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Ricardo Alves

27 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Maomé e Cristo juntos contra Mozart

Foi cancelada a apresentação, em Berlim, da ópera de Mozart Idomeneu. A responsabilidade pela decisão cabe à directora da Ópera Alemã, Kirstin Harms, que a justificou com uma informação anónima segundo a qual haveria um «risco com final imprevisível para os funcionários e o público» se a ópera fosse apresentada. O chefe da polícia declarou que não houve uma ameaça concreta.

O líder do Conselho Islâmico Alemão elogiou a decisão, afirmando que «a encenação fere os sentimentos dos muçulmanos», enquanto o presidente da Comunidade turca na Alemanha a criticou, argumentando que «[recomenda] a todos os muçulmanos que aceitem determinadas coisas (…) a arte deve ser livre», o que demonstra que a Europa necessita é de mais muçulmanos educados no laicismo à maneira turca. E acrescento que as minhas convicções jacobinas e o meu gosto artístico estão ofendidos pela atitude de «respeitinho preventivo» da senhora directora da Ópera de Berlim.

Esta ópera de Mozart pode ser lida como uma defesa da rebeldia humana contra os deuses. Na encenação agora cancelada, a frase «os deuses estão mortos» é ilustrada com as cabeças decepadas de Poseidão, Buda, Cristo e Maomé. O encenador (o verdadeiro responsável pelas cabeças cortadas) opõe-se ao cancelamento da ópera e critica a sua directora. Refira-se que quando a ópera esteve em exibição, em 2003, cristãos extremistas presentes no público destruíram as portas da ópera em protesto contra o seu conteúdo iconoclasta. O respeito pela liberdade de expressão, como se verifica, não é um mandamento de religião alguma.

O governo, que mantém a intenção de ensinar a religião muçulmana nas escolas públicas, criticou todavia a decisão da ópera de Berlim.
27 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Cisão na ICAR

O arcebispo Emmanuel Milingo, famoso por se ter casado sem abandonar a ICAR, ordenou no domingo quatro bispos à revelia do Vaticano. Foi excomungado ontem.

Milingo, arcebispo de Lusaca, casara-se em 2001 com Maria Sung numa cerimónia religiosa da Igreja da Unificação (liderada pelo reverendo Moon). Posteriormente, perante o escândalo internacional, o cardeal Bertone trouxera-o de regresso ao celibato eclesiástico, destruindo a sua união matrimonial. No entanto, como o Diário Ateísta relatou, Milingo evadiu-se em Julho passado do convento onde o mantinham em reclusão há quatro anos, voltou à sua legítima esposa, e anunciou a intenção de reconciliar a ICAR com os padres casados.

Do ponto de vista dos regulamentos eclesiais, a situação é formalmente semelhante à ocorrida com o arcebispo Lefebvre: as ordenações episcopais feitas pelo arcebispo Milingo em Washington são ilegítimas, mas válidas. Portanto, temos a cisão que se previra aquando da ascensão ao papado do radical Ratzinger. Neste momento, muitos padres católicos, nomeadamente nos EUA, exercem o seu sacerdócio estando casados. Não é impossível que adiram a esta nova igreja que poderá conciliar o sacerdócio com uma vivência sexual e afectiva mais normal.
20 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

A Ciência não é um "ismo"!

«Muitos argumentos criacionistas traçam um paralelo entre a teoria da evolução e o criacionismo. Chamam-lhe evolucionismo, e dizem que é apenas uma crença, uma questão de fé. É um argumento curioso, pois se posições tão contrárias derivam ambas da fé, então é óbvio que a fé não serve para resolver questões como a origem das espécies. Não é novidade, mas é estranho que os criacionistas queiram salientar a incapacidade da fé em resolver questões científicas.

Felizmente, a ciência não é um “­ismo”, como o criacionismo ou o cristianismo. Os “ismos” caracterizam-se pela crença num conjunto de hipóteses, e por isso facilmente se associam à fé. O criacionismo exige que se aceite como verdade que um deus criou os seres vivos, cada um de acordo com o seu tipo, e assim por diante. A ciência não exige que os seus praticantes se agarrem a uma hipótese em particular, o que é evidente na história das ideias científicas.

Há poucos séculos atrás, a teoria da criação era o modelo consensual da biologia. Um deus tinha criado os animais, tinha havido um dilúvio, e Noé tinha deixado os animais no monte Ararat. Mas algumas observações começaram a pôr em causa este modelo. Como teriam chegado as toupeiras marsupiais à Austrália? E aquelas espécies todas diferentes que viviam cada uma na sua ilha no meio do Pacífico? Muitas perguntas como estas levaram a rever a hipótese da criação, e começaram a surgir modelos de evolução. Erasmus Darwin, o avô do famoso Charles, propôs uma teoria de geração segundo a qual as espécies eram geradas pelo poder criador da matéria orgânica e não directamente por um deus. Mais tarde, Lamarck propôs que as espécies evoluíam herdando características adquiridas. Por exemplo, a girafa que mais vezes esticava o pescoço ficava com um pescoço mais comprido e os seus descendentes nasciam já com o pescoço mais comprido.

Quando Charles Darwin publicou “A Origem das Espécies”, já a biologia aceitava que as espécies evoluíam, e já se tinha rejeitado o modelo antigo das espécies sempre com a mesma forma. O que Darwin criou (e Wallace, independentemente) não foi a ideia de evolução mas sim do mecanismo pelo qual as espécies evoluem: a girafa não fica com o pescoço mais comprido, mas a girafa com o pescoço mais comprido tem mais filhos.

Mas Darwin tinha um problema. A sua teoria exigia que houvesse numa população de girafas com pescoço mais curto e outras com pescoço mais comprido. Ou seja, era necessário haver uma diversidade genética na população para que a selecção natural pudesse operar. Darwin propôs que erros na hereditariedade poderiam gerar esta diversidade, mas nessa altura pensava-se que as características dos pais se misturavam como fluidos contínuos para gerar os filhos, e esse processo de mistura rapidamente eliminaria a diversidade na população.

Esse problema foi resolvido com a redescoberta do trabalho de Mendel. Afinal as características dos pais não se misturam como fluidos, mas sim em pedaços discretos, os genes. Outros problemas também se foram resolvendo. Por exemplo, a geologia na época de Darwin afirmava ser necessário milhões de anos para explicar as formações geológicas, enquanto a física dizia ser impossível o Sol arder tanto tempo. Mas os físicos dessa altura desconheciam a radioactividade, e assumiam que o Sol ardia por processos químicos. Com a descoberta da radioactividade por Becquerel em 1896 o problema resolveu-se.

Este processo continuou por todo o século XX. Diferentes hipóteses, problemas que surgiam, problemas que se resolviam e levantavam novas hipóteses. A teoria da evolução hoje em dia é muito diferente da que Darwin propôs, e o processo não terminou.

E aqui reside a grande diferença entre a ciência e os “ismos”. O criacionismo é a crença num conjunto de respostas, enquanto que a ciência é um processo movido pelas perguntas. O criacionismo é fechado; quem deixar de crer que foi deus que criou os organismos deixa de ser criacionista. A ciência é aberta; eram tão biólogos os que favoreciam o modelo da criação no século XVII como os que favorecem a evolução no século XXI. O criacionismo é uma poça estagnada de crenças. A ciência é uma fonte de novas ideias.»

19 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Jónatas Machado e a Teoria da Informação

«Esta é a quarta parte da série dedicada ao criacionismo, cujos argumentos foram tão bem resumidos pelo artigo de Jónatas Machado (JM) no jornal «O Público» do passado dia 8. Neste episódio veremos o problema da informação:

«Os criacionistas mostram que as mutações acumuladas, além de não criarem informação genética nova, destroem o genoma.»

Em primeiro lugar, temos o problema do sentido em que se usa a palavra «informação». JM ilustrou bem este problema num comentário neste blog:

«Assim como a informação contida nos livros não se confunde com as páginas […] também a informação contida no DNA não se confunde com os ácidos nucleicos […] A mesma pressupõe uma linguagem que dê sentido às sequências (de nucleótidos e demais informação não linear) e lhes faça corresponder operações celulares específicas.»

Isto está errado. Não há uma linguagem que faz corresponder ao Oxigénio e ao Hidrogénio a operação de se juntar para formar água. O que se passa é que as moléculas destes gases reagem espontaneamente em certas condições. Este é exactamente o caso com o DNA, o RNA, as proteínas, e tudo o que acontece dentro das células. São reacções mais complexas, que se encadeiam em grandes redes de processos químicos, mas que se regem pelos mesmos princípios que regem a combustão, a formação de gotas de óleo na água, a dissolução do açúcar na limonada, ou qualquer outro processo deste tipo.

É certo que se fala muitas vezes do código do DNA, do DNA como a linguagem da vida, e outras metáforas. Mas é como os glóbulos vermelhos a falar uns com os outros nos desenhos animados «Era Uma Vez a Vida». É uma forma engraçada de explicar conceitos básicos, mas claramente inadequada a uma análise mais rigorosa. Vamos então pôr de parte esta metáfora infeliz. Estamos a falar de moléculas, e não de textos escritos ou de glóbulos vermelhos que falam.

Pela definição de Ralph Hartley, a quantidade de informação numa sequência é tanto maior quanto mais símbolos diferentes possa ter e quanto mais longa for a sequência. Por isso o DNA tem mais informação quanto mais nucleótidos tiver, ou seja, quanto mais longo for. É bem conhecido que mutações podem alongar o DNA, quando um acidente na cópia faz com que um trecho seja repetido. Assim podemos ver que a informação, neste sentido, aumenta facilmente com as mutações.

É claro que podemos dizer que duplicar trechos não aumenta informação, pois são apenas cópias do que já lá estava. O que nos traz às medidas de informação de Shannon e Kolmogorov. Simplificando, a informação contida numa sequência é tanto maior quanto mais «desordenada» for a sequência. Isto é abusar da teoria, mas não quero tornar a discussão demasiado técnica, por isso vou apelar à intuição do leitor para explicar por exemplos. Imagine uma sequência de 30 As:

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

Isto podia ser escrito de uma maneira mais simples. Por exemplo:

30xA

Ou seja, a sequência de 30 símbolos na verdade tem apenas a informação duma sequência de 4 símbolos. Em geral, quanto mais estruturada e organizada a sequência, mais fácil é de a comprimir em sequências menores, e por isso menos informação ela tem. Uma sequência sem ordem nem estrutura nenhuma, como por exemplo:

AjdljAkSyEFekdHRpJxjwlJqalYaEEoTpCYlsUWlkalkf

não pode ser facilmente abreviada. A consequência disto é que as mutações aleatórias na verdade aumentam a quantidade de informação no DNA, aumento este que serve para alimentar o processo de selecção natural, pelo qual muitas sequências são eliminadas por não beneficiarem os organismos.

Outro problema no argumento que JM apresenta é, mais uma vez, confundir indivíduos com populações. Como JM elaborou num comentário:

«Na verdade, a criação de novas espécies é o resultado de perdas de informação […]. Dentro da categoria Caninus Familiaris [sic] existem 400 subespécies de caninos, embora todos eles com menos informação genética do que os seus ascendentes.[…]. Pensemos, por exemplo, num cão Chihuahua totalmente «careca». […] Embora se esteja aqui perante um caso de adaptação, a verdade é que se está perante perda de informação genética.»

O exemplo que JM escolheu é particularmente infeliz. No Chihuahua há dois tipos de pelagem: pêlo curto e pêlo comprido. O que era no lobo ancestral apenas um fenótipo, tornou-se pela evolução em dois fenótipos diferentes. Todo este exemplo dos cães demonstra um ganho nítido de informação. Inicialmente havia uma espécie, um ancestral recente do lobo cinzento. Hoje em dia há ainda o lobo cinzento (Canis lupus), e a sub-espécie do cão doméstico (Canis lupus familiaris). Como JM diz, e muito bem, as 400 raças diferentes são sub-espécies, e pertencem todas à mesma espécie. Ora o que JM parece dizer é que só se perdeu informação quando uma espécie como o lobo cinzento evoluiu para o lobo cinzento mais todas as 400 raças de cães domésticos. Parece-me que o que JM fez foi, inadvertidamente, dar um excelente exemplo de como a evolução pode aumentar a quantidade de informação presente numa população de organismos. O erro aqui foi (mais uma vez) o de confundir o processo de transformação de populações, que é a evolução, com aquilo que se passa isoladamente com indivíduos (e.g. o coitado do Chihuahua careca).

Outro ponto importante é que a mutação não é um processo dirigido, mas pode ser revertido por outra mutação. Se A sofre mutação e fica B, B pode sofrer mutação e ficar A novamente. Se uma mutação acrescenta um trecho ao DNA, outra pode apagá-lo. Qualquer que seja a definição que usemos, se uma mutação diminui a informação, a mutação contrária aumenta-a. Por isso é obviamente falsa a afirmação que a mutação apenas diminui a informação.

Em suma, quando virem este argumento criacionista da informação, lembrem-se de três coisas:

1- Nem os glóbulos vermelhos falam, nem o DNA é uma linguagem. Pode ficar giro nos desenhos animados ou alguns livros menos rigorosos, mas não é verdade.

2- A evolução é um processo de populações. Se numa população alguns indivíduos perdem o pêlo, o que interessa é que agora na população passou a haver dois tipos de pelagem em vez de apenas um. Ou seja, mais informação.

3- As mutações são reversíveis. Se muda para um lado também pode mudar para o outro, e por isso é absurdo dizer-se que só podem reduzir a informação.»

19 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

A asneira de Ratzinger (telegraficamente)

  1. Por princípio, defendo a liberdade de expressão até para os que não me reconhecem esse direito, como é o caso de Joseph Ratzinger.
  2. Não sei se a já famosa passagem bizantina sobre o Islão foi inserida como uma provocação calculada, ou se foi uma amostra da insensibilidade papal. Inclino-me para a segunda hipótese.
  3. As reacções violentas das organizações islamistas legais (Irmandade Muçulmana, Jamaat-e-islami) indiciaram aquilo mesmo que pretendiam desmentir: que o Islão não inculca a contenção e a tolerância pelos erros e pelas provocações.
  4. Nada disto aconteceria com Karol Wojtyla, que era um diplomata prudente e um entusiasta do diálogo inter-religioso.
  5. A violência actual poderia ter sido evitada se B16 tivesse mencionado a violência pretérita da sua igreja.
  6. Provocação ou erro, Ratzinger recuou. Não haverá ninguém, entre os que o imaginam líder de cruzada, que lhe chame «islamófilo» ou «Chamberlain»?
18 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Jónatas Machado e a Paleontologia

«A terceira parte desta homenagem ao criacionismo, exemplificado pelas críticas de Jónatas Machado (JM) publicadas no passado dia 8 no jornal «O Público». Desta vez, sobre o registo fóssil:

«[…] a grande quantidade de “fósseis vivos” e a existência de biliões de fósseis nos cinco continentes testemunham a ocorrência de um dilúvio global, descrito na Bíblia e em muitas narrativas da antiguidade. Se milhões de espécies animais tivessem evoluído ao longo de milhões de anos, deveríamos encontrar biliões de fósseis intermédios e não apenas a mão-cheia de exemplos altamente controversos (v.g. Archaeopteryx) com que nos deparamos.»

Aqui vemos condensados dois grandes favoritos do criacionismo: um dilúvio como a origem do registo fóssil, e a ausência de fósseis de formas intermédias. Mais uma vez, argumentos que dependem duma análise superficial dos problemas, e duma ignorância profunda dos detalhes.

O primeiro argumento é essencialmente que um grande dilúvio matou os animais e plantas, enterrando-os a níveis diferentes conforme o sítio onde viviam, a capacidade que tinham para fugir da água, o seu tamanho e forma, e assim por diante. Assim as baleias e os golfinhos ficaram em camadas superiores, os dinossáurios não conseguiram escapar tão bem e ficaram mais abaixo, e os desgraçados dos trilobites ficaram enterrados lá no fundo.

Mas agora os detalhes. Os trilobites são abundantes no registo fóssil em estratos inferiores. Os peixes teleósteos são muito comuns em estratos superiores (cerca de metade das espécies de vertebrados hoje em dia são peixes teleósteos). Mas nunca se misturam. Não há uma única sardinha fossilizada ao pé de um trilobite. Os criacionistas dirão que os peixes fugiram e os trilobites acabaram por ficar enterrados na lama ou o que seja, mas todos todos todos? Incrível, especialmente quando consideramos que fósseis de corais são frequentes tanto nos estratos contém trilobites como nos que contém peixes teleósteos. Ou que os fósseis das toupeiras estão mais acima que a maioria dos fósseis de peixes. É estranho que num dilúvio as toupeiras tenham sido entre as últimas a afogar-se e a ficar enterradas.

Pior ainda é que os fósseis não são apenas aqueles esqueletos enormes que vemos nos museus. São dentes, escamas, pólen, folhas, patas de insecto, pedaços de casca de ovo, e até fezes (coprólitos). O que JM propõe é que um dilúvio separou todos os fragmentos, fezes, e até pegadas de todos os animais e plantas de acordo com a sua espécie, sem uma única excepção.

JM também afirma que «deveríamos encontrar biliões de fósseis intermédios», mas não explica o que quer dizer com «intermédios». A evolução opera sobre populações, mas os fósseis são vestígios de indivíduos. Com indivíduos, um será intermédio entre outros dois se for descendente directo de um, e antepassado do outro, como o meu pai é intermédio entre mim e o meu avô.

Se escolhermos ao acaso três membros de uma família, com tios, primos, avós, tios-avós, e assim por diante, muito raramente vamos ter um avô, o pai, e o filho. O mais provável é encontrar primos, sobrinhos, e relações mais afastadas, pois essas são muito mais numerosas que relações de descendência directa. Se em vez de uma família tivermos milhões de indivíduos de inúmeras espécies, e em vez de meia dúzia de gerações considerarmos dezenas de milhões de anos, a probabilidade de encontrar ao acaso verdadeiros intermédios é praticamente nula.

Por outro lado, talvez JM queira dizer que são intermédios num sentido mais lato, de estarem em gerações intermédias e relativamente próximos de um descendente directo que tenha vivido nessa altura, mas sem ser necessariamente esse descendente directo em particular. Mas se é isso que quer dizer, então temos muitos casos de fósseis intermédios.

Mas o grande truque deste argumento é que o criacionista pode sempre aplicá-lo. Se tivermos dois fósseis, um mais antigo e outro mais recente na evolução de uma espécie, o criacionista pode dizer que falta um fóssil intermédio. Se encontrarmos um terceiro fóssil com características intermédias, o criacionista agora diz que faltam dois, pois agora há duas «lacunas» onde antes havia apenas uma. Esta característica pode tornar o argumento persuasivo num debate, mas torna-o completamente inútil na procura de explicações.

Em suma, o que JM propõe em substituição da paleontologia, tal como as suas propostas para revolucionar a biologia molecular e a genética, fica aquém duma explicação para o grande número de detalhes importantes que conhecemos, e que são explicados pela ciência moderna.»

15 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Jónatas Machado e a Genética de Populações

«No texto publicado no dia 8 no jornal «O Público», Jónatas Machado afirma:

«Os criacionistas não confundem variação adaptativa e especiação (que todos podem ver) com evolução (que nunca ninguém viu)».

Esta é uma afirmação curiosa se tivermos em conta que evolução é a variação das frequências dos genes numa população ao longo das gerações. Ou seja, aquilo que JM chama «variação adaptativa e especiação» são exemplos de evolução. Penso que é por não quererem confundir evolução com evolução que os criacionistas acabam por ficar tão confusos.

Mas vejamos esta afirmação no contexto do que JM escreve mais atrás:«Os criacionistas não disputam os resultados das observações científicas feitas no presente. Todavia, o passado distante não é observável nem repetível.»

Talvez o que JM queira dizer é que apenas devemos aceitar aqueles aspectos da evolução que conseguimos observar no presente e repetir, e que devemos recusar tudo no que pretende explicar o passado. Mas há duas falhas graves neste argumento.

Primeiro, JM levanta o problema de não conseguirmos observar nem repetir o passado. Eu observei que os meus filhos nasceram, e o nascimento de um ser humano é algo repetível e observável no presente. Mas pelo argumento de JM eu nunca podia inferir que a minha avó nasceu, porque o seu nascimento não é nem observável nem repetível. Isto é absurdo. O que importa é que o processo de nascimento é observável e repetível, e por isso posso usá-lo para explicar a origem da minha avó, mesmo que o seu nascimento em particular não seja nem observável nem repetível.

A evolução é um caso análogo, pois a especiação, que é o nascimento de uma nova espécie, é observável e repetível como processo. O nascimento da minha avó, ou de uma espécie há centenas de milhões de anos, já não é observável nem repetível. Mas é legítimo explicar estes acontecimentos pelos processos que observamos repetidamente no presente. E isto é essencialmente o que a genética de populações nos diz, que a evolução não é mais que o acumular destas variações, adaptações, e especiações, tal como a minha família, por muitas gerações que tenha, é uma longa sequência de nascimentos.

O outro problema no argumento de JM é a premissa implícita que para que o criacionismo seja aceitável basta apontar erros na teoria da evolução. Por muito arriscado e falível que seja explicar acontecimentos passados com base no que se observa no presente, é ainda mais arriscado e falível explicá-los com base em histórias escritas por pessoas que também não os observaram. O que é que os antigos Hebreus sabiam acerca dos trilobites e dinossáurios que nós não sabemos hoje em dia?

Em conclusão, e apesar da tentativa de JM de nos persuadir do contrário, a genética de populações explica a origem e evolução das espécies duma forma bastante mais fiável que a interpretação bíblica

15 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Joseph Ratzinger: «Deus aparece nas contas sobre o homem e sobre o universo»

Na homilia de terça-feira em Ratisbona (já mencionada pela Palmira), Ratzinger não evitou criticar a ciência, uma das suas preocupações assumidas nos tempos mais recentes. Deve, porém, notar-se que o texto divulgado foi lido numa missa, e por isso tem sobretudo uma função litúrgica, ao contrário do discurso de Wojtyla que analisei recentemente, e com o qual JP2 pretendia interpelar os cientistas.

As presumíveis reflexões de Castelgandolfo emergem em dois parágrafos. Ratzinger começa por preocupar-se porque «uma parte da ciência se dedicou a buscar uma explicação sobre o mundo na qual Deus seria desnecessário». Acrescenta que «se isso fosse assim, Deus seria desnecessário em nossas vidas». Arrisca muito, porque liga a necessidade de «Deus» na vida das pessoas (que eu aceito, como «conforto emocional») à necessidade na ciência (que já não é aceitável). O pior vem imediatamente a seguir: «Mas cada vez que parecia que este intento havia conseguido êxito, inevitavelmente surgia o evidente: as contas não batiam. As contas sobre o homem, sem Deus, não batem, e as contas sobre o mundo, sobretudo o universo, sem Ele, não batem». Esta passagem presta-se a ser ridicularizada: Ratzinger ganhará um lugar na História como o Papa que meteu «Deus» nas contas da física e da biologia. Só é pena que não nos diga que contas são: serão as equações de Einstein? Ou serão diagramas de Feynman? Termodinâmica? As equações diferenciais que se usam em certos ramos da biologia ou da neurologia? Contas de mercearia? Que eu saiba, a cosmologia não necessita de «Deus» para calcular a idade do universo ou a distância a que se encontram as galáxias. E não é necessário «Deus» algum para compreender o que é a tuberculose ou para estudar as funções do córtex cerebral. Portanto, não se compreende do que fala Ratzinger, se é que ele próprio compreende do que está a falar. Para a próxima, é melhor que explicite em que parte das «contas» teve que inserir «Deus» (coisa que nenhum cientista alguma vez reportou ter feito, já agora…).

Mas continuemos com o (confuso) arrazoado de Ratzinger: «apresentam-se duas alternativas: O que existiu primeiro? A Razão criadora, o Espírito que faz tudo e suscita o desenvolvimento, ou a Irracionalidade que, carente de toda razão, produz estranhamente um cosmos ordenado matematicamente, como o homem e sua razão. Esta última, contudo, não seria mais que um resultado casual da evolução e, portanto, definitivamente, também racional. Como cristãos, dizemos: «Creio em Deus Pai, Criador do céu e da terra», creio no Espírito Criador». As alternativas apresentadas são essencialmente um jogo de palavras, mas Ratzinger parece querer dizer que a «irracionalidade» (seja lá isso o que for no contexto de uma interrogação sobre as origens) não pode «produzir» a racionalidade (idem). É um argumento do género «o complexo não pode produzir o simples» ou «a ordem não pode surgir da desordem». Porém, existem vários exemplos do contrário nas ciências da natureza (e é no contexto da ciência que Ratzinger coloca as suas «alternativas»…).

Resumindo: aparentemente, Ratzinger não meditou tão profundamente nas questões epistemológicas como Karol Wojtyla. Se só tem para oferecer jogos de palavras e raciocínios tão pobres, não merece a reputação de intelectual culto que lhe têm construído.
14 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Um desafio

A todos os criacionistas, da linha dura evangélica ou da linha mole católica, proponho o seguinte desafio: como pretendem que a vossa «teoria», ao contrário das teorias científicas actuais, constitui a descrição correcta da realidade em questões como a origem do universo, a origem da vida ou a origem da humanidade, proponham uma experiência ou um conjunto de experiências que permitam provar que a vossa teoria está correcta e a ciência errada. Assim validaremos qual das duas resiste à prova dos factos.

Obrigado.

P.S. Peço a fineza de indicarem as previsões em termos quantitativos, com as respectivas barras de erro, assim como as experiências de controlo a realizar. Deveis usar o SI.
14 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Jónatas Machado e a Biologia Molecular

«No seu artigo no jornal «O Público», [Jónatas Machado] apresenta uma série de argumentos padrão do movimento criacionista, todos baseados em mal-entendidos (assumindo que são apresentados de boa fé). Em primeiro lugar, JM mostra-se preocupado que o Papa vá a «reboque de teólogos e cientistas, cujas posições estão em constante mutação». Mudar de opinião pode ser mal visto em teologia, mas em ciência é fundamental. Afinal, é esse o objectivo da ciência: mudar a nossa opinião de forma a que esteja sempre o mais possível de acordo com os factos. Como ninguém conhece todos os factos, qualquer cientista (eu diria mesmo qualquer pessoa intelectualmente honesta) tem que estar preparado para mudar a sua opinião se confrontado com factos que a contradigam.

Outro termo revelador que JM usa é «evolucionistas». A teoria da evolução é uma ferramenta conceptual, algo que nos ajuda a compreender e prever aspectos da natureza. Chamar «evolucionista» a quem a usa desta forma é como chamar «gravitacionista» aos arquitectos e engenheiros civis porque incluem a gravidade nos seus cálculos. Ao contrário do criacionismo, nem o «evolucionismo» nem o «gravitacionismo» são doutrinas. São teorias, ferramentas para aplicar onde aplicável, modificar conforme necessário, e talvez até rejeitar se um dia se revelarem incompatíveis com os factos. Ao contrário dos criacionistas, os cientistas mudam de opinião quando se justifica.

Mas o que quero abordar aqui é principalmente esta afirmação de JM:

«Os evolucionistas interpretam a existência de semelhanças genéticas como evidência de um ancestral comum, ao passo que os criacionistas as interpretam como evidência de um Criador comum.»

Este é um dos truques do criacionismo, apresentar o problema como uma mera divergência de interpretações dos mesmos factos. E para qualquer pessoa que desconheça os factos pode até fazer sentido. Há semelhanças e diferenças, uns dizem que é porque o deus deles assim o quis, outros dizem que os organismos evoluíram assim. Mas os factos não se restringem à mera presença de semelhanças e diferenças. O mais revelador é o padrão das semelhanças e diferenças, e é nos detalhes que se distinguem as boas explicações das más desculpas.

Consideremos a hipótese de JM, que um deus criou todos os organismos. Neste caso é natural que um rato, um morcego, e um pardal tenham semelhanças e diferenças nos seus genes. O morcego e o pardal têm asas, o morcego e o rato são mamíferos, e assim por diante. E seria de esperar que as diferenças sejam maiores entre o rato e o pardal do que entre o morcego e qualquer um dos outros dois. O morcego talvez seja mais parecido com o rato, ou talvez mais como o pardal, mas seria de esperar que estivesse algures entre o rato e o pardal.

Segundo a teoria da evolução isto não pode acontecer. Entre o rato e o pardal apenas estão os seus antepassados, e ninguém da geração presente. Se o morcego estiver mais próximo do rato (que é o caso), terá que haver tantas diferenças entre o pardal e o morcego como entre o pardal e o rato. O pardal é como um primo afastado e o morcego e o rato como irmãos, e por isso a relação de parentesco entre o rato e o pardal é a mesma que a relação entre o morcego e o pardal.

Temos assim uma grande diferença entre a forma como as duas hipóteses podem interpretar os factos observados. Segundo a hipótese que partilhamos todos um ancestral comum, as espécies modernas formam uma geração da enorme árvore de família que une todos os seres vivos, e por isso nunca pode haver os tais casos intermédios. As espécies modernas têm que se relacionar todas como primos mais ou menos afastados. Isto é uma afirmação extremamente arriscada, mas daquelas que caracterizam uma boa explicação científica. E é precisamente isso que observamos em milhares de espécies estudadas.

A hipótese criacionista, que postula uma criação independente, é incapaz de explicar esta relação que se observa nas diferenças e semelhanças entre os genes de todos os organismos. Pode afirmar que o alegado criador quis criar os genes todos tal e qual como se esperaria se descendessem de um ancestral comum, mas por ser compatível com qualquer observação a hipótese criacionista torna-se inútil como explicação.

Há outro pormenor importante que favorece a teoria da evolução. Os nossos genes são como que receitas para criar proteínas. Os genes e as proteínas são moléculas complexas formadas por moléculas mais pequenas encadeadas em longas sequências, e cada sequência de três destas moléculas no gene especifica uma na proteína. Por exemplo, para a receita genética especificar uma alanina na proteína, no gene podemos ter GCC, GCA, GCG, ou GCT. Qualquer uma destas quatro sequências especifica uma alanina na proteína correspondente.

Se um organismo tiver a sequência GCC e outro organismo a sequência GCA, ambos produzem a mesma proteína apesar de terem uma diferença no gene. Estas sequências são chamadas sinónimas, pois estão escritas de forma diferente mas «querem dizer» o mesmo. Segundo a hipótese criacionista, seria de esperar um número aproximadamente igual de diferenças sinónimas e não sinónimas. Os genes do coelho e do rabanete teriam sido criados por um ser inteligente de forma a dar origem a organismos diferentes, mas o criador podia também ter incluído algumas diferenças sem consequência.

Segundo a teoria da evolução, estas diferenças resultam da acumulação de mutações (não inteligentes) ao longo de muitas gerações. Se uma mutação for sinónima, por exemplo se muda um GCC para GCA, não tem qualquer efeito no organismo, e pode facilmente persistir nas gerações seguintes. Por outro lado, se a mutação não for sinónima é muito provável que seja prejudicial, porque um organismo é algo muito complexo, e alterá-lo ao acaso vai provavelmente estragar alguma coisa. Estas mutações serão rapidamente eliminadas por selecção natural. Só muito raramente é que uma mutação não sinónima neutra ou benéfica para o organismo é passada para as gerações seguintes.

Este mecanismo faz-nos prever que serão sinónimas a maioria das diferenças entre os genes das espécies que sobreviveram até hoje, pois as mutações sinónimas são as que mais facilmente sobrevivem à selecção natural. E, de facto, as diferenças sinónimas são cerca de mil vezes mais comuns que as diferenças não sinónimas. Mais significativo ainda, quanto mais importante o gene para a sobrevivência do organismo maior a proporção de diferenças sinónimas em relação às que não são sinónimas.Mais uma vez a teoria da evolução explica perfeitamente as observações, ao passo que o criacionismo apenas nos deixa pasmados com um criador supostamente inteligente que investiu 99.9% do trabalho em diferenças inconsequentes.

Em suma, é fácil argumentar que algo tão vago como «semelhanças genéticas» pode ser interpretado de inúmeras maneiras. Pode ser evolução, um deus, vários deuses, extraterrestres, ou até o Monstro do Espaguete Voador . Mas quando consideramos os detalhes, a teoria da evolução é claramente melhor que as alternativas para explicar a complexidade de observações da genética e da biologia molecular