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Ricardo Alves

27 de Novembro, 2006 Ricardo Alves

A proibição do véu na Turquia

«No meu campus, ninguém pode aparecer com uniforme religioso. Se hoje levantássemos a proibição do lenço, amanhã apareceriam de chador e no dia seguinte de burqa. No fim, estariam a bater nas jovens com vestidos modernos. Vimos no Irão como pode acontecer depressa.»

(Ural Akbulut, reitor da Universidade Técnica de Ancara, no Público de 26/11/2006.)
23 de Novembro, 2006 Ricardo Alves

O regresso do véu

A questão do véu marcou, nas últimas semanas, a opinião pública de três países europeus. No Reino Unido, Jack Straw afirmou que pede às mulheres muçulmanas com quem se reune que tenham a cara visível; na Holanda, Rita Verdonk (a tal que chegou a retirar a nacionalidade a Hirsi Ali) quer proibir o uso da burca nas ruas; em França, alguma extrema direita quer interditar o véu em todo o território.

Desde que comecei a escrever neste blogue que tenho defendido a lei francesa de 2004 que proibiu os «símbolos religiosos ostensivos» nos serviços públicos. Porque defendo a laicidade do Estado e porque, num país como a França que retirou os símbolos religiosos dos edifícios públicos há um século, é hoje necessário impôr regras aos fundamentalistas que tentam instrumentalizar as alunas muçulmanas para provocarem nas escolas públicas a segregação dos sexos, tensões entre comunidades confessionais, e o avanço de um programa obscurantista e reaccionário. Entendo portanto, igualmente, que uma professora não pode dar aulas de véu, e muito menos de cara tapada, uma questão que se colocou recentemente na Inglaterra (o mesmo é válido para uma advogada num tribunal).

No entanto, não defendo que se proíba o uso da burca ou de máscaras na rua, a menos que haja razões de segurança, ou quando é necessário romper com um passado de submissão da mulher. Nesse espírito, a Tunísia tem a minha compreensão por proibir o véu nas ruas, como a Turquia também a tem por o proibir nas universidades e no parlamento. Num país como a Holanda, não defenderia a proibição da burca nas ruas, mesmo sendo (e é) um símbolo e um instrumento da autoridade familiar ou clerical, da desigualdade dos sexos, e de uma ideologia totalitária. Quando vi mulheres de cara tapada num supermercado do Seixal ou num centro comercial da capital, senti um desconforto e uma revolta semelhantes ao que sinto quando vejo os «cabeças rapadas» que se passeiam orgulhosamente por Lisboa.

Por tudo isto, espanto-me com a ingenuidade de alguma esquerda multiculturalista (refiro-me a Joana Amaral Dias no 5 dias) que parece não compreender o real significado das burcas e dos véus. Nos anos 60, eram raros os véus nas capitais árabes. Foi a revolução islamo-fascista de Khomeini, em 1979, que os trouxe de volta. Desde aí, os véus tornaram-se um instrumento e um símbolo de um movimento islamista que pretende escravizar as mulheres (e os homens) do mundo muçulmano, e que detém o poder no Irão, na Arábia Saudita, na Palestina, no Sudão e na Somália. Mais importante do que defender o direito de ter comportamentos extremistas e separatistas, deveria ser, penso eu, combater contra uma ideologia totalitária, obscurantista e machista como o islamismo. E entender o que têm para dizer tantas mulheres de origem muçulmana que não encaram o véu como apenas mais um trajeum direito»?), mas sim como o símbolo e instrumento de opressão feminina que efectivamente é.

Quanto à lei francesa que proibiu os símbolos religiosos ostensivos, há razões para fazer um balanço essencialmente positivo. Das muitas centenas de alunas que usavam o véu, apenas algumas dezenas foram excluídas da escola e remetidas para o estudo em casa. E as escolas privadas islâmicas não proliferaram. Não é por acaso que os muçulmanos de França têm uma opinião positiva da laicidade, e que em França apenas 46% dos muçulmanos se vêem primeiramente como tal (e 42% se vêem primeiramente como franceses), enquanto no Reino Unido 81% se vêem primeiramente como muçulmanos (e apenas 7% como britânicos)…
21 de Novembro, 2006 Ricardo Alves

Que a força esteja com eles!

Existem religiões sem fé nem manipulação de grupo. Os Cavaleiros de Jedi, por exemplo. No Reino Unido, os indivíduos auto-organizados que se revêem na mitologia da série de filmes da «Guerra das Estrelas» eram 390 000 à data do censo de 2001, sendo portanto a quarta religião mais numerosa nesse país, atrás somente dos anglicanos, muçulmanos e católicos. Ao contrário dessas religiões mais tradicionais e mais autoritárias, os Cavaleiros de Jedi não respeitam exageradamente os seus representantes, não lhes atribuem autoridade para os «representarem» sobre assuntos políticos ou científicos, não têm tendência para se meterem na vida sexual das outras pessoas, e provavelmente até serão capazes de admitir que a sua religião é uma fantasia criada por outros seres humanos. Uma fantasia que eles vivem sem aborrecer ninguém. (E se todas as religiões fossem assim?)

Os Cavaleiros de Jedi estão a pedir reconhecimento oficial pela ONU. Só posso desejar que a força esteja com eles! (Particularmente se for a força da gravidade, para mantê-los com os pés bem assentes na Terra…)
13 de Novembro, 2006 Ricardo Alves

Anselmo sem fogo

Tenho alguma ambivalência face aos «religiosos moderados». Simpatizo com o facto de não seguirem à risca os preceitos religiosos, o que é sinal de carácter e exercício de liberdade. Por outro lado, fico perplexo com a insistência em quererem salvar sistemas de ideias e tradições que, mesmo reinterpretados, só podem merecer o repúdio das pessoas de bem.

Consideremos o caso de Anselmo Borges, um sacerdote católico moderado que escreve no Diário de Notícias ao domingo, e que assume o ónus das guerras de religião, da repressão religiosamente ordenada da sexualidade, e dos crimes cometidos pelas igrejas ou justificados pelas religiões. Conclusão:
  • «Estes factos obrigam a ter constantemente presentes, com temor e tremor, os perigos patológicos das religiões. Talvez nunca se tenha meditado suficientemente na grandeza heróica daqueles que preferiram o ateísmo a ficar presos de um deus que humilha, escraviza e anula o Homem

É claro que é uma apreciação simpática para nós, ateus (embora o «heroísmo» me pareça um exagero). Mas, depois de ter batido no peito e confessado pecados ao ponto de reconhecer alguma razão aos ateus, Anselmo Borges deita ao mar a rede de pesca:

  • «No entanto, o Homem é por natureza religioso, no sentido de estar constitutivamente aberto à questão de Deus enquanto questão. Essa abertura, independentemente da resposta, positiva ou negativa, que se lhe dê, é que é o fundamento último da dignidade humana. Precisamente porque é abertura ao infinito.»

Este argumento é daqueles que me faz sorrir. O homem é «naturalmente religioso» porque inventou a religião? Então também seria «naturalmente científico» porque inventou a ciência, ou «naturalmente ideológico» porque inventou as ideologias, ou «naturalmente jogador de xadrez» porque inventou esse jogo. Evidentemente, Anselmo Borges responderá que a ciência e o xadrez não fundamentam a «dignidade humana». É uma opinião, mas mais atrás Anselmo já reconhecera implicitamente que a religião, historicamente, sempre foi a maior inimiga da «dignidade humana», e que foi até o principal instrumento da humilhação e escravização da humanidade… Em que ficamos?

Mas continuemos com Anselmo Borges:

  • «A religião enquanto fé no Deus infinito e pessoal foi mediadora da tomada de consciência da infinita dignidade de ser Homem. Esta é a intuição e a parte de verdade da tese de Feuerbach ao querer reduzir a teologia a antropologia

Novamente, mais um jogo de palavras vazio de sentido. Acrescenta-se o adjectivo «infinito» a duas abstracções («Deus» e «dignidade») e postula-se uma associação espúria. Infelizmente, a maior parte do pensamento religioso actual está reduzido a jogos de palavras deste género, o que poderá ser um sinal de que já nem os sacerdotes têm fé. Mas, assim, também não serão eles a ajudar-nos a compreender como a humanidade criou a religião. (Aparentemente, foi a seguir à linguagem e à música…)

9 de Novembro, 2006 Ricardo Alves

Vitória para a liberdade de expressão na Turquia

A historiadora turca Muazzez Çig foi absolvida da acusação de «incitamento ao ódio religioso» num julgamento em Istambul. A acusação partiu de um advogado muçulmano e baseou-se no facto de a historiadora, que tem 92 anos de idade, ter escrito num livro que o véu foi usado pela primeira vez por sacerdotisas sumérias que iniciavam sexualmente rapazes como parte de rituais de fertilidade.

Muazzez Ilmiye Çig é reconhecida na Turquia como uma especialista na civilização suméria, mas tabém como uma laicista militante. Já escreveu à mulher do actual primeiro ministro (o islamista Recep Erdogan) aconselhando-a a que desse o exemplo e não usasse o véu islâmico em público.

À saída do tribunal, Muazzez Çig foi aplaudida por uma multidão.
7 de Novembro, 2006 Ricardo Alves

A ética é natural?

Parece-me evidente que o nosso sentido ético, a nossa consciência do que podemos ou não fazer aos outros, é inato. Tenho a certeza de que a ética não caiu do céu aos trambolhões, atirada pelo «Grande Manitu» ou pelo «Deus» de Moisés; e sei também que os filósofos se limitam a teorizar conceitos que encontraram na rua. As ciências da natureza explicarão um dia como desenvolvemos o nosso sentido ético. Começam a aparecer estudos com esse objectivo.

A diferença mais relevante entre o nosso comportamento social e o de outros primatas não é a propensão para cooperar: os leões também cooperam quando vão à caça. Não é sequer a expectativa de reciprocidade na interacção entre indivíduos: os chimpanzés também esperam que se devolvam favores. A diferença é que os humanos armazenam a informação suficiente para recordarem o comportamento pretérito dos outros membros do grupo, e portanto para decidir (ou não) cooperar em função da experiência acumulada.

A parte inata da ética humana talvez seja um dia estabelecida. O facto de termos desenvolvido uma cultura complexa que codificou essas regras e muitas vezes as tentou inverter (através da religião, por exemplo), não facilita o trabalho. Uma parte da nossa «ética natural» poderá ser inata, e outra parte poderá resultar inevitavelmente da lógica de grupo. Em qualquer dos casos, é uma linha de investigação que acabará por explicar muitas regras sociais de que a religião se apossou.
26 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Israel avança para o casamento civil (ou talvez não)

As negociações para o novo governo israelita, que poderá incluir um partido representando a minoria russófila, provocaram um debate sobre a possível criação do casamento civil em Israel. Actualmente, os únicos casamentos reconhecidos são os realizados pelas comunidades religiosas, e muitos israelitas vão casar a Chipre, quer por quererem casar fora da sua comunidade religiosa, quer por não serem considerados judeus, quer por serem judeus moderados que não querem aturar as aulas pré-nupciais (obrigatórias) dadas pelos rabis ortodoxos (cujo fundamentalismo e intolerância não ficam atrás do pior do catolicismo).

O casamento civil permitiria aos imigrantes recentes de origem russa (cerca de 300 000 indivíduos), muitos dos quais não são considerados judeus, casarem-se. É impossível fazê-lo com os arranjos actuais, dado que em Israel o casamento só existe segundo as leis religiosas medievais e retrógradas das comunidades religiosas: consequentemente, uma judia não pode divorciar-se sem autorização do marido (e dos rabis), e a chária é aplicada aos casamentos entre muçulmanos. Evidentemente, os casamentos mistos são impossíveis, o que tem mantido a sociedade israelita segregada segundo linhas de fractura religiosas (contribuindo assim para os níveis de paz social e harmonia tão conhecidos de todos).

Infelizmente, um dos partidos necessários à coligação governamental é o Shas, um partido que obedece assumidamente ao Rabi-chefe da comunidade sefardita, Shlomo Amar. Este senhor, do alto da sua autoridade clerical, fez o seu submisso partido propôr uma «união civil» exclusivamente para cidadãos sem religião, mantendo a impossibilidade legal de casamentos mistos. Mas nem isso está garantido.
25 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Refutação de vários deuses (2)

(continuação)

O passo lógico seguinte é um «Deus» criador e que recebe as «almas» após a morte. A «alma» é uma ideia particularmente espatafúrdia: seria a consciência humana, separada do corpo e pressupostamente perpétua. A ideia resulta da resistência do ser humano a aceitar que a consciência de si próprio desaparecerá no momento da morte. Essa resistência, deve notar-se, é um sinal de presciência. Todavia, a consciência (o «eu») é a mera continuidade das funções cerebrais, que existe de uma forma mais ténue em muitas outras espécies animais. Pretender que a nossa consciência sobreviva depois da morte é um desejo compreensível, mas quimérico: a nossa consciência apaga-se com a morte das nossas células, por mais dificuldade que tenhamos em aceitá-lo.

Finalmente, o «Deus» mais popular na nossa cultura deveria ser o «Deus» cristão, que seria um «Deus» criador, recebedor de almas e interventor (o «Deus» do judaísmo e o do islão gozariam dos mesmos atributos). No entanto, a maior parte dos crentes confessam que não acreditam na existência de uma entidade não material que interviria no mundo material violando as leis da Física ou simplesmente forçando acontecimentos improváveis. A mais importante dessas intervenções das leis naturais, segundo os seguidores da seita cristã (uma presumível dissidência do judaísmo), teria sido a paternidade de um indivíduo que teria vivido na região israelo-palestiniana há cerca de dois mil anos, e que teria «ressuscitado» após a morte. A prova da sua «divindade» seria este último acontecimento, que é tão possível como uma lâmpada fundida voltar a funcionar. Apesar de raros cristãos me jurarem a sua fé na realidade desse evento primacial (a «ressurreição»), nenhum deles guarda lâmpadas fundidas na arrecadação. («Fé» incoerente e pouco consequente, é o que vos digo…) Os crentes neste «Deus» interventor têm outro problema sério: as «intervenções» ou aconteceram há muito tempo, ou aconteceram perante «testemunhas» que já tinham «fé» (ou seja, teimosia suficiente para afirmar acreditar no impossível ou no improvável). E alegações fantásticas de intervenções sobrenaturais nos assuntos humanos devem ser rejeitadas enquanto não houver testemunhos credíveis, do mesmo modo que fazemos com outros boatos inverosímeis.

O ateu tem a enorme vantagem de não acreditar em qualquer uma das quebras de lógica mencionadas mais acima (há muitas outras, por exemplo os extra-terrestres que raptam pessoas para as violar ou as «alminhas» aprisionadas no micro-ondas). Mas a maior vantagem é metodológica: questionar e desmontar as crenças religiosas é um treino analítico, que ajuda a consolidar a capacidade de adaptarmos as nossas ideias ao que se comprova através da experiência e do raciocínio.
25 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Refutação de vários deuses (1)

Sou ateu porque aceito o universo tal como é: um sistema fechado no qual todos os acontecimentos são explicáveis pela natureza dos elementos constituintes, das suas interacções e das condições iniciais do próprio universo. Desta definição retiram-se como corolários a inexistência tanto de cada um dos deuses das diversas mitologias humanas, como de «espíritos», unicórnios invisíveis ou cães azuis que vivam do outro lado da Lua. Na sequência refutarei os diversos «deuses», partindo do mais «fraco» (o «Deus» exclusivamente conceptual), até ao mais «forte» (o «Deus» interventor dos teístas). Sendo ateu por educação, só conheço os deuses de que os crentes me falam, e devo confessar que ao longo da minha vida já ouvi as versões mais díspares sobre o conteúdo da palavra «Deus».

Nas conversas com crentes, o «Deus» que mais frequentemente me mencionam como sendo irrefutável é um mero conceito (e quanto mais vago melhor). Concretamente, alguns crentes dizem-me que não posso refutar a existência de uma entidade que não faz parte do nosso universo, mas que no entanto existe no seu «exterior» e poderia intervir no nosso mundo se quisesse. É evidente que concordo. Não posso refutar a existência de tal entidade, como não posso refutar a existência de unicórnios cor-de-rosa invisíveis que não respiram por cima do meu ombro, não transpiram, nem são feitos de matéria. E também não posso refutar a existência de quinze milhões de passarinhos que andem a voar em bando em redor do universo, trinando o hino nacional e defecando para fora do dito universo. Mas, honestamente, não conheço uma única religião que cultue o «Deus» conceptual ou os quinze milhões de passarinhos. E se não podemos usar o cocó dos passarinhos como fertilizante, ou se o dito «Deus» não intervém, seria totalmente inútil cultuá-los (quer aos passarinhos, quer ao «Deus» mudo e quedo).

Seguidamente, existe quem acredite no «Deus» dos deístas, que teria criado o universo, tendo-se depois remetido a uma inacção digna do «Deus» conceptual. Assume-se geralmente que este «Deus» sabia o que fazia, e que portanto teria soprado a «grande bolha» com os parâmetros físicos intencionalmente regulados para permitir a aparição de vida na Terra (ah, a vaidade…), tendo depois ficado a fazer cera. A ideia tem o problema de que, para prever a evolução do nosso universo, «Deus» teria que dispor ou de uma máquina que lhe permitisse calcular essa evolução, ou de uma inteligência própria suficiente para tal. Em qualquer dos casos, teria que usar um suporte material para os seus cálculos mais extenso e mais complexo do que o próprio universo «criado», o que exige que ele próprio tivesse sido criado por um «super-Deus», o qual por sua vez teria sido criado por um super-«super-Deus», e assim sucessivamente. Qualquer um destes super-deuses, para que pudesse ter capacidades observacionais e computacionais presentes em qualquer ponto do universo instantaneamente, violaria a relatividade restrita e a relatividade generalizada todos os dias de manhãzinha até à noite.

(continua)