o representante da Igreja Universal do Reino de Deus, qualquer uma das quais terá dezenas de milhar de seguidores. Em quinto lugar, se contarmos os imigrantes ilegais, virá o sheik Munir ou um qualquer banqueiro wahabita. E depois virá a multidão de representantes hindus, budistas, da IOG, da IJCSUD e (porque não?) o delegado português da Federação Pagã Internacional, o representante da Federação Espírita Portuguesa, o dos rastafaris, o da Igreja Portuguesa de Cientologia e o da Associação Portuguesa de Satanismo, sem esquecer o professor Karamba, os simpáticos Bahá’ís e finalmente a senhora da Comunidade Israelita de Lisboa (uma religião com nome de país e com menos praticantes do que o jogo da laranjinha).

O espectáculo que se perspectiva é cortesia desse partido suposto laicíssimo que é o PS, e que, ao contrário dos seus congéneres espanhol ou francês, jamais afronta a ICAR, mesmo na mais pequena das questões. Efectivamente, o deputado Vera Jardim não hesita em sublinhar que existem dois regimes legais para os cidadãos portugueses no que concerne à liberdade de consciência, a Concordata e a Lei da Liberdade Religiosa, e que o primeiro regime legal torna os cidadãos católicos mais iguais do que os outros. No actual momento histórico, em que pelo menos dois terços dos portugueses não praticam religião alguma e em que assistimos a um processo de secularização rápido e sem precedentes, seria de esperar um pouco mais de coragem, no protocolo e em questões mais substantivas…
19 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Marx e a religião

A passagem de Karl Marx em que se afirma que «a religião é o ópio do povo» é frequentemente citada como prova de que o pensamento marxista (e o comunismo, por extensão) seria anti-religioso. No entanto, essa passagem é mal compreendida, talvez por raramente ser citada na sua totalidade.
  • «A miséria religiosa é, por um lado, a expressão da miséria real e, por outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo.»

Note-se que a referência ao ópio, que na época de Marx era uma droga de aristocratas e burgueses ociosos, significa apenas que a religião é o escape, a fuga à «miséria real» disponível para as classes «oprimidas». Ao designar a religião como um «protesto» contra essa miséria e como «coração de um mundo sem coração», Marx demonstra até alguma compreensão pelo fenómeno religioso (senão mesmo simpatia). Nitidamente, se se tivesse que completar a série de metáforas usadas por Marx, facilmente se escreveria que a religião não é causa de opressão, mas sim consequência; que não é a doença, mas sim o seu sintoma.

Continuemos com a Introdução à Crítica da Filosofia em Hegel.

  • «A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e organize a sua realidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, do seu verdadeiro sol.»

Na sequência do seu raciocínio (perfeitamente lógico atendendo às premissas) Marx argumenta portanto que a crítica da religião não é um fim em si próprio, mas apenas um primeiro passo para que o homem se liberte das suas «cadeias». De certo modo, pode dizer-se que Marx subordina a crítica anti-religiosa à luta política socialista, não reconhecendo à primeira mais do que um valor instrumental. No Terceiro Manuscrito Económico e Filosófico (concretamente no capítulo «Propriedade Privada e Comunismo»), Marx é ainda mais claro sobre o carácter secundário da alienação religiosa.

  • «A alienação religiosa como tal, ocorre somente no campo da consciência, na vida interior do homem, mas a alienação económica é a da vida real, e por isso, a sua substituição afecta ambos os aspectos.»

Fica explícito, no trecho anterior, que a «alienação económica» é o caso geral, enquanto a «alienação religiosa» é o caso particular. Marx parecia acreditar que a segunda decorria da primeira. Não concebia, aparentemente, a operação recíproca: que as estruturas eclesiais e a cultura religiosa pudessem ser causa primeira de opressão e de alienação, e que determinassem, pelo menos em parte, a economia. Não se aceita portanto, no marxismo, que o laicismo seja tão ou mesmo mais importante do que o socialismo.

[Publicado previamente no blogue Esquerda Republicana.]

19 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Reino Unido ilegaliza dois grupos islamistas

Duas organizações islamistas, a Al-Ghurabaa e a Saved Sect, foram ilegalizadas pelo governo do Reino Unido. Ambas as organizações são consideradas herdeiras do Al-Muhajiroun, que se dissolvera em 2004 por ordem do seu líder, o clérigo extremista Omar Bakri (conhecido por se referir aos autores do 11 de Setembro como «os dezanove magníficos», autoexilou-se no Líbano no verão de 2005). Omar Bakri, que alegadamente continua a controlar as organizações referidas, formou-se na Irmandade Muçulmana e no Hizb-ut-Tahrir, e é famoso pela propaganda do ódio e pelas suas declarações de apoio verbal ao terrorismo («Os seculares dizem que “o Islão é a religião do amor”. É verdade. Mas o Islão também é a religião da guerra. Da paz, mas também do terrorismo. (…) Maomé disse mais: “Eu sou o profeta que ri quando mata o seu inimigo”.»).

Esta ilegalização é possível porque, segundo a recente Lei de Prevenção do Terrorismo britânica, passou a ser crime pertencer a grupos designados pelo governo do Reino Unido como «simpatizantes do terrorismo», e organizar comícios ou usar roupas que lhes demonstrem apoio. Confesso, muito honestamente, que embora não duvide da premência de proibir e reprimir organizações terroristas, tenho algumas dúvidas sobre a necessidade de proibir grupos que «mesmo que não se envolvendo directamente em actos de terrorismo, dão apoio e fazem declarações que glorificam, celebram ou exaltam as atrocidades cometidas pelos grupos terroristas» e que, no máximo, estarão envolvidos no recrutamento a favor de organizações terroristas.

As associações agora ilegalizadas participaram numa famosa manifestação contra a publicação dos cartunes dinamarqueses em que se gritaram palavras de ordem como «Liberdade vai para o Inferno [Freedom, go to hell]» ou «a Europa pagará, o seu 11 de Setembro chegará [Europe, you will pay, your 9/11 is on the way]», e onde também se exibiram cartazes com os dizeres «Massacrai os que insultam o Islão [massacre those who insult Islam]». Na medida em que o cartaz referido é um apelo ao crime (especificamente, um incitamento ao assassinato), não tenho dúvidas de que constitui um crime, e que quem o exibiu deve ser julgado e condenado, como aliás aconteceu. (Já as palavras de ordem, não me parece que constituam um crime, embora revelem fanatismo e desprezo pela vida humana.) Entre o incitamento à violência e a justificação da violência, haverá uma distinção (que admito que nem sempre seja clara). E a ilegalização de um grupo por decisão governamental (e portanto política) é perigosa, ao contrário de condenações judiciais individuais por crimes tipificados na lei. Acho suficiente processar os membros individuais destas organizações por apelarem à violência. Proibir grupos político-religiosos por «glorificarem o terrorismo», conduz também a proibir, por coerência, todos os grupos neo-nazis (por «glorificarem o nazismo») e alguns grupos católicos (por «glorificarem a Inquisição»). Será mesmo esse o melhor caminho?
17 de Julho, 2006 Ricardo Alves

«A laicidade como princípio fundamental»

São frequentes as confusões sobre aquilo de que se fala quando se fala de laicidade. Muitos católicos confundem frequentemente laicidade com anti-religiosidade, por exemplo. O filósofo nosso contemporâneo que, na minha opinião, melhor tem explicado o sentido moderno do laicismo é Henri Peña-Ruiz. Está traduzido para português, na Associação República e Laicidade, o texto «A laicidade como princípio fundamental da liberdade espiritual e da igualdade», cuja leitura recomendo a todos os que queiram, sem preconceitos, compreender o que defende a Associação República e Laicidade.
  • «Alguns homens crêem em Deus. Outros não. A liberdade pressupõe o carácter facultativo da religião ou do ateísmo. Por isso se usará aqui o termo genérico «opção espiritual», que não favorece nem uma nem a outra versão da espiritualidade. A igualdade pressupõe a neutralidade confessional do Estado e das instituições públicas, para que todos, crentes e não crentes, possam ser tratados sem privilégio nem estigmatização. Assim se alcança a maior justiça no tratamento das diversas opções espirituais. A separação do Estado e de qualquer igreja não significa luta contra a religião, mas sim, simplesmente, vocação para a universalidade, e ao que é comum a todos os homens para lá das suas diferenças. As diferenças não são negadas, mas podem sim viver-se e assumir-se livremente na esfera privada, quer se expresse a nível individual ou a nível colectivo (a confusão entre dimensão colectiva e carácter juridicamente público é um sofisma, pois confunde o que é comum a certos homens e o que é de todos). (…)» (Ler a continuação em «A laicidade como princípio fundamental da liberdade espiritual e da igualdade».)

Aconselho também a leitura do Glossário essencial da laicidade, adaptado de um livro de Étienne Pion, para uma discussão do uso de termos como laico, leigo, laicidade, anticlericalismo ou tolerância.

Publicação simultânea [Diário Ateísta/Esquerda Republicana]

14 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Blair entrega o sistema de ensino a fanáticos religiosos

O sistema de ensino do Reino Unido sempre segregou os alunos segundo a religião. As consequências são conhecidas: na Irlanda do Norte, por exemplo, a existência de escolas separadas para filhos de pais protestantes e filhos de pais católicos tem ajudado a perpetuar uma hostilidade comunitária que poderia ser atenuada se as crianças frequentassem escolas laicas, independentemente da confissão religiosa dos pais. Não contente com a situação que encontrou, o Governo clericalista de Tony Blair, que gosta de lidar com os britânicos de origem muçulmana através de líderes religiosos não eleitos (de preferência a desvalorizar as suas pertenças religiosas no trato político), tem incentivado a abertura ou integração estatal de escolas anglicanas, católicas, muçulmanas, judaicas e sikhs, generosamente financiadas pelo Estado. Não admira portanto que, segundo uma sondagem recente, 81% dos britânicos muçulmanos se considerem mais muçulmanos do que britânicos, enquanto apenas 7% se consideram mais britânicos do que muçulmanos. (Entre os britânicos cristãos, as percentagens correspondentes são de 24% e 59%, respectivamente.)

O sistema de ensino britânico permite aliás que algumas escolas, embora subsidiadas pelo Estado, seleccionem os alunos à entrada em função da religião. Alguns pais, para garantirem a admissão dos filhos nessas escolas (que até podem ser as únicas na localidade em que vivem) vêem-se constrangidos a frequentarem a igreja local, mesmo sendo ateus. Muitas desta escolas religiosas aproveitam para negar a inscrição aos alunos mais pobres, o que lhes permite garantir melhores resultados nos exames finais, e manter a segregação de classe tão típica da Inglaterra.

O governo de Blair não hesita sequer em financiar escolas muçulmanas que separam os alunos segundo o sexo, ou escolas católicas que obrigam à participação em cerimónias religiosas. No último caso, há relatos de alunos obrigados a participar em procissões com a «Virgem Maria», sessões obrigatórias de doutrinação anti-aborto com imagens terroristas de fetos, e expulsões da escola para quem faltar à missa. O secretário de Estado da Educação garantiu, numa resposta à National Secular Society, que o governo clericalista a que pertence tenciona continuar a apoiar as escolas com «oração colectiva obrigatória», porque tal actividade recreativa «desenvolve o espírito de comunidade».

Como se não fosse suficiente, existem também escolas financiadas pelo Estado em que o criacionismo evangélico é quase matéria obrigatória, e em que cada criança recebeu uma Bíblia, para desespero dos encarregados de educação que acham (veja-se lá o descaramento…) que há matéria mais importante para aprender.

Só uma escola pública laica, aberta a todos os alunos independentemente das suas opções em matéria religiosa, e que faça uma distinção clara entre conhecimentos universais e crenças particulares, poderá superar as divisões culturais de origem e preparar os alunos para a vida moderna.
10 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Religião e terrorismo

Fez na sexta-feira um ano que quatro bombistas suicidas mataram 52 pessoas em Londres. Nesse 7 de Julho de 2005, foi divulgado um comunicado de proveniência pouco clara em que uma «Organização Secreta da Al-Qaeda na Europa» se vangloriava pela «vingança contra o governo cruzado e sionista britânico em retaliação contra os massacres que a Grã-Bretanha está a cometer no Iraque e no Afeganistão». Esse comunicado começava «Em nome de Deus…» e terminava com uma citação do Corão.

Posteriormente, foi divulgado em Setembro um vídeo em que Sidique Khan (o líder dos bombistas do 7 de Julho), clarificava que «a nossa motivação principal não vem das comodidades tangíveis que este mundo tem para oferecer. A nossa religião é o Islão, obediência ao único Deus verdadeiro, Alá, e seguir no caminho do profeta final e seu mensageiro, Maomé».

Mais recentemente, a Al-Qaeda reclamou explicitamente a autoria dos atentados de 7 de Julho, num vídeo em que Al-Zawahiri afirma que Shehzad Tanweer e Sadique Khan receberam treino com explosivos em campos da Al-Qaeda. Os objectivos da Al-Qaeda são globalmente religiosos: conseguir que os EUA retirem da Arábia Saudita (por causa dos «lugares santos» de Meca e Medina), esmagar Israel (por ser um Estado judaico mantido «com apoio de Cruzados») e derrubar os regimes árabes que não sejam suficientemente islâmicos.

E no entanto, apesar de toda a evidência de que os terroristas do 7 de Julho, como anteriormente os do 11 de Março e os do 11 de Setembro, como outros islamistas que partilham da ideologia integrista da Irmandade Muçulmana, são todos homens profundamente religiosos que dificilmente matariam se não estivessem convencidos de que existe justificação religiosa para os seus actos, a maior parte da opinião pública persiste em negar a dimensão religiosa quer dessa ideologia integrista quer desses actos terroristas. Essa visão angélica da religião, que resiste a aceitar que se mate acreditando cumprir um dever religioso, é incongruente com uma Europa que sofreu séculos de guerras religiosas, contou milhões de mortos nas inquisições, iniciou Cruzadas e também teve os seus terroristas religiosamente justificados.

A utilização de uma ideologia religiosa para fomentar o ódio de grupo e convencer a matar é, porém, uma constante da história da humanidade. Compreende-se que assim seja: as religiões reveladas autorizam os crentes a imaginarem-se num plano ético superior aos seus semelhantes, e criam a ilusão de que estão integrados numa «ordem cósmica» unindo o natural e o sobrenatural, a vida e a morte, o passado e o futuro. Quando vividas em comunidade, podem até tornar «glorioso» o sacrifício do indivíduo a favor do grupo. A religião pode assim desculpabilizar aquilo que a maioria das pessoas, e até a maioria dos crentes, consideraria, noutras circunstâncias, repulsivo.
5 de Julho, 2006 Ricardo Alves

Quem renuncia a quê?

Alguns religionários afirmam que quem não tem religião é um ser «incompleto» (quiçá «mutilado»), que está «fechado à dimensão transcendental» e a quem portanto «falta qualquer coisa». Compreende-se a intenção, pouco ou nada subtil: apresentar a religião como uma mais-valia pessoal e social e tentar menorizar quem aceita o universo tal como o conhecemos.

Todavia, é quem está «aberto» ao sobrenatural que se fecha à realidade, à lógica, ao rigor intelectual, ao conhecimento comprovado pela ciência e ao próprio bom senso. Acreditar em fantasmas, num «Deus» interventor ou na influência dos astros, se significa «abertura» a alguma coisa, é à fantasia e ao irracional.

Existem seres humanos que convivem bem com a certeza de que só existe o mundo natural (alguns até frequentam as igrejas). E existem seres humanos (que nem sempre frequentam as igrejas) que necessitam de acreditar que existe «mais alguma coisa», para além do universo observável ou para lá da morte. Mas a necessidade de conforto emocional do segundo grupo de pessoas não faz com que o universo deixe de ser o que é.