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Ricardo Alves

28 de Janeiro, 2007 Ricardo Alves

Não lhes perdoem: eles sabem o que fazem

Ao defender simultaneamente o voto «não» e a «despenalização» da mulher, os bispos da ICAR estão a fazer o que sabem fazer melhor: manipular consciências. Obtêm o resultado pretendido (votos «não»), aliviando ao mesmo tempo o peso de consciência daqueles a quem custa que as mulheres sejam investigadas ou presas.

Na realidade, a única forma de garantir que as mulheres não serão investigadas pela polícia e pelos tribunais é votar «sim». E assim contribuir para que as penas previstas nos §3 e §2 do artigo 140º do código penal, que criminalizam respectivamente a mulher que aborta e quem a ajuda a fazê-lo, deixem de ser aplicáveis até às 10 semanas. «Despenalizar» apenas a mulher, sem «despenalizar» quem a ajuda, seria descriminalizar o «aborto de vão-de-escada». O que é necessário é criar condições para que se façam IVG´s, a pedido da mulher, em legalidade e em segurança. O que só se consegue votando «sim».

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28 de Janeiro, 2007 Ricardo Alves

Espalhar a confusão

A ICAR está deliberadamente a espalhar a confusão no debate sobre a despenalização da IVG. Por exemplo: num discurso realizado na terça-feira, o bispo de Viseu afirmou que «matar a vida às 10, às 20, às 30 semanas ou ao nascer, ou aos 5 ou aos 10 anos, tem a mesma gravidade ética e objectiva». Portanto, equiparou o aborto ao homicídio, pelo menos no plano ético. No entanto, e apesar do radicalismo do discurso (onde chegou a defender a criminalização do suicídio e do uso de embriões para fins terapêuticos) alguma imprensa parece só ter ouvido a parte em que dizia que «não está em causa a penalização da mulher, pois a Igreja não pede, nunca pedirá, que alguém seja penalizado». Várias notícias apareceram com títulos como «Bispo votava ‘sim’ “se só estivesse em causa a despenalização”» ou «Bispo Viseu: “votaria sim à despenalização da mulher”»…

Neste referendo, só se pode ser coerente ou querendo terminar com a penalização e votando «sim», ou querendo manter a penalização e votando «não». A posição da ICAR (afirmar-se contra a punição das mulheres e defender o «não») faz tanto sentido como votar «sim» querendo enviar as mulheres para a cadeia.

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25 de Janeiro, 2007 Ricardo Alves

Pelo direito a rir

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O semanário marroquino Nichane publicou no dia 9 de Dezembro um dossiê especial analisando algumas anedotas («noukat») sobre religião, sexualidade e política. O objectivo era reflectir sobre a cultura popular marroquina. Infelizmente, um saite islamista não achou graça e iniciou uma campanha violenta contra o semanário. No dia 19 de Dezembro, uma instância religiosa do Koweit junta-se aos apelos contra a liberdade de expressão. No dia seguinte, há uma queixa judicial contra o director do jornal e contra o autor do dossiê, por «ofensa aos valores sagrados». Nesse mesmo dia, o semanário é proibido pelo governo deste país nosso vizinho.

No dia 15 de Janeiro, o director de Nichane (que se afirma «livre pensador») e o responsável pelo dossiê das anedotas foram condenados a três anos de prisão (suspensa) e a uma multa de 80 000 dirhams (7 200 euros) por «atentar contra a religião islâmica» e por «publicação e distribuição de escritos contrários à moral».

A Associação República e Laicidade participa na campanha de solidariedade com os jornalistas marroquinos, que lutam no contexto muito difícil de um país muçulmano pela liberdade de expressão, contra a censura, e pelo direito a rir de tudo, incluindo o Islão e o rei de Marrocos. Pode-se assinar uma petição electrónica de solidariedade, ou escrever uma carta ao embaixador de Marrocos em Portugal (que até pode ser enviada por correio electrónico). Eu fiz ambas as coisas.

23 de Janeiro, 2007 Ricardo Alves

Declaração de voto

O referendo de 11 de Fevereiro de 2007 será sobre uma alteração no código penal. Trata-se portanto de uma questão exclusivamente legislativa e política. Não se trata de determinar o início da vida, nem de retirar a governos futuros a prerrogativa de decidir que actos médicos serão pagos pelo SNS. Resumidamente, eis no que fundamento a minha posição…
  1. A vida não começa com a fecundação: transmite-se. Um espermatozóide e um óvulo separados são ambos células vivas. Um espermatozóide que fecunda um óvulo origina um ou mais seres humanos individuais, que terão a mesma informação genética (é o caso dos gémeos univitelinos). A fecundação dura uma vintena de horas e a nidação (implantação no útero) demora seis a oito dias. Considero importante, pessoalmente, que o crescimento se acelere pela 12ª semana, mas parece-me mais relevante que só pela 24ª semana a taxa de sobrevivência do prematuro (viabilidade) se aproxime dos 50%, e que nesse momento já haja indícios de controlo do próprio corpo pelo feto (e portanto actividade cerebral consequente). Mas as duas únicas fronteiras biologicamente claras, ao longo das quarenta semanas da gravidez, são mesmo a fecundação e o nascimento: a origem de um indivíduo e a sua separação física da progenitora.
  2. A maternidade é um direito mas não um dever. Eticamente, não consigo valorar um aborto no primeiro mês de forma muito diferente da contracepção de emergência, e um aborto no oitavo mês de forma substancialmente diferente de um infanticídio. Entre as fronteiras biológicas indicadas mais acima (e que têm consequências éticas), parece-me razoável intercalar o momento em que há viabilidade e actividade cerebral – porque a partir daí temos um ser capaz de sentir dor e de que a sociedade teoricamente poderia ocupar-se (uma situação hipotética, com enormes dificuldades práticas…). Mas a liberdade da mãe é também um valor. Não é um descuido, por muito irresponsável que seja, que deve obrigar uma mulher a completar os nove meses de uma gravidez, com tudo o que isso significa de cuidados, privações e investimento emocional. No primeiro trimestre, existe um equilíbrio entre os valores da liberdade da mulher e da vida do embrião/feto, sobre o qual cada mulher deve poder seguir a sua consciência. No segundo trimestre, esse equilíbrio desloca-se a favor do feto, embora as malformações sejam excepções a considerar. No terceiro trimestre, parece-me inaceitável que se aborte.
  3. A vida é um contínuo, que o código penal discretiza. E portanto há contradições dos dois lados: o «não» só seria perfeitamente coerente se defendesse que o abortamento de qualquer óvulo fecundado fosse tratado como um homicídio. Em Portugal, a «pílula do dia seguinte» (que não se sabe se actua antes, durante ou depois da fecundação…) está totalmente despenalizada e é usada abundantemente (foram vendidas 230 mil em 2005), sem que ninguém acuse as utilizadoras de «homicídio» (o que evidencia que a sociedade considera que não é de facto de «homicídio» que se trata). No Código Penal actual, o «crime de aborto» tem a mesma pena no segundo e no oitavo mês, o que é absurdo e só se compreende porque o código penal reduz a prazos «intervalados» o que é contínuo. Se a IVG for despenalizada até às 10 semanas, a maioria das IVG´s será, desejavelmente, realizada nas primeiras seis a oito semanas. Se uma IVG é uma boa ou má opção, só compete a cada mulher decidir, porque só ela pode garantir que a gravidez irá até ao fim. A mim, cabe-me votar no dia 11 de Fevereiro para que possam decidir sabendo que não serão obrigadas à clandestinidade, e cientes de que não serão investigadas ou levadas a tribunal. Evidentemente, votarei «sim» no dia 11 de Fevereiro.

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(Publicado originalmente no blogue Esquerda Republicana.)

23 de Janeiro, 2007 Ricardo Alves

Cristo será eleito rei da Polónia?

Caro leitor, por vezes o surreal é o real. Só mesmo na clericalíssima Polónia é que se encontrariam quarenta e seis deputados dispostos a levar a votação uma moção para eleger «Jesus Cristo» rei da República polaca.

Tendo em conta que a «Virgem Maria» já é «rainha honorária» da Polónia há 350 anos, sem nunca ter abdicado ou desfalecido no cargo, nem mesmo durante a ditadura comunista, teremos uma monarquia dualista. Só falta saber se a pomba também pode ser eleita.

Não se ria, caro leitor. A Polónia existe e faz parte da União Europeia.
22 de Janeiro, 2007 Ricardo Alves

Merkel quer pôr «Deus» na lei fundamental da UE

A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, criticou a «Constituição europeia» ainda em discussão por não conter uma referência às «raízes cristãs» da Europa. Segundo Merkel, «a Europa não é um clube cristão, mas é um clube de valores». É um pequeno progresso: o lema «a Europa é um clube cristão» é da autoria do seu antecessor conservador, Helmut Kohl. Merkel acrescentou: «não aceitaremos, em caso algum, pontos de vista (…) segundo os quais o homem e a mulher teriam oportunidades diferentes».

A chanceler da Alemanha contrastou ainda a «Constituição» europeia com a Lei Fundamental alemã, cujo preâmbulo arranca com um: «concientes da sua responsabilidade perante Deus e os homens…». Informo a senhora Merkel de que esta frase adornou em tempos uma Constituição portuguesa. Era a mesma, veja lá, em que a igualdade perante a lei era ressalvada «quanto ao sexo» pelas «diferenças de tratamento justificadas pela Natureza», o que permitia que às mulheres fossem vedadas certas profissões. Enfim, defender que a igualdade entre os sexos é um valor cristão, é desonestidade pura.
22 de Janeiro, 2007 Ricardo Alves

A mulher que não aperta a mão

Uma agente policial britânica recusou-se a apertar a mão ao seu superior hierárquico. A razão? A religião dela não o permite. Não se sabe como fará para imobilizar um ladrão ou um briguento de rua.

Qual é a religião? A mesma que a faz utilizar um véu. E o Estado britânico acha bem que uma agente policial ande de véu. Agora, também creio que vão «acomodar a diferença» que consiste em não apertar a mão a homens.
19 de Janeiro, 2007 Ricardo Alves

Aqueles para quem a liberdade vale zero

A nota pastoral «Razões para escolher a vida», de Outubro de 2006, foi o documento teórico fundamental sobre a despenalização do aborto produzido pela Conferência Episcopal Portuguesa da ICAR. Apesar de aí se prometer que «nós, os Bispos, não entramos em campanhas de tipo político», a ICAR tem feito exactamente uma campanha de tipo político, que aliás tem sido profusamente documentada no Diário Ateísta (e na qual os bispos têm participado). É também significativo que se afirmasse que «a escolha no dia do referendo é uma opção de consciência, que não deve ser influenciada por políticas e correntes de opinião», e que se procure influenciar religiosamente a campanha: os bispos da ICAR aceitam (com relutância) a autonomia política do Estado, mas recusam a autonomia ética da sociedade.

No documento referido, os bispos da ICAR afirmam «[considerar] a vida humana um valor absoluto», uma valoração incoerente com a possibilidade de pena de morte prevista no parágrafo 2267 do catecismo católico, mas que até por isso é de louvar. (Mas é suspeito que não tenham o mesmo empenho em combater a violência doméstica, como assinala uma leitora católica do Diário Ateísta: «Mulheres mortas por violência doméstica, era um bom tema para uma homilia num domingo, ou uma Nota Pastoral. Nunca ouvi nenhuma».) As razões profundas para a obsessão eclesial com a IVG, que jamais são assumidas pela CEP, devem-se ao facto de evidenciar que existem pessoas que têm relações sexuais sem finalidade procriativa.

Os senhores bispos dizem alguns disparates. Por exemplo, afirmam que «é hoje uma certeza confirmada pela Ciência [que] todas as características e potencialidades do ser humano estão presentes no embrião». As «potencialidades», não tenho dúvidas de que estão todas. Mas todas as características? Será que a actividade cerebral não é uma característica do ser humano? Ou o controlo do corpo? A autonomia biológica não conta? Estranho…

Mas passemos à questão ética. Como escrevi na minha declaração de voto, o dilema fundamental é entre o valor da liberdade da mulher e o valor da vida. Os senhores bispos dizem que «a vida humana, com toda a sua dignidade, existe desde o primeiro momento da concepção». (Em rigor, a vida humana não começa com a fecundação: os espermatozóides e o óvulo são células humanas vivas. Na fecundação, começa um novo indivíduo, ou vários com a mesma herança genética.) No entanto, é muito curioso que, apesar de apregoarem que vêem «toda a dignidade» e um «valor absoluto» no óvulo fecundado, os senhores bispos não lhe dêem a mesma dignidade e valor que conferem a uma criança. Efectivamente, se fossem coerentes, os senhores da CEP defenderiam a criminalização da «pílula do dia seguinte», e que a pena por abortamento correspondesse a um crime de homicídio. Não o fazem, e dizem até que as mulheres que abortam «precisam de ser ajudadas e não condenadas». Fica a impressão de que nem para os bispos da ICAR a vida intra-uterina é realmente um valor absoluto, apesar de afirmarem o contrário. Qual será o valor a partir do qual relativizam o «absolutismo» que, enganosamente, afirmam atribuir à «vida»? A única pista está no facto de citarem o episódio da fonte de Samaria, onde «Cristo» «perdoa» uma mulher adúltera. Portanto, fica a suspeita de que o aborto está mais próximo do adultério do que do homicídio. De qualquer forma, a liberdade não consta, como valor ou sequer como referência, na nota pastoral, o que é coerente com a antipatia católica pela autonomia dos indivíduos.

Para resumir a análise do documento dos bispos da ICAR, uma mera contagem de palavras é suficiente. A palavra «mulher» aparece sete vezes, e a palavra «mãe», três vezes; enquanto a palavra «vida» aparece dezassete vezes. Há uma palavrinha fundamental que não faz parte do léxico católico: liberdade. Aparece zero vezes. Zero.

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18 de Janeiro, 2007 Ricardo Alves

Portugal está mais secularizado do que a Espanha

O artigo do Semanário que a Palmira citou é um exercício de ficção política que raia a paranóia, e que foi nitidamente concebido para atacar Vital Moreira. Com todo o respeito por Vital Moreira, cujo currículo laicista é impecável, o jornal atribui-lhe duas acções que na realidade tiveram a sua origem em tomadas de posição da Associação República e Laicidade (o pedido de retirada dos crucifixos das escolas, e a nova lei do protocolo, na sequência da tomada de posse do PR). Mais, quando o Semanário atribui a Vital Moreira e aos «jacobinos ex-comunistas e anticlericais» intenções de «perseguir» a ICAR, esquece-se que a nova Lei do Protocolo de Estado é uma consequência directa do artigo 4º da Lei de Liberdade Religiosa, um diploma que levou a assinatura do católico militante António Guterres. E esquece-se também de que a presença permanente de símbolos religiosos em escolas públicas é vedada pela mesma lei e pela Constituição de 1976. Portanto, quando falam em «perseguição» a propósito destes assuntos, é o próprio regime constitucional que colocam em causa.

Mas, adiante. Escrevo este artigo principalmente porque a diatribe do Semanário merece ser refutada num ponto particular: afirma-se que «Sócrates não percebeu que essa deriva anticlerical em Portugal não teria o preço da espanhola (…) porque, ao contrário, em Portugal o peso da Igreja é ainda bastante significativo». O erro que consiste em considerar a Espanha actual «menos católica» do que Portugal é comum. Mas é um erro.

Vejamos alguns indicadores. A percentagem de casamentos realizados pelo registo civil, em Portugal, tem sido superior à percentagem espanhola pelo menos desde 1999, com ambas as percentagens em ascensão. Parece previsível, aliás, que o casamento civil passe a ser maioritário em Portugal já em 2008 ou 2009 (em 2005, a percentagem foi de 45%).

Quanto à percentagem de nascimentos fora do casamento, o cenário é o mesmo. Portugal tem maior proporção de nados-vivos de mãe não casada do que a Espanha, pelo menos desde 1999. Em 2005, Portugal já chegou aos 31%.

Conclui-se que, em Portugal, o afastamento em relação ao modelo de família católico é maior do que em Espanha. Os políticos deveriam meditar no significado político destes factos sociais.

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15 de Janeiro, 2007 Ricardo Alves

O artigo que o Público recusou: «Quando parece proibido não festejar»

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O artigo de opinião aqui reproduzido foi enviado ao Público em resposta à «campanha galáctica contra o natal» em que este periódico envolveu a Associação República e Laicidade. O Director do Público recusou-se a publicá-lo por razões que merecem ser citadas: «poderíamos ter publicado o texto em causa se nos tivesse sido enviado como texto de opinião, não nunca o faríamos na posição de alguém que tenta recorrer (…) à lei para nos limitar a liberdade de edição». Em resumo, não foi concedido direito de resposta à ARL justamente por ter sido pedido direito de resposta, uma atitude francamente surreal, como surreal também foi toda a «guerra contra o natal» que este jornal importou da imprensa do Vaticano e dos tablóides britânicos, e na qual nem um décimo dos pseudo-factos apresentados resistiam a uma análise crítica. Haverá mais novidades sobre este assunto muito em breve, no espaço da ARL.

Quando parece proibido não festejar

A liberdade de consciência, de religião e de culto é, felizmente, um dos direitos fundamentais consignados na nossa Constituição. A decorrente liberdade de cada cidadão professar ou não a religião que escolher pressupõe que o Estado, devido ao seu poder coercivo, seja independente das igrejas e neutro em matéria religiosa. A Associação República e Laicidade (ARL), na defesa desses princípios, condena a realização de rituais religiosos e a existência de crucifixos e imagens religiosas em escolas públicas, situações que são comprovadamente ilegais e inconstitucionais. Opomo-nos também à existência de Educação Moral e Religiosa na escola pública, por entendermos que – pelo seu carácter de transmissão de crenças e valores particulares – não deve ser apoiada pelo Estado, embora seja perfeitamente legítima enquanto actividade auto-organizada pelos cidadãos nas suas igrejas e associações. Consideramos ainda claramente preferível que a escola pública, para além dos conhecimentos universais que deve ensinar, apenas transmita valores por todos partilhados, o que não acontece com os das comunidades religiosas que representam apenas segmentos da população portuguesa, mas não a sua totalidade.

A ARL foi incluída na notícia do Público «Quando festejar o Natal é proibido» por ter editado no seu saite uma nota sobre uma peça teatral publicada numa revista de professores. Nessa representação, uma mulher aceita uma gravidez que acontece por decisão de outrém e lhe é anunciada por um «anjo Gabriel», e diz orgulhosamente: «eu sou a escrava do Senhor». Manifestámos o nosso desagrado pela ausência de alternativas a este género de conteúdos, pois é impossível explicá-los sem recorrer à dogmática católica (e a escola pública não é o lugar da catequese), e porque a liberdade, e a maternidade consciente e responsável, nos parecem valores preferíveis àqueles objectivamente promovidos na peça (o Público garante a historicidade dos acontecimentos ali representados, mas muitos teólogos católicos seriam mais prudentes).

O laicismo, como o defende a ARL, visa garantir a liberdade dos cidadãos na esfera privada, individual e associativa, onde se exerce o essencial da liberdade religiosa, impedindo simultaneamente o Estado de ter opinião sobre matérias confessionais. Precisamente por definir limites ao poder do Estado em matérias de consciência, protege os cidadãos contra todos os totalitarismos religiosos ou políticos, designadamente aqueles que proibiriam cultos religiosos – como ocorreu no Portugal da época inquisitorial ou ainda acontece na China do ateísmo de Estado. Situações referidas como «proibição» pelo Público (saudações em cartões da época ou decorações em empresas que não aludem ao «nascimento de Cristo») ocorrem nessa esfera privada onde qualquer cidadão é livre de celebrar ou não o natal, indo à missa ou não, escrevendo «boas festas» ou «santo natal» em cartões, e aceitando ou não trabalhar ou comprar numa empresa que coloca as decorações que entende (por razões comerciais ou outras). Seria totalmente ilegítimo que o Estado interferisse em celebrações privadas, mas felizmente não temos conhecimento de um único cidadão da Europa ocidental ou da América do Norte que tenha sido impedido de celebrar o natal por proibição estatal. Porém, atendendo à secularização que se acentua nas sociedades europeias (em Portugal, no ano de 2005, 31% das crianças nasceram fora do casamento e 45% dos casamentos foram pelo registo civil, indicadores que vêm em crescendo desde o 25 de Abril) é inteiramente natural que haja, a cada novo ano e de forma espontânea, menos presépios e mais saudações como «boas festas».

No que concerne a gestão do espaço público (ruas e praças, meios de comunicação social públicos…), qualquer grupo de cidadãos usa transitoriamente o espaço público para acções de índole variada (política, religiosa, sindical, desportiva…), na condição de posteriormente ceder o lugar a acções de índole diferente ou até contraditória. Não vemos portanto qualquer transgressão da laicidade em manifestações pontuais como o acender público do candelabro de Hanucá no Porto(1). Acrescente-se que todos somos confrontados no espaço público com ideias de que não gostamos: os democratas com ideologias anti-democráticas, os religiosos com críticas anti-religiosas, e os laicistas com o anti-laicismo; todas as ideologias e religiões, em qualquer sociedade aberta, são criticáveis.

Que fique claro que consideramos que a preservação de uma cultura ou religião não pode constituir obrigação primeira de um Estado moderno, mas que já lhe compete garantir a liberdade de cada cidadão manter ou abandonar a opção religiosa em que cresceu. Se os católicos entendem que o Estado tem o dever de promover a sua religião, adoptar os seus símbolos, ou proteger a religião da crítica, colocarão a sua religião numa esfera que a todos pertence – atingindo a liberdade dos outros e monopolizando o espaço público onde cada ideia e o seu contrário deveriam poder saudavelmente cruzar-se.

(1) Pelo contrário, um Estado como Israel, onde o casamento civil não existe – tornando legalmente impossível o casamento entre pessoas de diferentes comunidades religiosas – e onde os divórcios são portanto matéria para tribunais religiosos – que subordinam a mulher ao homem, quer sejam judaicos ou islâmicos – está muito longe do nosso ideal de uma sociedade em que a lei civil seja independente das instituições religiosas.

Com os meus melhores cumprimentos, pedindo a publicação deste artigo,

Ricardo Alves

(Secretário da Direcção)