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Palmira Silva

21 de Abril, 2005 Palmira Silva

O útero segundo Bento XVI

Respostas às dúvidas propostas sobre o «isolamento uterino» e outras questões

Os Padres da Congregação para a Doutrina da Fé, às dúvidas apresentadas na assembleia ordinária e abaixo referidas, julgaram dever responder a cada uma como segue:

(…)
2. Quando o útero (por exemplo por causa de operações cesarianas precedentes) se acha num tal estado que mesmo não constituindo em si um risco imediato para a vida ou a saúde da mulher, não seja previsivelmente mais em condição de chegar ao fim de uma futura gravidez sem perigo para a mãe, perigo que em alguns casos poderia resultar mesmo grave, é lícito extirpá-lo (histerectomia), com a finalidade de prevenir um possível perigo futuro proveniente pela concepção ?

R. Não.

3. Na idêntica situação do número 2 citado acima, é lícito substituir a histerectomia pela laqueamento das trompas (procedimento chamado também ‘isolamento uterino’) tendo em conta que se atinge o mesmo fim preventivo dos riscos de uma eventual gravidez, com um procedimento muito mais simples para o médico e menos molesto para a mulher e que além disso, em alguns casos a esterilidade assim adquirida pode ser reversível ?

R. Não.

Explicação
(…)
Diferente, do ponto de vista moral, se apresenta o caso de procedimento de histerectomia e de ‘isolamento uterino’ nas circunstâncias descritas nos números 2 e 3; eles entram no caso moral da esterilização directa, a qual, no documento Quaecumque sterilizatio ( AAS LXVIII – 1976, 738-740, n. 1 ), vem definida como uma acção que «tem por único efeito imediato, tornar a capacidade de gerar incapaz de procriar». «Por isso», continua o mesmo documento «não obstante toda subjectiva boa intenção daqueles cujas operações são inspiradas pelo cuidado ou pela prevenção de uma doença física ou mental, prevista ou temida como resultado de uma gravidez, tal esterilização permanece absolutamente proíbida segundo a doutrina da Igreja».

(…) Portanto os procedimentos acima descritos não têm um carácter propriamente terapêutico, mas são realizados para tornar estéreis os futuros actos sexuais ferteis, livremente realizados. O fim de evitar os riscos para a mãe, derivados de uma eventual gravidez, vem portanto prejudicado com o meio de uma esterilização directa, em si mesma sempre moralmente ilícita, enquanto outras vias moralmente lícitas ficam abertas à uma livre escolha.

A opinião contrária, que considera as supracitadas práticas referidas nos números 2 e 3 como esterilização indirecta, lícita em certas condições, não pode portanto considerar-se válida e não pode ser seguida na praxe dos hospitais católicos.

20 de Abril, 2005 Palmira Silva

Música benta para ouvidos ateus?

Num ponto estou em desacordo com os meus colegas de blog: a eleição de quem eu considerava o mais provável sucessor de João Paulo II, por uma simples análise política de uma instituição que reitero como puramente política, não constitui motivo de regozijo. Simplesmente porque a minha análise global dos cenários que esta calamidade implica é francamente negativa.

Apesar de não acreditar em profecias «nostradâmicas» ou «malaquianas» que prevêm este Gloria Olivae como o penúltimo Papa, acho que as consequências da eleição deste Papa, para quem o epíteto ultra conservador é um eufemismo, serão desastrosas. Direi mesmo que o dia de hoje, 19 de Abril de 2005, pode constituir um marco para um retrocesso civilizacional que será muito difícil de recuperar. Para que tal não aconteça nós, ateístas, agnósticos e, como tive a grata surpresa de confirmar agora mesmo na SIC Notícias, alguns católicos, temos de redobrar os nossos esforços para combater os inevitáveis ataques à laicidade e ao apelidado relativismo moderno, que espero esclarecer num próximo post.

Não é um bom augúrio um Papa que considera que «Se os divorciados se casam civilmente, ficam numa situação objectivamente contrária à lei de Deus. Por isso, não podem aproximar-se da comunhão eucarística» assim como «O fiel que convive habitualmente more uxorio com uma pessoa que não é a legítima esposa ou o legítimo marido, não pode receber a comunhão eucarística».

Mesmo em termos estéticos e musicais este Papa tem uma palavra a dizer condenando a música rock como um «contra-culto que se opõe ao culto cristão», acusando ainda a música de ópera de ter «corroído o sagrado».

Claro que algumas das conquistas do século passado vão estar sob ataque cerrado, nomeadamente o fim da discriminação de sexos, opção sexual ou de religião. De facto este Papa considera as mulheres como divinamente predestinadas à dominação do homem, condenando, entre inúmeras outras coisas, a emancipação da mulher, recuperando toda a letra da encíclica Casti Connubii do pio Pio XI.

De igual forma deixou claro e de forma «incisiva» a sua rejeição às uniões homossexuais. Segundo Joseph Ratzinger e, podemos pressupor, Bento XVI: «diante do reconhecimento legal das uniões homossexuais (…) é necessário opôr-se de forma clara e incisiva. Há que se abster de qualquer tipo de cooperação formal à promulgação ou aplicação de leis tão gravemente injustas». Esta posição anacrónica e tão vigorosa de apelo à desobediência civil , expressa nas santas «Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais», mereceu de Mario Vargas Llosa um artigo que recomendo.

E, claro, o suposto diálogo ecuménico foi abruptamente interrompido quando se elegeu como Papa o autor do Dominus Iesus.

Voltamos assim em pleno e sem rodeios diplomáticos a uma Igreja com um referencial centrado na mui glorificada Idade Média das Cruzadas e caça às bruxas e hereges! Para que o fim desta história não seja uma reedição da História negra da Humanidade temos de unir esforços, todos, ateus, agnósticos e crentes com referencial no século XXI!

19 de Abril, 2005 Palmira Silva

Bento XVI: O rottweiler de Deus…

Para mal dos meus tempos livres parece que a leitura que fiz da conjuntura política e das muitas «coincidências» que rodearam a crónica da morte anunciada de João Paulo II e os dias que antecederam o Conclave estava correcta: Joseph Ratzinger foi eleito Papa, certamente por obra do Espírito Santo!

17 de Abril, 2005 Palmira Silva

O próximo papa?

Amanhã começa no Vaticano o concílio que decidirá quem vai ser o novo papa e, mais importante ainda, indicará se serão concretizadas as esperanças dos católicos ditos moderados que almejam um papa mais próximo da modernidade, que não eleja a vivência medieval da fé como paradigma cristão.

Para mim e suponho que para os restantes ateístas que colaboram e seguem este diário, esta é igualmente uma ocasião que seguimos atentamente mas com apreensão. Porque quem for eleito neste conclave vai ser determinante na nossa acção futura. Porque se não me engano na minha análise dos factos vamos ver eleito um papa que será, se tal é possível, mais conservador que João Paulo II e mais determinado em anatematizar a laicidade e o ateísmo. A Igreja de Roma é uma organização política com centenas de anos de experiência e por mais que tentem «vender» o Espírito Santo como o inspirador da escolha, uma análise objectiva das eleições ao longo da História confirma que o vencedor é ditado pelos ventos da política. Interna, quando a Igreja tem assegurado o seu domínio temporal e política externa em tempos de crise. Foram apenas considerações de política externa que ditaram a eleição do doutra forma impossível João XXIII, numa altura em que era necessário lavar uma imagem muito chamuscada pela actuação dos pios Pios na segunda Guerra Mundial.

Nesta altura a imagem da Igreja, especialmente depois da mediatização da «bondade» de João Paulo II aquando da crónica da sua morte anunciada e desenvolvimentos, só é ensombrada para o grande público pelos inúmeros casos de pedofilia perpetrados por membros do clero. Um marketing subliminar em marcha há muito tempo tenta apontar como culpado o Concílio Vaticano II e os brandos costumes que permitiu, nomeadamente o abandonar das tradições (austeras) centenárias de celebração da missa. Muito vocal na condenação destas práticas modernistas litúrgicas é o «papável» que eu considero mais provável ser eleito, Joseph Ratzinger, que dirige, muito apropriadamente, a ex-Inquisição.

É o candidato mais provável porque a Igreja de Roma precisa afirmar o seu domínio numa área do globo que cada vez mais rejeita ser controlada por ela: a Europa. E a conjuntura actual é a ideal para um Papa que transmite, como Ratzinger no seu livro que viu estrategicamente a luz do prelo na passada quarta-feira, «Values in Times of Upheaval» (Valores em tempos de crise) as suas preocupações sobre o futuro de uma Europa que ele considera sob a ameaça da laicidade e do Islão e que manifesta publicamente o seu repúdio e desgosto pelos escândalos que abalam a santa Igreja.

«Para sobreviver a Europa precisa de uma aceitação crítica da sua cultura cristã» podemos ler no seu livro assim como «Na hora do seu maior sucesso a Europa parece ter ficado vazia interiormente, paralizada por uma crise que lhe ameaça a vida e dependente de transplantes», referindo-se à baixa taxa de natalidade europeia e à necessidade de mão de obra imigrante.

Numa homília escassos dias antes da morte de João Paulo II afirmou, e fez questão de tal ser reproduzido nos media, que «Senhor, muitas vezes a tua Igreja parece estar prestes a afundar e a parecer um barco cheio de buracos… A face e roupagem da tua Igreja chocam-nos. Mas somos nós que a conspurcamos» numa clara alusão ao escândalo da pedofilia que tem abalado a Igreja católica por todo o Mundo.

Todas estas «coincidências» e mais algumas que seria fastidioso enumerar conjugadas com o facto de Ratzinger ter sido escolhido para proferir a missa no funeral de João Paulo II, elegia que serviu para realçar a sua ligação muito próxima ao finado para além de o ter feito aparecer com uma face humanizada até aí desconhecida, me fazem considerar ser muito provável que o novo Papa seja o actual Cardeal Ratzinger. De qualquer forma é expectável que o próximo Papa saia da ala mais retrógrada do Vaticano e que seja um europeu!

Para a semana veremos se a minha análise se revelou correcta! E devo confessar, para bem dos meus escassos tempos livres, que gostaria que não… E certamente não assinei a petição aos membros do Conclave para que elejam Ratzinger rapidamente!

14 de Abril, 2005 Palmira Silva

O clube de fãs

«Putting the smackdown on heresy since 1981»

O «papável» escolhido pela cúria romana para celebrar a missa realizada no funeral de João Paulo II, o honorável prelado à frente da ex-Inquisição, a Congregação da Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, vai à frente nas intenções de voto do colégio eleitor. Aliás, já em Janeiro a revista Time indicava Ratzinger como o candidato com mais hipóteses. Descobri recentemente a página do seu clube de fãs, devotos e tolerantes católicos que certamente apreciam a forma vigorosa como ele tem defendido a pureza da fé e da doutrina católica e anatemizado «hereges» e ateus.

A concretizarem-se estas previsões o arqui-conservador Ratzinger será certamente um digno sucessor do finado Papa!

10 de Abril, 2005 Palmira Silva

Evolução ou regressão?

«Se me perguntarem qual é a minha convicção mais íntima sobre o nome que será dado a este século, se será ‘século do ferro’, do ‘vapor’ ou ‘da electricidade’, responderei sem hesitar que será chamado o século da visão mecanicista da natureza, o século de Darwin».
Ludwig Boltzmann (1844-1906), que estabeleceu a Mecânica Estatística e sistematizou o conceito de Entropia, formulando uma interpretação estatística para a 2ª Lei da Termodinâmica, aquela que os criacionistas alegam insistentemente inviabilizar a evolução biológica.

O fundamentalismo cristão que ressurge um pouco por todo o mundo ocidental tem como principal inimigo a abater o ateísmo e aquilo que descrevem como perigosas ideias ateístas, nomeadamente o que é designado por muitos o mito da Criação ateu, isto é, o evolucionismo. Os criacionistas, que aparentam nutrir um grande pavor pela realidade inegável da evolução biológica e se lançaram numa cruzada anti-evolucionista, tentam manipular conceitos científicos de forma a verem satisfeitos aos seus dogmas. As principais «teorias» criacionistas já foram amplamente abordadas no Diário Ateísta, mas, em benefício dos nossos leitores mais recentes, apresento alguns dos posts sobre o assunto no final deste.

O grande problema dos criacionistas reside no facto de que o trabalho teológico que tentam apresentar como científico não é reconhecido pela comunidade científica e é sistematicamente recusado quando o submetem à avaliação dos pares em qualquer revista científica. Claro que para os criacionistas os culpados são os pares que, segundo um estudo publicado em 1998 na revista Nature, são esmagadoramente ateus ou agnósticos. Dos cientistas inquiridos, membros da Academia National de Ciência dos Estados Unidos, apenas um pouco mais de 7% declararam acreditar na existência de Deus. Não conheço estudos análogos realizados noutros países mas os autores do livro «The Psychology of Religious Behaviour, Belief and Experience» Benjamin Beit-Hallahmi e Michael Argyle mencionam que a ausência de crença nos laureados com o Nobel, quer em ciência quer em literatura, é muito elevada.

Uma vez que não conseguem negar as evidências científicas e refutar o evolucionismo, os fanáticos fundamentalistas tentam evitar a exposição da população em geral à verdade científica que derruba muitos dos pilares em que assentam as três religiões do livro: a criação do homem (e da mulher a partir do homem, que assim tem um papel subserviente ditado pelo Criador) e o pecado original. Em muitos estados dos Estados Unidos foi retirado o evolucionismo dos curricula escolares ou é apresentado como uma teoria alternativa ao criacionismo. Na Flórida saiu recentemente uma lei em que um professor que fale da evolução pode ser processado pelos respectivos alunos.

Para além, claro, de anatemizarem toda a investigação científica que possa conduzir a resultados desastrosos para os prosélitos da fé. Nomeadamente retirando financiamento para projectos científicos perigosos para a fé e multiplicando-se os apoios, estatais e privados, para projectos pseudo-científicos que reforçem os dogmas religiosos.

E para quem pensa que estas anormalidades fundamentalistas só acontecem nos Estados Unidos recordemos que Silvio Berlusconi queria retirar o evolucionismo dos curricula escolares e só cedeu depois de uma semana de protestos massivos e que na Sérvia, sob os auspícios da ministra da Educação Ljiljana Colic, o ensino da evolução esteve suspenso por uma semana por uma determinação ministerial que apenas o permitia se em paralelo fosse ensinado o criacionismo.

O quadro negro do desenho inteligente
Os dinossauros de Deus
De volta ao Genesis
Ainda o princípio antrópico, I: pescadinha de rabo na boca
Ainda o princípio antrópico, II: a posição «cientificamente correcta»

3 de Abril, 2005 Palmira Silva

João Paulo II e as mulheres

«Roma Locuta Est, causa finita est» (Roma falou, a causa acabou)

Os últimos dias de emissão da nossa televisão pública, paga com os impostos de todos, católicos e não católicos, foram devotados numa inusitada percentagem de tempo à crónica da morte anunciada do Papa, tendo o despautério assumido raias de absurdo quando passou a ser quasi exclusivo. Nos zappings em que confirmei que o tema era sempre o mesmo, verifiquei que padres, bispos e cristãos em geral aproveitavam o tempo de antena, sem qualquer direito ao contraditório, para tecer loas a um Papa que reputo do mais reaccionário e retrógrado que a corte do Vaticano poderia ter produzido.

Uma vez que, para mim, a morte é um processo natural que não aumenta o valor facial de alguém, indigna-me que se ignorem as manobras deste Papa para recuperar a velha máxima romana supracitada, especialmente aquelas que me tocam mais fundo como mulher e cientista.

Como mulher considero extremamente nociva toda a actuação deste Papa que tentou remeter a mulher para o papel tradicional consagrado pela Igreja de Roma e anular as conquistas duramente conseguidas de emancipação da mulher (que o Papa considerava perniciosa). Assim na Carta Apostólica de João Paulo II, em 1988, sobre a dignidade e a vocação da mulher, «Mulieris Dignitatem», este explica que Deus criou a mulher virgem para ser mãe e que a mulher só se realiza como virgem ou como esposa e mãe. Aliás em toda a carta nem sequer se concebe a realização da mulher sem um homem, nos auspícios de um casamento, claro.

Em 1994 «Tomando a estas duas mulheres como modelos de perfeição cristã» beatifica Isabella Canori Mora, uma mulher que suportou estoicamente a violência de um marido abusivo, santificando assim a violência conjugal, e Gianna Beretta Molla (posteriormente canonizada com o título Mãe de Família), que preferiu morrer a interromper uma gravidez de alto risco. O ideal de mulher para este Papa que é agora enaltecido é assim uma mulher completamente subjugada ao marido e aos filhos, sem valor intrínseco fora de ambos e que deve renunciar à própria vida em favor de um qualquer óvulo fertilizado.

Mensagem reforçada na «Carta às Mulheres» em 1995 onde se pode ler, no meio do discurso habitual de que a mulher só se realiza através de um homem: «quanto louvor merecem as mulheres que, com amor heróico pela sua criatura, carregam uma gravidez devida à injustiça de relações sexuais impostas pela força».

A que se seguiu a «Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo», emanada da ex-Inquisicão em Julho de 2004, em que a Igreja de Roma recomenda às mulheres cessarem de competir com os homens, reconhecendo o poder masculino. Diz o documento que a mulher tem direito a trabalhar fora de casa, porém sem prejudicar as tarefas domésticas. E que a sua emancipação e independência são prejudiciais à instituição da família.

Esta carta dirigida aos bispos – todos homens, todos celibatários, todos escolhidos pelo Papa – é reveladora do autismo e misoginia da Igreja que recrudesceram sob este papado. Revela que os homens do Vaticano, isolados num mundo artificialmente masculino continuam a não perceber e desprezar as mulheres, tendo agora como alvo uma fantasia que apelidam de «feminismo radical». Nenhuma mulher se considera «antagonista» dos homens mas antes antagonista do machismo. Não entendem que aquilo que as mulheres desejam não é serem «iguais» aos homens é serem reconhecidas como seres humanos de pleno direito!

2 de Abril, 2005 Palmira Silva

Delírios tomistas de uma Igreja medieval

A Igreja Católica trabalha diligentemente para que o que considera pecado seja considerado crime pelo Direito dos países onde a sua influência nefasta ainda não permitiu uma perfeita separação Estado-Igreja. O que é, como já escrevi várias vezes, uma manifestação do totalitarismo (e concomitante intolerância) católico. Porque assim se impõe como verdade absoluta os dogmas da Igreja, sem qualquer consideração pelos não crentes. Por exemplo, dogmas como a sacralidade do matrimónio, com a consequente criminalização do adultério e impedimento do divórcio, foram no passado recente impostos pela Igreja de Roma a toda a sociedade. Com total falta de respeito não só pelos não crentes como pelos crentes, que muitas vezes se viam em situações insustentáveis das quais não podiam sair devido à intolerância da Igreja, traduzida nas leis dos respectivos países.

O que não é de espantar já que a Igreja actual tenta recuperar a tradição tridentina, vigente desde o Concílio de Trento até ao Concílio Vaticano II de Paulo VI, que traduzia essencialmente o pensamento tomista, ou seja a teologia do Tomás de Aquino que João Paulo II tanto exortou os prelados actuais a emular. O concílio de Trento ignorava quase totalmente os fiéis e as pessoas em geral e a sua preocupação dominante é a regulação total das sociedades. Regulação intolerante conseguida através de uma doutrina (a «ortodoxia») consagrada numa liturgia rígida e ditando as leis pelas quais as sociedades se deviam reger, condensadas nos 2414 cânones do primeiro Código de Direito Canónico de 1917. Aos leigos só era reconhecido o direito de «receber» os meios necessários à salvação da alma, ministrados pelos prelados da Igreja de Roma, claro. Considerações de felicidade ou bem estar terrenos são completamente ignoradas.

João Paulo II tentou assim recuperar o domínio medieval implacável da Igreja de Roma sobre a sociedade, em que os Santos Padres se arrogavam ao direito de decidir sobre todas as matérias, mesmo as científicas. Numa Igreja que, pela voz do (ainda) actual papa, exalta a vivência religiosa medieval e tem como modelo de sociedade a época das trevas obscurantistas, a ciência é alvo de tentativas de regulação religiosa, especialmente as ciências que dessacralizam a vida e refutam os dogmas que esta tenta impôr como leis, nomeadamente a sacralidade do óvulo fertilizado ou a «impureza» contra natura da homossexualidade. João Paulo II queria que a ciência seguisse a doutrina tomista que reza «Procurar compreender as leis da natureza é procurar compreender a obra de Deus, é, por conseguinte, aproximar-se dele», ou seja, tentou tornar a ciência uma aliada da fé, através de um aproveitamento capcioso das partes convenientes e uma condenação vigorosa e constante do que é incómodo para a religião.

31 de Março, 2005 Palmira Silva

Terri Schiavo

Chegou ao fim o drama que empolgou os media de todo o mundo e reacendeu a discussão sobre o direito a morrer com dignidade. Terri Schiavo faleceu 13 dias depois de a sonda que a alimentava ter sido desligada.

Quer o porta voz do Vaticano, Joaquin Navarro-Valls, quer o Padre Frank Pavone, director da organização americana Padres pela Vida, consideraram a cessação da manutenção assistida da vida vegetativa de Terri como um assassínio. Em relação a este último, o advogado de Michael Schiavo considerou «inquietantes» a «destilação de ódio e o julgamento extremamente duro» do seu cliente debitados pelo prelado, considerações não despiciendas uma vez que um alucinado defensor da vida já ofereceu um quarto de milhão de dólares pela morte de Michael.

Mais um tema que me mistifica: a total incoerência de uma religião que considera que os homens se estão a imiscuir indevidamente nos «desígnios» divinos quando investigam os «mistérios» da vida com técnicas como clonagem, manipulação de células estaminais ou recorrem a técnicas de reprodução assistida, que querem proíbidas, mas por outro lado declara criminoso que os frutos dessas técnicas abominadas não sejam utilizados para manter artificialmente o invólucro de alguém que como pessoa morreu há mais de 15 anos!

28 de Março, 2005 Palmira Silva

Farinha do mesmo saco: mais um caso de blasfémia!

Os organizadores de uma exposição de arte no Museu Sakharov intitulada «Cuidado! Religião» foram condenados por blasfémia por um tribunal de Moscovo.

A exibição de Janeiro de 2003 tinha sido condenada pela Igreja Ortodoxa Russa e vandalizada por seis fundamentalistas ortodoxos que destruíram as obras de arte em exposição e que não foram julgados por este acto de vandalismo.

As peças que tanto indignaram a hierarquia da Igreja Ortodoxa que considerou criminosa a exposição acrescentando que «encoraja o extremismo e a intolerância» são simplesmente um ícone com um buraco onde os visitantes podiam inserir as respectivas caras, um logótipo com uma garrafa de Coca-Cola ao lado de uma efígie do mítico fundador da seita com os dizeres «Isto é o meu sangue» e a escultura de uma Igreja feita de garrafas de vodka.

Claro que a vandalização do museu que honra um dos mais conhecidos defensores dos direitos humanos na era soviética não mereceu tais epítetos, não sendo nem criminosa nem extremista ou intolerante, mesmo quando o mural em honra de Sakharov foi conspurcado com slogans obscenos e anti-semitas.

Mistifica-me que os crentes não se apercebam do absurdo que é acusar outrem de intolerância por não consentir na sua verdade absoluta, totalitária e intolerante! Ou seja, considerarem que quem não acredita na religião deles e o manifesta é intolerante! e que a sua religião que é por definição intolerante para quem não crê (como o comprovam estes casos de blasfémia) é o expoente máximo da tolerância!