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Palmira Silva

27 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Direito ao contraditório

Diz o piedoso e temente a Deus Timóteo que o ateísmo é incompatível com a paz, a justiça e os direitos do homem já que estes são valores cristãos, acrescentando que qualquer ímpio que os defenda é necessariamente um crente inconsciente da benesse da fé.

Curiosamente não parece ser essa a opinião oficial da Igreja, inclusive a mais recente. Abordando neste primeiro post apenas os direitos humanos expresso desde já a minha preocupação pelo óbvio desvio dogmático apresentado pelo Timóteo. Temendo as consequências para a salvação da alma de tão ardoroso defensor e propagador da fé remeto-o aos ensinamentos da santa Igreja de Roma, alguns pronunciados com a inegável infalibilidade papal!

Dizia o Cardeal Renato Raffaele Martino aos 18 de Março de 2004 que «O itinerário histórico da tradição cristã dos direitos humanos não foi um itinerário pacífico.» Com este eufemismo quer o santo prelado referir-se às excomunhões sortidas dos seus proponentes, por exemplo, pela Bula In Eminente de Clemente XII, em 1738, 38 anos antes da Independência dos Estados Unidos e quando as ideias demoníacas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade começaram a infectar perigosamente a Europa.

«Com efeito, foram manifestadas por parte do Magistério da Igreja muitas reservas e condenações face ao afirmar-se dos direitos do homem após a Revolução francesa; mas estas reservas, repetidamente manifestadas por Pontífices, especialmente no século XIX, deviam-se ao facto de que tais direitos eram propostos e afirmados contra a liberdade da Igreja, numa perspectiva inspirada pelo liberalismo e pelo laicismo.» Este repetidamente devia de facto ser exaustiva e constantemente, nomeadamente pelo beato Pio IX, nas suas múltiplas encíclicas devotadas ao assunto, como as encíclicas Quanta Cura, Qui pluribus e Singulari quidem, o Syllabus errorum ou a alocução Maxima quidem, certamente desconhecidas pelo Timóteo.

Mas se quiser reflectir sobre infalibilidades mais actuais, relembro-lhe as palavras do Papa João Paulo II, que se queixou da «Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia», enaltecendo por oposição a união europeia de Carlos Magno já que «De facto a Europa, que não constituía uma unidade definitiva sob o ponto de vista geográfico, unicamente através da aceitação da fé cristã se tornou um continente, que ao longo dos séculos conseguiu difundir aqueles seus valores em quase todas as outras partes da terra, para o bem da humanidade», ou seja, exaltando os valores cristãos da Idade Média. Nos quais mesmo o mais ardoroso arroubo de fé consegue imaginar sequer uma caricatura de direitos humanos (para não falar em justiça e paz). O que seria expectável, já que o direito divino, o direito revelado nas sagradas Escrituras, nem uma única vez menciona quaisquer direitos dos execráveis homens (Cardeal Ratzinger dixit).

Ou seja, segundo a crítica de João Paulo II, a nova Carta Europeia assenta no ateísmo, decorrente da inexistência de sequer uma referência a Deus. Princípios ateístas que regeram todas as Declarações dos Direitos do Homem e congéneres, desde a Revolução Francesa (1789) até hoje, incluindo a da ONU (1948) bem como a da União Europeia actual. Portanto, a crítica de Sua Santidade atinge, implicitamente, todas as Declarações anteriores. Que concentram os «considerandos» na negação implícita da existência de Deus, Uno, Eterno e Triuno, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis, conforme definido e resumido no primeiro artigo do Credo.

Assim, a Declaração dos Direitos do Homem e seus rebentos, seguindo os traços da sua antecessora de 1789, eliminando Deus, substituiu as virtudes teologais, a Fé, a Esperança e a Caridade, pelo ideal ateu da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Recordemos ainda que para um cristão a vida na Terra, manchada indelevelmente pelo pecado original, deve ser um «vale de lágrimas», como recitam os créus na Salve Rainha e a paz sinónimo da vontade de Deus tal como afirmada por Gregório Nazianzeno «A vontade de Deus é a nossa paz»! Isto é, a pretensão de estabelecer um paraíso na Terra, assegurando a paz, a liberdade, a igualdade, a fraternidade, é uma heresia pelagiana alimentada no humanismo renascentista e no iluminismo ateísta, que pretende substituir Deus pelo homem!

26 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Ainda o caso Buttiglione

Querer transformar o episódio Buttiglione numa disputa sobre liberdade de pensamento é um sofisma mal disfarçado. Porque Buttiglione já provou que o seu fundamentalismo católico não se restringe ao campo filosófico e que a sua vontade de legislar sobre «pecados» é bem real.

Como é indicado no artigo uma Ópera Bufa Italiana, no jornal The Economist, de que transcrevo, traduzo e comento (a negrito) um pequeno excerto.

«No entanto, quando Mr. Buttiglione reclama que está a ser perseguido pelos seus pensamentos e não pelas suas acções, está a ser desonesto. Ele é membro vitalício de uma organização conservadora, Comunhão e Libertação, conhecida por tentar trazer os valores religiosos para a vida política (obviamente contra a laicidade consagrada nos Estados Europeus). Depois de ter sido nomeado Ministro dos Assuntos Europeus em 2002, Mr Buttiglione causou admiração nos seus colegas com uma série de exigências que iam muito para além das suas competências. Em poucos dias solicitou a proibição legal da inseminação artificial, solicitou o financiamento estatal para estabelecimentos de ensino privados (católicos, claro) e o pagamento de verbas a mulheres que rejeitassem o aborto (e tornar mandatória terapia familiar nos casos em que o suborno não resultasse, tudo isto, claro, depois de tentar alterar, unfrutiferamente, a lei do aborto italiana

Ou seja, Buttiglione já deu provas suficientes de que, contrariamente ao que os seus indignados defensores bramem, vai fazer o possível e o impossível para transpor para o corpo da lei os dogmas anacrónicos da Igreja de Roma. Para obviar à evidente inadequação do piedoso senhor nas áreas direitos fundamentais, antidiscriminação e igualdade de oportunidades, Durão Barroso pretende retirar-lhe essas competências e transferi-las para um grupo de comissários presidido pelo nosso ex-primeiro ministro. Isto se amanhã o Parlamento Europeu não decidir democraticamente vetar uma Comissão Europeia que inclui numa pasta tão fundamental alguém com o perfil de Buttiglione.

25 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Intolerâncias

«The right to search for truth implies also a duty: one must not conceal any part of what one has recognized to be true. (O direito à busca da verdade implica também um dever: não se pode esconder alguma parte do que se reconheceu como verdade)» Albert Einstein.

Por contingências profissionais apenas este fim de semana tive disponibilidade para espreitar a blogoesfera católica nacional e finalmente satisfazer a curiosidade despoletada pela crítica do Filipe a um post do Diário Ateísta. Devo confessar que fiquei estarrecida!

No primeiro blog em que me detive envolvi-me numa discussão acesa acerca de uma afirmação velada do Timóteo no post O caso Buttiglione que insinuava ser prática de ateus e agnósticos comerem criancinhas ao pequeno almoço (obrigado Luís pela simplificação simbólica dos dislates do Timóteo).

O meu pasmo intensificou-se quando, motivado pela negação do Timóteo da possibilidade de existência de um sistema moral fora dos auspícios divinos, o meu desabafo: «Para os cristão a paz, a justiça e o respeito pela natureza são heresias ateístas (de facto foram ateístas que as introduziram…) e como tal sem valor se não forem a paz (?) e a justiça (?) de Cristo. O respeito pela natureza então é uma dupla heresia de inspiração pagã porque um bom cristão sabe que Deus fez o homem à sua imagem e criou a Terra com todo o seu recheio biológico para os restantes habitantes se sujeitarem ao Homem… O beato Bellarmino queimou vivo Giordano Bruno por este se opor a esta visão da Terra…» é respondido pelo Timóteo com a inesperada apropriação de valores ateístas: «Para um cristão a paz, a justiça, nomeadamente a justiça social e ambiental (sendo esta apenas um ramo da justiça social), não são heresias. São os nossos valores. E gostamos que certos ateus também os defendam. Só é pena é que estes apenas pretendam defender estes valores por conveniência utilitária (que, enquanto conveniência de circunstância, é um valor simplesmente relativo). É que se os defendem apenas porque acreditam neles são crentes (que apenas não se assumem como tal).»

Ou seja, depois de ter manifestado o meu assombro pela apropriação abusiva pelo digno prelado Martino, em nome da santa Igreja de Roma, dos créditos da ciência ocidental, sinto-me sem adjectivos para qualificar a afirmação deste créu católico que desconsidera de cruz todos os ateístas (ateus e agnósticos no meu léxico) como amorais, ou mais exactamente imorais, e reinvidica para os crentes os valores introduzidos por ateístas impenitentes.

Assim, gostaria apenas de relembrar ao piedoso Timóteo que a justiça social, quer em sentido restrito quer lato, só muito recentemente foi incorporada no léxico católico, mais especificamente no léxico católico laico, já que os dignatários do Vaticano continuam a reiterar, por oposição, a justiça divina, como já tive oportunidade de indicar. Nomeadamente na voz do cardeal Ratzinger que se lamentava recentemente «Não é um bom sinal que muitos ambientes cristãos se caracterizem hoje não pela fé na Trindade, mas na fé de uma tríade repetitiva como mágica: ‘Paz, justiça, respeito pela natureza’».

Mais, quiçá será uma surpresa para o Timóteo terem sido ateístas que combateram eficazmente a escravatura, por cujo apoio e difusão pela ICAR apenas em 1993 o Papa João Paulo II pediu desculpas envergonhadas e inconvincentes. Na herança da escravatura e do concomitante colonialismo evangelizador, fonte de misérias e racismos, que legou ao mundo uma legião de deserdados da sorte e andarilhos perdidos, pode-se inscrever boa parte da injustiça social actualmente vigente!

Será igualmente novidade para o intolerante crente que é no iluminismo francês, profundamente ateísta, que assenta a declaração dos direitos do homem (ainda hoje contestada por muitos cristãos), para além do laicismo e da democracia. E que a independência nos EUA de 1768, que serviu de exemplo aos ideais de liberdade e igualdade, foi igualmente devida a ateístas (alguns, por questões semânticas, denominados na época deístas naturais, na linha de Voltaire) Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, John Adams e Thomas Paine.

«A religião Cristã começa com um sonho e termina com um assassinato.» Thomas Paine

«As religiões são todas iguais – fundadas sobre fábulas e mitologias.» Thomas Jefferson

«A pergunta que a humanidade enfrenta é se o Deus da Natureza deve governar o mundo pelas suas próprias leis ou se o devem governar padres e reis por milagres fictícios» John Adams

Post Scriptum: Suponho que para repor a verdade histórica que o revisionismo católico quer obliterar se impõe uma série de posts devotados ao humanismo e iluminismo. Pelo que serão o objecto dos meus próximos posts!

23 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Obstipação e indulgências

O final do século XIV e o século XV marcaram o fim da supremacia absoluta da Igreja de Roma na Europa. Para além da ameaça que o conhecimento científico leigo apresentava, esta viu-se confrontada com a Reforma protestante, despoletada pelo empenho que Leão X devotou à construção da Basílica de S. Pedro, concentrando a recolha de fundos para a edificação da sumptuosa Basílica no comércio intensivo de «indulgências», perdão garantido para todos os pecados possíveis e imagináveis, passados, presentes ou futuros, comércio esse que atingiu dimensões e contornos que escandalizaram o piedoso (e obstipado) Martinho Lutero.

Foi recentemente redescoberta a sanita que proporcionou a Martinho Lutero longos momentos de reflexão, certamente sobre a escandalosa vivência da maioria do clero e a opulência e ineficácia do papado que lhe motivaram as 95 teses. O próprio admitiu que foi em momentos contemplativos possíveis devido aos préstimos de tão inestimável objecto que lhe adveio a inspiração para afirmar que a salvação se deve somente à fé e não às obras.

Os pensamentos higiénicos de Lutero foram difundidos, muito rapidamente graças a Gutenberg, na forma de panfletos e livros em que negava a autoridade absoluta do Papa, atacava a riqueza e a corrupção da Igreja e o papel privilegiado dos padres na sociedade. Claro que tal afronta não ficou sem resposta de Roma e, em 1520, através da bula Exsurge Domine, o papa Leão X condenou e depois excomungou Lutero. A Reforma foi encorajada em segredo e por razões políticas pelo mui católico rei de França e pelo cardeal seu primeiro-ministro. Acendeu-se, com mais fervor, a fogueira da revolta, que culminou com a «guerra dos camponeses» (1524-25).

Para reafirmar as doutrinas tradicionais e fazer frente à reforma protestante que se tinha espalhado por todos os países da Europa Ocidental e da Europa Setentrional, com vários reformadores a reinterpretar o cristianismo para além de Lutero, como Ulrico Zuínglio, Guilherme Farel, Filipe Melanchton, João Calvino e João Knox, é convocado o Concílio de Trento em Dezembro de 1545.

A última sessão do Concílio de Trento decorreu no dia 4 de dezembro de 1563. Nesse dia foram lidas todas as decisões tridentinas, formalmente aprovadas pelo Papa Pio IV em 26 de janeiro de 1564.

Para além de reafirmar a doutrina da transubstanciação, defender a concessão de indulgências, aprovar as preces dirigidas aos santos e de insistir na existência do purgatório, a profissão de fé tridentina marca a ascendência de Tomás de Aquino, isto é Aristóteles, no catolicismo. Assim a doutrina é definida sob um ponto de vista teológico, imiscuindo-se, por outro lado, no domínio científico. A Terra imóvel, centro do mundo, torna-se palavra do Evangelho. Os Santos Padres arrogam-se ao direito de decidirem acerca de tudo, mesmo em matéria «científica», e quem passe para lá destes ditames incorre a partir do Concílio de Trento nas sanções mais severas.

23 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Estará tudo louco no Vaticano?

Na longa tradição do revisionismo histórico de uma Igreja de Roma que pretende ter a Inquisição de facto assassinado pouquissimas pessoas, já que apenas queimavam… manequins e não pessoas nas fogueiras,
leio com natural estupefacção que o cardeal Renato Raffaele Martino numa alocução a que chamou «Ciência e Fé ao serviço do homem», proferida no Festival da Ciência de Bérgamo pôs em dúvida «a já habitual consideração que se tem de que a ciência é resultado do Iluminismo», pois, «para os grandes cientistas e teólogos da Idade Média como São Alberto Magno, Roberto Grossatesta e Santa Ildegard von Bingen, a relação entre fé e ciência era quase co-natural». Assim percebiam estes «eminentes cientistas e crentes no Deus do universo» «a harmonia entre estas duas formas de conhecimento» -reconheceu o presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz- mas «esta harmonia entre ciência e fé vem a quebrar-se em uma época que corresponde mais ou menos ao início do Iluminismo».

O digno eclesiástico afirmou ainda que houve «instrumentalização» do caso Galileu Galilei, que foi assim usado «como símbolo de uma suposta oposição entre ciência e fé, que levou muitos a sustentar» a «incompatibilidade entre ambas». «Ao contrário, a ciência moderna é produto genuíno de uma visão judaico-cristã do mundo que tem sua fonte de inspiração na Bíblia e na doutrina do Logos»

Acho que raramente li algo tão absurdo! Uma Igreja, pela voz do Papa, que acusa os cientistas de se estarem indevidamente a imiscuir em assuntos que pertencem a Deus, que perseguiu, matou e censurou ao longo de toda a sua história, mesmo a mais recente, os cientistas que ameaçam a visão absurda da Terra escrita na Bíblia dizer uma barbaridade destas é tão ridículo que precisei confirmar se a página onde a li pela primeira vez não corresponderia a um jornal satírico, tipo The Onion!

Ainda por cima não percebi muito bem porque citou Ildegard von Bingen, que tanto quanto sei só é conhecida pelas suas vinte e seis visões místicas da salvação por Cristo, explanadas no livro Scivas e pela sua música. Enfim, praticava aquilo a que agora se chamaria medicina mística mas não estou exactamente a ver como alguém lhe pode chamar grande cientista!

Roberto Grosseteste (mentor de Roger Bacon) e Alberto Magno (professor de Tomás de Aquino) podem-se considerar contributores para o iluminismo renascentista já que tornaram aceitáveis pela Igreja Católica as obras do “pagão” empiricista Aristóteles, introduzidas na Europa no século XII pelo filósofo muçulmano Averrois. De facto, Averrois, que foi médico na corte cordovesa até ser acusado de heresia em 1195 e desterrado para Lucena, e Avicena ou Abu Alí Ibn Sina (980-1037), o autor do “Canone de Medicina”, o qual impregnou profundamente todas as obras medievais sobre farmacopeia e química, são os mais decisivos pensadores medievais.

Em relação aos apelidados cientistas cristãos são mais conhecidos pelas suas vertentes «mágicas» e alquimistas, que não são exactamente o que eu designaria por ciência. Roger Bacon enfatizou o papel primordial da observação e da experimentação, mas, tal como Alberto Magno, acreditava na iluminação divina dos dados experimentais. Por exemplo, Bacon explica o arco-íris com Genesis (IX): Deus fez o arco-íris para selar o fim do dilúvio, portanto para eliminar uma quantidade excessiva de água.

A relação quase co-natural entre fé e ciência de Alberto Magno e Gosseteste citada pelo prelado e a interpretação mística de dados experimentais quer por parte de Roger Bacon quer de Alberto Magno, propiciaram a dissolução da ambição de ambos os teólogos: unir numa síntese sólida a teologia natural e a teologia revelada. Especialmente devido à influência crescente dos filósofos árabes, em particular Averrois, que exaltava com vigor essa separação.

As obras de Averrois foram (em vão) proíbidas pela Igreja, por instigação de Tomás de Aquino e Alberto Magno, porque, para além de advogarem a supremacia da razão sobre a fé, os averroístas aceitavam a concepção aristotélica de Deus como o motor imóvel que move eternamente um mundo eternamente existente não criado nem conhecido por ele, para além de afirmarem que a alma não é imortal!

As bases para revolução intelectual no Ocidente situam-se na Espanha do século XII onde se redescobriu a ciência árabe e grega, onde, para além das obras de Averrois e Avicena, se podiam encontrar trabalhos originais árabes como a Álgebra de Al-Khwarizmi, e a óptica de Ibn al-Haytham (latinizada como Opticae Thesaurus), para além de traduções e comentários árabes sobre textos gregos de Aristóteles, Ptolomeu e Euclides.

Assim, a cristianização de Aristóteles por Tomás de Aquino e a sua afirmação de que «Procurar compreender as leis da natureza é procurar compreender a obra de Deus, é, por conseguinte, aproximar-se dele», ou seja, a sua tentativa de tornar a ciência uma aliada da fé, são apenas manobras da Igreja de tomar as rédeas de um processo imparável. Não esqueçamos que até então vigoravam as pias palavras do prior de Clairvaux, Bernardo, que, dois séculos antes, pregava a ignorância piedosa afirmando que «Deus não obedece à lei ordinária.»

A invenção da imprensa em 1440 foi mais um passo para a cisão irreversível entre ciência e religião, já que a partir da invenção de Gutenberg o controle da difusão do saber escapou à Igreja. Não obstante o Index librorum prohibitorum. E o princípio do fim do monopólio científico (se é que lhe podemos chamar isso) e filosófico dos religiosos começa com o humanismo de Petrarca e Lorenzo Valla…

20 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Kerry excomungado ?

Um advogado de Los Angeles, Marc Balestrieri, que dirige a organização católica De Fide, interpôs uma acção canónica em Junho último pedindo a excomunhão de John Kerry pelo seu apoio aos direitos reprodutivos das mulheres. Há dois dias viu a sua pretensão corroborada por uma carta do Vaticano.

Nesta carta, escrita por Basil Cole a pedido de Augustine di Noia, subsecretário da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício da Inquisição) a resposta é: sim, Kerry está excomungado. Assim como todos os políticos que pessoalmente sejam contra o aborto mas a favor da liberdade de escolha.

Ted Kennedy, Tom Harkin, Susan Collins e o ex-governador do estado de Nova Iorque, Mario Cuomo, são os próximos na lista do preocupado advogado. Que certamente faz parte desta organização que reza online para a re-eleição de Bush.

19 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Presunção e água benta II …

O inenarrável João César das Neves volta a atacar, desta vez não um dos mais prestigiados neurocientistas da actualidade, mas o primeiro-ministro espanhol, José Luis Zapatero, com pleno recurso às habituais falácias e proselitismo com que mimoseia semanalmente os leitores do Diário de Notícias.

Tenho imensa pena que o Diário de Notícias tenha deixado de disponibilizar os seus conteúdos online, já que ler a opinação do supracitado colunista era o meu momento zen das segundas feiras. Mas desta vez o conteúdo da coluna de J.C. das Neves é demasiado forte, até mesmo para o que nos habituámos a ler saído da sua pena sofista.

A prosa de ontem versa sobre a sua inquietação em relação ao estado antidemocrático e populista (na opinião dele, claro) que caracteriza a Espanha actual. Manifestando a sua indignação profunda por os espanhóis terem um Primeiro Ministro em que os eleitores não se revêm. Manifestando a esperança que o PSOE consiga fazer de Zapatero um estadista. Em causa, como é óbvio, estão as recentes medidas do governo socialista espanhol que conduziram a uma guerra aberta com a delegação em Espanha da Igreja Católica Apostólica de Roma.

Como tão bem diz o Rui Tavares do Barnabé no post A obra-prima do disparate «César das Neves está tão preocupado com Espanha que chega a sugerir que o país possa cair numa nova guerra civil. E isso porque a Igreja Católica espanhola “está a ser perseguida”, o que, aliás, “sempre tem tido boas consequências para a fé… tempos difíceis afirmam o fervor e avançam a evangelização”. Diz César das Neves que não é um problema de legitimidade de Zapatero, mas “que o seu cargo também lhe dá poder e legitimidade para deitar fogo ao Museu do Prado”, uma barbaridade equivalente às barbaridades que verbera César das Neves sem nunca nos dizer exactamente quais são, mas que se imagina que sejam as decisões do governo espanhol acabar com a obrigatoriedade das aulas de religião e aceitar o casamento homossexual.

Nota para João César das Neves: em Espanha, tal como outrora em Portugal, quando há eleições os partidos apresentam programas. O partido que ganha deve cumprir com o seu programa, que foi validado pela maioria dos eleitores. No programa do PSOE não estava deitar fogo ao Museu do Prado (eram capazes, sei lá, de ter perdido), mas estava legalizar as uniões homossexuais e desobrigar os alunos de terem aulas de religião. Promessas com que ? sabe-se lá como ? ganharam. E agora ? esta é a parte chocante, eu sei ? estão a cumprir as promessas.»

O espírito do pio Pio IX, que invectivou a «ultrajante traição da democracia» condenando a democracia como um «princípio absurdo», a liberdade de opinião como «loucura e erro» e especialmente condenatório do laicismo, continua presente na Igreja Católica actual.

Consequentemente a ICAR e seu prosélitos consideram-se perseguidos quando não os deixam impor as suas morais absolutas! Neste caso queixando-se paradoxalmente de um défice democrático, quando na realidade de sentem ultrajados pela própria existência da democracia, que, no léxico de Tomás de Aquino, é catalogado nos regimes políticos maus e ilegítmos

Em relação ao Filipe da respública, que criticou o Carlos Esperança, classificando-o de ateu intolerante pela crítica que fez a J. C. das Neves, devolvo-lhe (e aos demais católicos fundamentalistas) o conselho: «respeitem os outros na medida em que vocês próprios querem ser respeitados. É verdadeiramente triste que ainda não tenham aprendido isso». E, já agora, aprendam também o significado de democracia! E laicismo! Porque quer Portugal quer Espanha são democracias laicas!

19 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Presunção e água benta…

O Cardeal Renato Raffaele Martino, responsável máximo do Conselho pela Justiça e pela Paz do Vaticano, garante que há uma nova «Inquisição» anti-católica na Europa, adiantando, como exemplo, a campanha para impedir Rocco Butiglione de se tornar comissário europeu.

Foi esta nova Inquisição, nomeadamente o comité para as liberdades civis do Parlamento Europeu, que votou contra a candidatura de Buttiglione depois deste candidamente ter afirmado que a homossexualidade era um pecado e que o casamento existe apenas para que as mulheres tenham filhos e sejam protegidas pelos seus maridos. Afirmando uns dias depois que as mães solteiras não são boas pessoas.

Esta presunção do Vaticano de se achar perseguido quando os seus sequazes são democraticamente vetados para posições que lhes permitam impor as suas políticas de homofobia e discriminação das mulheres já enjoa!

Suponho que na sua vitimização autista os dignos eclesiásticos e seus prosélitos não se apercebam do tiro no pé que constitui a comparação de uma votação para um cargo numa instituição democrática com uma instituição absolutista que assassinou no decurso da sua tenebrosa existência muitas centenas de milhares de inocentes. Entre os quais exactamente os grupos que pretendiam continuar a discriminar: mulheres (estima-se entre seiscentos mil e nove milhões o número de «bruxas» queimadas na fogueira) e homossexuais!

17 de Outubro, 2004 Palmira Silva

O poder da oração ou o poder da fraude?

Em Outubro de 2001 um artigo de investigadores de uma das faculdades de Medicina mais respeitadas no mundo, o Columbia University’s College of Physicians and Surgeons, deu origem a grandes parangonas nos jornais de todo o globo, clamando ter sido provado cientificamente o poder da oração! Ainda sob o choque do ataque às torres gémeas, muitos americanos acreditaram que o artigo era um sinal de Deus!

Mais discretamente, e sem merecer cabeçalhos da imprensa internacional, o jornal de Medicina Reprodutiva, The Journal of Reproductive Medicine, retirou recentemente da sua página o dito artigo, que pretendia demonstrar os benefícios da oração em tratamentos de fertilidade, após a comunidade científica ter levantado sérias suspeitas sobre a validade do mesmo.

As suspeitas de fraude, especialmente vocais da parte de Bruce L. Flamm, da Universidade da Califórnia em Irvine (UCI), foram acentuadas após um dos autores do estudo, o único sem ligações à Columbia University, se ter declarado culpado num tribunal da Pensilvânia de uma série de acusações de fraude e falsificação de identidade.

O autor, Daniel Wirth, e o seu associado Joseph Steven Horvath, também condenado por fraude, têm um longo currículo de publicações em estudos dúbios de fenómenos paranormais ou sobrenaturais, afiliados com uma misteriosa instituição, a Healing Sciences Research International, aparentemente presidida por Wirth.

Muitos cientistas americanos sentem-se ultrajados pelo financiamento de dois milhões e trezentos mil dólares concedidos pelo governo federal a projectos que pretendem estudar o suposto poder da oração, algo que consideram um completo desperdício de tempo e dinheiro.

Especialmente se considerarmos que a administração Bush, no ano passado, tentou impedir a atribuição de fundos a uma lista de projectos considerados imorais e indignos de financiamento pela The Traditional Values Coalition (TVC), uma organização que representa 43000 Igrejas americanas. A tentativa falhou por dois votos no Congresso americano. Mas este ano foi votado favoravelmente bloquear duas bolsas do NIH e do National Institute of Mental Health (NIMH).

Não há indicações que a TVC levante objecções ao financiamento de projectos pseudo-científicos sobre o poder da oração! Bem pelo contrário!

Esta promiscuidade entre ciência e religião (e não só) levantou sérios protestos e, a pedido de Henry A. Waxman, os democratas no Government Reform Committee da U.S. House of Representatives elaboraram um relatório sobre o assunto, disponível aqui.

17 de Outubro, 2004 Palmira Silva

Tolerância zero para a pedofilia na Igreja Católica?

O Papa João Paulo II nomeou em Maio passado como Arcipreste da basílica patriarcal de Santa Maria Maior, uma das quatro maiores basílicas de Roma, o Cardeal Bernard Francis Law, o Arcebispo de Boston que foi obrigado a renunciar à posição na sequência do escândalo de pedofilia que abalou esta diocese e levou ao encerramento de dezenas de paróquias em Boston.

Entre os problemas gravíssimos da Igreja Católica de hoje são proeminentes a pedofilia, e, mais grave ainda, a complacência da hierarquia com essa abominação, negando, encobrindo, transferindo padres quando a situação se torna insustentável, enfim abafando todos os casos de abuso sexual de menores.

O Papa condenou os casos de pedofilia de sacerdotes, exigindo tolerância zero. Mas foram apenas palavras… que os actos do Papa desmentem!

Obrigado ao Luís Rodrigues pela informação!

Interessante ainda a resposta do cardeal Joseph Ratzinger ao ser interrogado sobre abusos sexuais do clero, que atribuiu o «enfraquecimento moral de tantos cristãos, e até a própria crise da Igreja» ao «aumento do interesse pela ideologia social e política» considerando que «Não é um bom sinal que muitos ambientes cristãos se caracterizem hoje não pela fé na Trindade, mas na fé de uma tríade repetitiva como mágica: ‘Paz, justiça, respeito pela natureza’». Porque «No sentimental ‘amor ao homem’ perde-se de vista a perspectiva cristã: o homem é, em geral, execrável, indigno de ajuda, não é amável em si mas, no fundo, só por amor daquele Jesus, graças ao qual somos todos irmãos.»