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Palmira Silva

7 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Do Androids Dream of Electric Sheep? Ou Da Ethos e da Mores

O Ateísmo, uma das poucas palavras a respeito de posições filosóficas de que a maioria das pessoas entende a etimologia e sobre a qual julga saber o suficiente mas normalmente cai em estereotipos e preconceitos reducionistas, não se restringe ao que o dicionário nos informa. Nomeadamente é assumido como indiscutível que moral ou ética são impossíveis sem uma base religiosa e os ateístas são assim estereotipados como indivíduos sem moral.

Nada mais longe da verdade, como espero clarificar nesta série de posts iniciados com Ética, livre arbítrio e pecado original.

Embora por norma se usem indistintamente moral e ética para designar as regras de comportamento que regem as sociedades, o pequeno preâmbulo etimológico que se segue pretende recuperar o significado original de ética que foi perdido no antropocentrismo das religiões do livro. Ou seja, a moral é indissociável da capacidade de salvaguardar o êthos, a morada humana, o planeta Terra global que habitamos.

Ética – do gr. êthos significa originalmente morada, seja o habitat dos animais, seja a morada do homem, lugar onde ele se sente acolhido e abrigado. Derivada desta surge ethos, que restringe a espacialidade à interna e significa carácter e os seus hábitos. A ética será assim a morada humana construída e incessantemente reconstruída a partir do ethos, por um trabalho conjunto da sociedade, possível por consolidação de hábitos e disposições internas que visam o bem comum.

Moral – do latim mores, hábitos ou costumes.

As normas de comportamento ou moral são indispensáveis para o bem estar e sobrevivência de um grupo, seja ele de humanos ou não. Como escreve Damásio2 «espécies animais extremamente simples [podem] exibir comportamentos sociais inteligentes». Assim, desde os primórdios da história da humanidade, o Homem social para sobreviver teve de adoptar uma série de regras, uma moral evolutiva que acompanhou a evolução neuro-biológica e social do homem.

Só é possível uma compreensão do ser do homem se percebermos que a mente, bem como as emoções, a moral e os sentimentos, são indissociáveis dos mecanismos de regulação biológica. Na realidade aquilo a que chamamos moral não é mais que um conjunto de fenómenos biológicos que permitem resposta rápida a estímulos exteriores*. Os avanços científicos em áreas como as neurociências, que estabelecem a ponte entre as ciências da vida e as ciências do homem (antropologia, ciências cognitivas e psicologia), permitem-nos uma explicação livre de dogmas sobre os fundamentos dos nossos comportamentos morais e até explicam a biologia das crenças religiosas.

Voltando ao comportamento ético, o ponto que quis vincar com este post foi o de que a ética tem bases evolutivas e os valores éticos são, ou deveriam ser, aqueles que melhor contribuem para a preservação dos grupos sociais e do respectivo habitat. Na nossa era de globalização quer o grupo social quer o habitat dever-se-iam alargar a toda a Gaia que habitamos. E, especialmente, que a ética ou a moral não têm nada a ver com religião, não obstante a tentativa de apropriação por parte das religiões, cheias de dogmas e tabus irracionais, da supremacia da moral.

A ética cristã assenta na natureza intrinsecamente má do Homem, causada pela dentadinha na maçã da pérfida Eva, e na supressão virtuosa dessa natureza humana, por obediência a ditames divinos. A ética ateísta pretende não só devolver ao Homem a dignidade que as religiões do livro lhe sonegaram como combater o antropocentrismo autista que estas promovem.

Alguma Bibliografia

Sobre as spindle cells, neurónios morais, que existem apenas no homem e, em menor abundância, nos primatas superiores recomendo: um artigo científico nos Proceedings of the National Academy of Sciences (US): A neuronal morphologic type unique to humans and great apes e um artigo para o público em geral, no International Herald Tribune: Humanity? Maybe it’s all in the wiring.

*Sobre a moral biológica:

1- Richard Dawkins O Gene Egoísta (Gradiva- Colecção Ciência Aberta)

2- António Damásio Ao Encontro de Espinosa: As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir (Publicações Europa-América, 2003)

3- William A. Rottschaefer The Biology and Psychology of Moral Agency (Cambridge Studies in Philosophy & Biology)

4- The Neural Correlates of Moral Sensitivity: A Functional Magnetic Resonance Imaging Investigation of Basic and Moral Emotions

5- The Neural Basis of Altruistic Punishment

6- An fMRI Investigation of Emotional Engagement in Moral Judgment

7- Social Cognition and the Prefrontal Cortex

2 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Pedofilia: Falência da ICAR nos US?

Mais de uma dúzia de arquidioceses americanas consideram a declaração de falência na sequência de milhares de acusações de pedofilia perpetrada por padres e outros eclesiásticos da ICAR. Na realidade, um estudo realizado pelo John Jay College of Criminal Justice, em Nova Iorque, indica que pelo menos 4% dos padres em funções no período compreendido entre 1950 e 2002 foram acusados de abuso sexual de menores.

Em 1997 a arquidiocese de Dallas tinha ameaçado declarar falência na sequência de julgamentos em casos análogos. As vítimas deveriam receber 119 milhões de dólares mas, para evitar a falência dessa delegação da ICAR, contentaram-se com pouco mais de um sexto do valor estipulado pelos tribunais: 23 milhões de dólares.

A arquidiocese de Boston já tinha considerado o recurso à falência antes de decidir pagar 85 milhões de dólares às vítimas.

Menos sorte teve a delegação da ICAR em Portland, Oregão, que, para evitar ir a um julgamento com consequências desastrosas e sem hipótese de aligeiramento do montante a pagar, invocou há pouco mais de um mês o capítulo 11 da lei da falência americana. A arquidiocese de Tucson, Arizona, anunciou em Junho passado que está a considerar invocar o mesmo artigo para evitar o julgamento marcado para este mês e as previstas muito pesadas indemnizações. Mais uma falência ou uma tentativa de emular o que aconteceu em Dallas?

A arquidiocese de Los Angeles enfrenta processos que no total correspondem a um bilião e meio (americanos) de dólares de indemnizações. Outra falência à vista? Ou outra chantagem?

Sobre a invocação do capítulo 11 como fuga para a frente da ICAR ler:
The Risk of Bad-Faith and Noncooperative Church Bankruptcies
What happens when a church goes bankrupt?
Bankruptcy seen as dioceses’ shelter
Artigo de capa do periódico católico OSV: Should Boston go bust?
Q&A: Archdiocese bankruptcy

2 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Notícias de África

Bébés concebidos por milagre

O evangélico Gilbert Deya, que dirije uma igreja londrina com ramificações em África, especializada em concepções miraculosas, foi acusado de tráfico de crianças quenianas. Quando da prisão as autoridades recuperaram 21 crianças, algumas com apenas algumas semanas. Os bébés produzidos através do milagre da oração vão agora ser sujeitos a testes de ADN.



Genocídio no Ruanda


Começa finalmente em Setembro o julgamento do padre católico Athanase Seromba no International Criminal Tribunal for Rwanda (ICTR) em Arusha, Tanzânia. O padre Seromba é um dos membros da ICAR envolvidos no genocídio que ocorreu há 10 anos no Ruanda. Genocídio de quasi um milhão de Tutsis e hutus moderados conduzido sob o olhar indiferente e muitas vezes colaborante da ICAR. O padre é acusado de ter promovido o assassínio de milhares de Tutsis que se tinham refugiado na sua igreja de Nyange, onde os trancou. A igreja foi depois arrasada por bulldozers com os refugiados lá dentro.

Duas freiras foram condenadas em 2001, por um tribunal belga, a 15 e 12 anos de prisão, Gertrude Mukangango e Maria Kisito, pelo seu envolvimento no massacre de 7000 Tutsis que se tinham refugiado no convento Sovu em Butare, no sul da Ruanda. Não obstante os protestos do Vaticano. O Papa João Paulo II, como precaução, escreveu uma carta em 1996 em que afirma que a Igreja não pode ser responsável pelo comportamento de alguns dos seus membros.

Membros como os padres Hormisdas Nsengimana, reitor do colégio Christ-Roi em Butare, e Emmanuel Rukundo, capelão do exército ruandês, ambos à espera de julgamento por crimes de genocídio.

Carta da African Rights ao Papa João Paulo II em relação ao envolvimento de eclesiásticos da ICAR no genocídio de 1994.

30 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Ética, livre arbítrio e pecado original

Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,

Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,

Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,

Porque é preciso existir para se criar tudo,

E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,

E ser possível haver ser é maior que todos os deuses


Fernando Pessoa

Deve-se a Dario Hystapis, um dos grandes reis aqueménidas (538-330 a.C.), um fenómeno que perdura até ao século XXI, a atribuição ao governante da defesa do Bem e da Verdade, projectando sobre seus adversários, quaisquer que sejam, a pecha de serem os defensores da mentira e do mal. Integrado na civilização ocidental, constitui, de facto, a essência da Ideologia, essa «religião civil» da nossa época ou meme comum aos vários memeplexos políticos actuais.

O origem dessa dicotomia ética aplicada à política encontra-se no dualismo original da religião persa, codificada por Zarathushtra ou Zoroastro, em que Ormudz ou Ahura Mazda é o detentor da bondade e veracidade, em oposição a Arihman, o «grande satã», deus do mal e da mentira.

Continuada por Mani ou Manes (séc. III), que criou uma religião que pretendia ser ecuménica, o maniqueísmo, em que são integrados elementos do hinduismo, zoroastrismo e cristianismo. O maniqueísmo é fundamentalmente uma versão de gnosticismo, para o qual a salvação depende do conhecimento (gnose) da verdade espiritual. Como todas as formas de gnosticismo, prega que a vida terrena é dolorosa e inevitavelmente perversa. Essencialmente para o maniqueísmo há uma eterna guerra entre dois princípios primários que seriam o Bem e o Mal. E, como o artigo da Mariana demonstra, bases maniqueístas permeiam ainda hoje a ética da ICAR.

Na realidade, a maior parte dos sistemas éticos absolutos associados às religiões do livro está baseada numa dualidade simplística de recompensa e castigo, céu e inferno, em que as religiões reveladas e seus legítimos representantes são os árbitros finais da verdade. Decidindo quem são os bons e quem são os maus. Mas que levanta a questão: se Deus é omnipotente e todos os restantes omni, qual a origem do mal? Para ver como a ICAR resolveu a aparente contradição dogmática nada melhor que as palavras do grande teólogo do cristianismo, Agostinho de Hipona.

«Peço que me digas se Deus não é o autor do Mal.»

Assim é aberto por Evódio o diálogo «O Livre Arbítrio», evidenciando que a suspeita de que o Mal possa ser atribuído a Deus era algo comum à época, e especialmente desafiador para alguém, como Agostinho, que fora um maniqueísta. Se, para o Cristianismo, existe apenas uma entidade suprema e eterna, Deus, e se dele tudo provem, também seria ele a fonte do Mal. Para responder a essas interrogações Agostinho elabora este diálogo.

Sugere ser o livre arbítrio a origem do Mal, uma fardo incómodo que só pode ser alijado por sujeição à vontade divina, expressa nas regras reveladas e respectiva interpretação por quem representa o Bem na Terra . Pode-se notar também uma correlação com a doutrina socrática de que a ignorância é a raiz do Mal, uma vez que o mal decorreria da falta de instrução. Para Agostinho a ignorância de Deus e da vontade divina resultam necessariamente no Mal devido ao pecado original (de notar a obsessão de Agostinho, pelas razões que apontei num post anterior, pela lascívia, um pecado especialmente abominável).

«Homens maldizentes rosnam entre si, pecando e acusando a todos menos a si mesmos, a seguinte questão: Se foram Adão e Eva que pecaram, porquê nós, que nada fizemos, nascemos com a cegueira da Ignorância e os tormentos da Penosidade?

– Basta responder que existem aqueles que vencem a lascívia. Uma vez que Deus está em toda a parte, a ninguém foi tirada a capacidade de saber e indagar vantajosamente o que desvantajosamente se ignora.

– Aquilo que se pratica por ignorância ou por fraqueza, denominam-se pecados porque retiram sua origem do Pecado Original.
» [Capítulo XIX -A Negligência é culpável]

Assim, uma característica da doutrina cristã é negar a capacidade intrínseca humana para agir bem sem intervenção da divindade. Ou como afirma Feuerbach, em «A Origem do Cristianismo», é uma projecção de todas as boas qualidades humanas no exterior, no Deus do Cristianismo, deixando ao homem apenas o reprovável. Tema que será retomado num próximo post já que a negação do comportamente ético, da existência de uma moral fora da religião, é frequentemente utilizado como arma de arremesso contra os ateus. Porque temos quasi dois milénios de condicionamento social e alguns dogmas religiosos foram secularizados, este quiçá o mais pernicioso, urge efectivar a separação Moral-Religião!

24 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Women on Waves em Portugal

Li hoje no Expresso online que o barco da organização holandesa Women on Waves vai estar ancorado ao largo de Portugal no período entre 29 de Agosto e 12 de Setembro, a convite de quatro associações portuguesas. Para possibilitar o que a moral absoluta da ICAR nega às mulheres portuguesas (e na Irlanda, Polónia e Malta): a realização em condições dignas e seguras, acessíveis a todas as restantes mulheres europeias, da interrupção voluntária da gravidez.

Ao Estado, como centro legislador da cidadania, compete respeitar as normas seculares da ética, que não dependem de credos religiosos. A necessidade da separação religião-ciência e religião-estado são, hoje em dia, inquestionáveis no mundo Ocidental mas foram conquistas obtidas à custa da vida e liberdade de muitos indíviduos. O que falta ainda assegurar, que na realidade constitui um desafio da modernidade, é a separação religião-moral (e ética). Em relação à interrupção voluntária da gravidez, dada a complexidade e diversidade dos valores e interesses envolvidos, torna-se inviável afirmar uma ética apenas com base em paradigmas em voga ou dogmas religiosos que narcotizam. É necessário reconhecer e respeitar morais individuais mas aceitar que o direito (a ética da polis) deve reflectir uma moral para todos e não apenas para os que professam determinadas crenças.

Assim, a decisão por uma IVG não compete ao Estado nem a uma determinada religião: é uma decisão individual que compete à mulher ou ao casal.

23 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Da ICAR e da polis, IV: laicidade

O século XIX foi um século marcante para a laicidade. Com grande luta dos sucessivos papas. No início do século XIX surge em Itália o Risorgimento, isto é, o processo que conduziu à reunificação da Itália e que culminou com a perda dos estados papais, apesar de todos os esforços envidados por Pio IX na manutenção dos territórios pontifícios sob autoridade papal.

Pio IX fugiu de Roma para Nápoles levando como conselheiro político Marcantonio Pacelli, avô do Pio XII de má memória. De Nápoles invectivou a «ultrajante traição da democracia» ameaçando de excomunhão todos os italianos que se atrevessem a votar.

O Santo Pio publicou a encíclica Quanta Cura afirmando que os princípios de filosofia, ciência moral e as leis civis podem e devem ser feitos para se curvarem às autoridades divinas e eclesiásticas, seguida pouco depois do Syllabus errorum, no qual condenou os erros do modernismo, mais concretamente 80 erros monstruosos das «ideias modernas», condenando a democracia como um «princípio absurdo», a liberdade de opinião como «loucura e erro» e condenando especialmente o laicismo, terminando com o último erro atroz a que se arrogavam os laicistas: de que «o sumo pontífice podia e devia reconciliar-se com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna».

O acesso de Leão XIII ao papado em 1878 moderou um pouco o tom da guerra aberta entre o Vaticano e as democracias emergentes mas este também descreveu qualquer noção de separação de Igreja-Estado como erro fatal. No contexto italiano, era especialmente condenatório dos Maçãos e das ideias liberais destes. Descreveu-os como parte do reinado do Mafarrico, em luta contra a Igreja e a Cristandade. Uma conspiração em andamento que perigava a própria fábrica da civilização cristã. Expresso na encíclica Immortale Dei de 1885.

As primeiras décadas do século XX foram um tempo de grande ansiedade entre os líderes católicos na Alemanha, França, Polónia, especialmente apreensivos de que o modelo liberal da República de Weimar, associado com judeus e hereges ateus, iria causar o colapso total da noção cristã da ordem social e política. Apreensão essa partilhada por muitos líderes protestantes. O Papa Pio XI expressou a esperança de que o colapso do mercado e a experiência da brutalidade da Revolução Russa afastassem as pessoas na Europa dos laicos liberalismo, democracia e socialismo na direcção da visão tomista dos regimes «bons».

Os dois papas da era do Holocausto, Pio XI e Pio XII, actuaram no âmbito de uma cruzada contra o laicismo. Não eram exactamente grande fãs do nazismo (especialmente Pio XI) mas… quer o fascismo quer o nazismo eram opções de longe preferidas para proteger os interesses institucionais católicos. Com os quais colaboraram entusiasticamente.

23 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Da ICAR e da polis, III: Renascença

Um dos grandes teólogos do catolicismo, o inescapável Tomás de Aquino, explica na Política que os governos de um só, de alguns e de muitos podem ser bons ou maus, legítimos ou ilegítimos. Nos bons, o primeiro chama-se monarquia ou reino, o segundo, aristocracia, e o último politia (república). Os maus regimes designam-se por tirania, oligarquia e democracia, respectivamente. A cristianização deste conceito aristotélico dá-se apenas em que na política tomista os bons e maus regimes distinguiam-se tão só pela religião dos seus governantes. Se fossem católicos e impusessem o catolicismo aos governados os governos eram bons; caso contrário seriam maus.

Durante a Idade Média o direito divino não foi contestado até porque a população não tinha acesso a educação e era mantida num estado santo de ignorância e obscurantismo. Não obstante, mesmo durante a imersão da Europa na estagnação intelectual e sedimentação do poder feudal na Idade Média, e apesar dos rígidos padrões de controle do pensamento pela estrutura eclesiástica, surgiram vozes dispersas que se insurgiam contra o abuso e a arrogância do poder de Igreja de Roma.

Mas a peste negra que dizimou milhões de europeus alterou radicalmente a estrutura sócio económica europeia. Havia poucos trabalhadores, sem preparação para as muitas tarefas que necessitavam ser feitas pelo que relutantemente foi permitido o acesso à educação. E o nível de vida dos então poucos trabalhadores melhorou substancialmente. O que propiciou a Renascença em que se redescobriram as diversas escolas filosóficas greco-romanas (nomeadamente as proscritas como o epicurismo/atomismo) e se assistiu a um privilegiar da educação.

Ironicamente a própria ICAR pode ter dado uma ajuda para criar as condições socio-económicas que propiciaram a Renascença. Numa fúria persecutória para erradicar especialmente o culto pagão da deusa Freia (ou Frigga) associada aos gatos estes foram chacinados aos milhões (os gatos sempre estiveram associados a deusas da fertilidade como Bastet no Egipto, Afrodite na Grécia, Vénus no panteão romano e Cerridwen no culto celta). Os gatos foram completamente exterminados em cidades como Veneza. A sua morte foi incorporada numa série de rituais católicos, simbolizando o Demo sob o controle da Igreja. Por isso quando a pulga Xenopsylla cheopis com a variante patogénica do bacilo Pasturella pestis, que se crê estar na origem do flagelo, atravessou com os ratos dois continentes, vinda das estepes asiáticas, as epidemias de peste negra assumiram proporções catastróficas apenas nos países católicos.

Na Renascença o governo por direito divino foi contestado por Machiavelli (final século XV princípio século XVI), que introduziu uma nova concepção de Política, separando o pensamento racional político da religião e da moral religiosa. Ainda hoje, maquiavélico é conotado como algo negativo porque Machiavelli no seu Príncipe (inspirado em César Bórgia, filho do papa Alexandre VIII) foi o pioneiro a contestar o direito divino e propôr a separação igreja-estado.

Conceito retomado no século seguinte por Mandeville, Voltaire, John Locke, Thomas Hobbes, Montesquieu, et al., que culminou no iluminismo e na Revolução Francesa com os seus conceitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade e começaram a fazer perigar no mundo ocidental a hegemonia da Igreja Católica na esfera política. Contra o que ela lutou de unhas e dentes. Por exemplo Clemente XII, em 1738, 32 anos depois da Independência dos Estados Unidos, debitou a Bula In Eminente em que institui a excomunhão para quem integrasse grupos que promoviam o que considerava serem ideais incriminatórios e contra os princípios da Igreja, nomeadamente: a pretensão de legislação sem os auspícios da ICAR; a separação entre Estado e Igreja e a existência de educação laica.

20 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Da ICAR e da polis, II: direito divino

Não obstante Constantino ter sido um mitraista até morrer, convocou o Concílio Ecuménico de Niceia (325) onde codificou uma religião baseada naquela que julgou mais conveniente para garantir a unidade do Império, incorporando vários elementos do seu culto pessoal ao Deus-Sol Mitra. Controlou os bispos oferecendo-lhes palácios, dinheiro e outras benesses exercendo grande influência nas decisões doutrinais e disciplinares. Nomeadamente foi por pressão de Constantino que se aprovou no Concílio de Niceia, por um voto, a divindade do suposto criador da seita (negada por boa parte dos cristãos, nomeadamente os arianos) e a santíssima trindade. Promoveu a alteração do dia de culto do Sábado, o sabbatt judaico, para Domingo, dia do Sol, o dies Domenicus ou dia do Senhor. Introduziu no cristianismo a liturgia mitraica, nomeadamente a cerimónia da missa, decalcada da Myazda mitraica, uma partilha sagrada de pão e vinho numa cerimónia cheia de incenso e água sagrada em que o sacerdote mitraica, o Papa, revivia a última refeição de Mitra e dos seus 12 apóstolos. Enfim, as coincidências entre o culto mitraico e o cristianismo codificado por Constantino são tantas que eventualmente lhes dedicarei um artigo!

Sicut indignissimum, édito de Constantino de 3 de Julho de 321, que entre outras coisas rezava: «Que todos os juízes, e todos os habitantes da cidade, e todos os mercadores e artífices descansem no venerável dia do Sol».

A intenção de Constantino de transformar a Igreja no braço espiritual do Império prevaleceu mesmo depois da desmoronamento do Império no Ocidente. Foi-se o Império mas permaneceu o braço. De ferro, já que a Igreja arrogou-se à supremacia universal. Os poderes temporais deviam submeter-se ao Papa, a autoridade máxima. Assim, a hierarquia eclesiástica de Roma foi o denominador comum das monarquias ocidentais até à Renascença.

Especialmente depois de produzida a falsificação mais famosa da História, a doação de Constantino, «Constitutum domni Constantini imperatoris» , cuja autenticidade se manteve indiscutível até ao século XV, altura em que Nicolau de Cusa (1401-1464) refere como estranho o bispo Eusebius de Cesareia, contemporâneo e biógrafo de Constantino, não ter mencionado a doação do imperador. Confirmada como uma falsificação grosseira em 1440 por Lorenzo Valla, a Doação de Constantino pretendia ser uma carta de Constantino dirigida ao papa Silvestre I em 30 de Março de 315, na qual lhe o Imperador lhe concedia autoridade sobre todo o Império Romano, doando-lhe o palácio de Latrão, as insígnias, vestes e os poderes imperiais romanos, não só sobre a Itália como sobre todas as demais províncias do Império. Declarava ainda que o bispo de Roma era o «Vigário de Cristo» a quem concedia o estatuto de Imperador. As vestes e insígnias imperiais foram supostamente emprestadas a Constantino, que as vestia com permissão eclesiástica.

Com esse documento, a Igreja reivindicou o direito de coroar e depor monarcas, e o papa tornou-se o supremo mediador entre Deus e os reis. Com base nesse documento o Papa Adriano IV reconhece (e dá ajuda militar para a concretizar) a Henrique II da Inglaterra a soberania sobre a Irlanda, obtendo como contrapartida o reconhecimento do rei britânico da supremacia papal. Dando origem a um conflito sangrento que permanece até hoje.

20 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Da ICAR e da polis, I : O legado de Constantino

«Uma religião que declarasse levianamente [unbedenklich: de maneira leviana, sem reflexão] guerra à razão não resistiria muito tempo» A religião nos limites da pura razão, Immanuel Kant

A Igreja Católica que hoje conhecemos surgiu pela mão de Constantino numa tentativa de unir pela religião um Império Romano em decadência. Em que todos os créus, pela autoridade divina do braço religioso do Império, a Igreja de Roma, seriam compelidos a lutar pelo Império e espalhar a fé. Ou seja, é desde o Concílio de Niceia uma igreja política e assim permanece até hoje.

À época de Constantino o Império Romano tinha sido desmembrado por Diocleciano, na corte de quem este passou a juventude. O pai de Constantino, Constâncio Cloro era membro da tetrarquia criada pelo imperador (que incluía ainda Maxêncio, Maximino e Licínio). Depois da morte de Constâncio, as legiões comandadas por Constantino aclamaram-no imperador. Em Roma, o título de Constantino não foi reconhecido e após a morte de Galério (310) surgiram novos pretendentes ao império. Aliando-se a Licínio, derrotou Maxêncio e Maximino e dividiu com o primeiro o império. Para garantir a estabilidade do Império publicou em 313, conjuntamente com Lícinio, Imperador do Oriente, o Édito de Milão em que é garantida a liberdade de culto aos cristãos.

Mas o livre culto religioso estendido aos cristãos não era suficiente para cumprir o sonho de Constantino: um retorno da unidade, hegemonia e glórias passadas de um Império Romano em convulsão. Até porque os supostamente perseguidos cristãos se revelaram perseguidores de pagãos e daí nasceram novas desordens. Além disso não se alistavam no exército renascido de que Constantino precisava (e ver-se livre de Licínio, claro, mas isso esperou uns anitos).

Era necessária uma religião suficientemente forte para se impor aos povos dominados por Roma; para consolidar na crendice indissociável dos povos da época o poder conquistado pela força. Uma religião autoritária, rígida, inflexível, estabelecida mediante poderes, leis e morais terrenas. Assim começou o Catolicismo: um expediente político para tornar a Religião Imperial Católica Apostólica Romana a Toda Poderosa, nominalmente predicando o perdão mas de facto imposta e sustentada pela força da espada.

16 de Agosto, 2004 Palmira Silva

Da sexualidade e da ICAR, II: Contra Natura

O pessimismo sexual de Agostinho, intensificado pelo Responsum do Papa que inventou os sete pecados mortais, Gregório Magno (590-604), «O prazer sexual nunca ocorre sem pecado», dominou a época da escolástica, «a idade áurea da teologia», como é chamada. O expoente máximo dos escolásticos, Tomás de Aquino, a autoridade católica em questões sexuais depois do inenarrável Agostinho, criou todo o contexto para a demonização do sexo e ainda cunhou a expressão contra natura para se referir à homossexualidade.

Tomás de Aquino incorpora o empirismo aristotélico ao idealismo platónico agostiniano. A citação tomista «A geração de uma mulher resulta de defeitos no princípio activo» é inspirada na prosa de Aristóteles, que afirmava, a comprovar a sua inferioridade, terem as mulheres menos dentes que os homens (História dos Animais, livro 2, parte 3). E representa a convicção de Aquino de que a mulher é imperfeita, inferior ao homem física, moral e psicologicamente.

A responsabilidade do Malleus Maleficarum, o Martelo das Bruxas, (1484) do Papa Inocêncio VIII, 200 anos depois da morte de Tomás, não pode ser atribuída a este outro ilustre santo, mas sem a crendice supersticiosa de Aquino na relação sexual com o demónio e a sua exortação à destruição dos hereges, aquele documento, responsável pela morte na fogueira de incontáveis «bruxas», não seria concebível.

Outro eclesiástico que difundiu a tendência feminina para copular com o demo foi o franciscano galego Álvaro Pelayo ou Pais, que enquanto bispo de Silves teve graves discórdias com Afonso IV de Portugal em relação aos impostos cobrados sobre os bens eclesiásticos (para sustentar a guerra do monarca contra Castela). Este redigiu por volta de 1330, a pedido de João XXII de quem foi confessor, o «De Statu et Planctu Ecclesiae» (Do Estado e Pranto da Igreja) dirigido ao mundo dos «clérigos encarregados de dirigir as consciências». Esse primor de misoginia e retrato dos vícios que assolavam a ICAR da época traz um catálogo de 102 «vícios e más acções» da mulher. Um destes era a cohabitação com demónios. Testemunhado in vivo num convento de freiras pelo próprio frei, que foi incapaz de pôr cobro à tal repugnante prática.

No entanto, toda esta regulamentação do sexo, que incluia considerar como pecado qualquer desvio à posição «normal» dita de missionário no léxico corrente (excepto nos casos regulamentados como, p.e., obesidade comprovadamente renitente) destinava-se exclusivamente aos créus seculares, já que escândalos sexuais como os recentes são recorrentes na História da Igreja.

Com um nadir no conturbado período conhecido pelos historiadores como pornocracia entre o final do século IX e o início do século XI, período em que um terço dos muitos papas que o agraciaram morreu de forma violenta. De um texto na Enciclopédia Britânica sobre a desmistificação da lenda urbana da papisa Joana podem retirar-se alguns dados «abonatórios»:

«Pope John X., elected in 914, owed his elevation entirely to his mistress Theodora, whose beauty, talents, and intrigues had made her mistress of Rome about the beginning of the tenth century. At a late period Theodora’s daughter, Marozia, wielded a similar influence over Sergius III., and finally raised her son by that pope to the pontifical throne, with the title of John XI. At a still later period, John XII. was so completely governed by one of his concubines, Raineria by name, that he entrusted to her much of the administration of the holy see.»

O papado conheceu mais períodos marcados por imoralidade e corrupção, a Renascença proeminente entre eles. Uma das causas da reforma Protestante, apesar de alguns excessos no que respeita a indulgências por parte de Giovanni di Lorenzo de Medici, o papa Leão X, terem ajudado.

Nesta época, destacam-se Pio II, um celebrado autor de literatura erótica antes de assumir o papado. E pai de uma prole considerável. Ou Inocêncio VIII, o tal que de tão preocupado com a cópula com o demónio tinha encomendado o manual de caça às bruxas, que, menos preocupado com a cópula terrena, deixou 16 filhos, igualmente repartidos pelos dois sexos: Octo Nocens pueros genuit, totidemque puellas; Hunc merito poterit dicere Roma patrem. Sobre os excessos (sexuais e não só) de Alexandre VI, Roderigo Borja ou Bórgia, acho que não é necessário acrescentar algo. Mas podem relembrar os factos mais importantes.

E quem estiver interessado em saber mais sobre a actividade sexual de um papado tão devotado ao longo dos séculos em controlar a vida sexual dos outros pode encomendar o livro de Nigel Cawthorne «Sex life of the Popes».