Loading

Palmira Silva

3 de Maio, 2005 Palmira Silva

Oxy-morons

Galileu enfrentando a Inquisição, Cristiano Banti (1857)

Como já tive oportunidade de escrever, a disputa do cristianismo contra a Ciência pela posse da verdade é História antiga. No Ocidente, o embate mais mediático e conhecido foi o caso Galileu. Essa batalha foi vencida pela Igreja, que obrigou Galileu a renegar as suas teses para não sofrer o destino de Giordano Bruno: ser imolado pelo fogo em nome da pureza e verdade da fé.

Outra disputa mediática entre ciência e fé pela explicação do mundo aconteceu há oitenta anos com o julgamento de John Scopes (o famoso «Monkey Trial»), o professor que ousou ensinar a teoria da evolução num liceu do Tennessee. Neste século XXI em que paira sobre a humanidade a ameaça dos fundamentalismos religiosos, que tentam recuperar o integrismo religioso medieval, a evolução volta ao banco dos réus, desta vez no estado do Kansas. De facto, o oxímoro(n) Conselho de Educação do Kansas começa esta quinta-feira em Topeka um julgamento de seis dias em que o réu é a evolução, ou, mais propriamente, o ensino da evolução.

O defensor da evolução, o advogado Pedro Irigonegaray, já afirmou o absurdo deste julgamento e considera que «debater a evolução é similar a debater se a Terra é redonda». Os cientistas americanos parecem partilhar desta opinião, para além de considerarem que o pretenso julgamento é apenas uma farsa que encenaram para proibir o ensino da evolução em favor do criacionismo.

São cada vez mais preocupantes os sinais do fundamentalismo cristão no outro lado do Atlântico. Como nos informa o Filipe Castro, «a Harper’s deste mês traz mais informações sobre os tais 30.000.000 (um terço do eleitorado americano) de Evangélicos/Baptistas que querem fazer dos EUA um estado religioso. Uma das coisas pelas quais eles se batem com vigor é a instituição da pena de morte para os crimes de apostasia, blasfémia e sodomia». Para além de existir uma «proposta em cima da mesa para instituir a pena de morte por crimes de bruxaria».

Não é de estranhar que muitos americanos considerem que a democracia americana está sob assalto destes fundamentalistas que pretendem instalar uma teocracia nos Estados Unidos, já que consideram que a laicidade é um «mito socialista».

1 de Maio, 2005 Palmira Silva

Inquisição em Dili

De acordo com o Diário de Notícias, que cita uma testemunha que pede o anonimato (pelas razões óbvias) os dois portugueses que foram agredidos pelos fanáticos católicos que se concentram em frente à residência do primeiro-ministro timorense foram sujeitos a um «tribunal popular na casa do bispo de Díli e maltratados durante quatro horas».

A testemunha acrescenta que «Os dois estavam sentados num canto, todos escavacados, num pequeno anexo, insisti para que os levassem a um hospital, mas diziam que não, que ‘eles tinham de ser julgados, num tribunal à maneira’, com jurados e tudo». Os dois portugueses, um professor e um funcionário de uma empresa de construção, só foram libertados deste reviver da boa tradição inquisitorial quando outro português decidiu ficar como refém dos tresloucados e prepotentes delegados da Igreja de Roma em Timor, certamente para permitir tratamento médico às primeiras vítimas desta tentativa de golpe de estado teocrático.

Segundo o Diário de Notícias, o português que testemunhou o «tribunal popular» disse ainda que numa tentativa de menorizar o sequestro de dois cidadãos estrangeiros em casa do Bispo, o porta-voz do Episcopado, padre Domingos Soares, terá dito que «também temos aqui jovens timorenses que não se portaram bem, não são só os portugueses».

O mesmo padre Domingos Soares acabaria por reconhecer os acontecimentos ao jornalista da RTP/Antena 1 em Díli «Todas as pessoas de quem desconfiamos, e cuja atitude é diferente, são levadas para o centro de investigação para esclarecer as suas atitudes». Ou seja, admite que há um «tribunal popular» em casa do Bispo. Como nos «saudosos» tempos da Inquisição, a Igreja Católica timorense arroga-se ao direito de julgar cidadãos, crentes ou não crentes, por atitudes «diferentes» das preconizadas pela «santa» Igreja!

29 de Abril, 2005 Palmira Silva

E mais tolerância cristã…

As declarações do Cardeal espanhol Ricardo Maria Carles estão a levantar ondas de indignação em Espanha já que este compara a decisão do governo espanhol em permitir o casamento de homossexuais às decisões do governo de Hitler, considerando que seguir a nova lei em vez da consciência «conduzirá a Auschwitz».

Reiterando a objecção de consciência preconizada pelo «intelectual» Trujillo, o tal que exigia terem os preservativos avisos sobre a sua «insegurança» já que supostamente deixariam passar o HIV, o cardeal afirmou numa entrevista à TV3 que «os que fizeram Auschwitz não eram delinquentes, mas pessoas que foram obrigadas, ou pensavam que deviam obedecer às leis do governo nazi, e não à sua consciência»!

É caso para perguntar por que razão a Igreja Católica que tanto apela à consciência dos seus crentes sempre que estão em causa privilégios da Igreja ou os seus dogmas, se cala ensurdecedora e sistematicamente quando os direitos humanos são atropelados por quem mantem esses privilégios ou permite a imposição desses anacrónicos dogmas!

28 de Abril, 2005 Palmira Silva

Tolerância cristã

Continua o terrorismo da Igreja Católica timorense para derrubar o governo democraticamente eleito de Mari Alkatiri. Pelo único motivo de este ter decidido fazer uma experiência em 32 escolas do país, nas quais o ensino da religião seria facultativo e, a pior afronta, pago pelas Igrejas.

Depois de verem goradas as expectativas de golpe de estado, já que só conseguiram convencer cerca de cinco mil fanáticos a invadir o palácio governamental e derrubar o governo, a táctica da Igreja Católica passa por exigir ao Presidente da República, Xanana Gusmão, que demita o primeiro-ministro «para assegurar o funcionamento normal das instituições democráticas».

Como a única instituição que pode ser afectada pela decisão do primeiro-ministro é a Igreja Católica, que é a antítese de uma instituição democrática, não se percebe muito bem o fundamento da pretensão da delegação em Timor da opulenta Igreja de Roma. Está certo que vai ter de desembolsar mensalmente 32 salários de professores mas instalar um clima insurreccional por causa desta mísera quantia, especialmente quando pensamos nos milhões de euros que foram gastos na preparação deste último conclave, parece-me demasiado fútil. Porque não pode ser o carácter facultativo da disciplina que indigna os bispos, já que se de facto os timorenses são tão católicos como vociferam os Bispos então todos vão optar livremente por serem proselitados. Claro que a expensas da Igreja e o lema da Igreja sempre foi «Venha a nós o vosso reino»…

De realçar também a reacção do Bispo resignatário de Díli e prémio Nobel da Paz, Ximenes Belo, cuja fantástica e tolerante mediação para a paz passa por aconselhar o governo a desistir da proposta sobre o carácter facultativo da disciplina de Religião e Moral.

«Aconselho as duas partes a resolverem este problema. Ao governo, solicito que arquive aqueles decretos e aos bispos que pautem pelo diálogo», declarou Ximenes Belo à Lusa.

Este conselho é o ex-libris da tolerância cristã: façam como nós queremos, sigam o que mandamos e nós seremos … tolerantes?

Claro que outro «conselho» não se esperaria do ilustre dignitário da Igreja Católica que pediu a expulsão de Timor do jornalista da Lusa António Sampaio por este se ter atrevido a escrever num artigo que Ximenes Belo era conservador!

27 de Abril, 2005 Palmira Silva

Relatividades, postulados e dogmas

«A vida de Einstein está cheia de paradoxos: o solitário que era um apaixonado humanista, o pacifista que advogou a criação da bomba atómica, o ateu que era um dedicado sionista e uma figura adorada pelo público mas observada pelo F.B.I. .Einstein é a biografia no seu melhor – o retrato de um homem que não só era um gigante intelectual mas possuía uma moralidade instintiva que lhe exigia que se esforçasse para tornar o mundo melhor.»

«A minha religiosidade consiste numa humilde admiração pelo espírito infinitamente superior que se revela no pouco que nós, com nossa fraca e transitória compreensão, podemos entender da realidade. A moral é da maior importância – para nós, porém, não para Deus». Albert Einstein numa carta datada de 5 de Agosto de 1927.

Em 1929, o cardeal O’Connel, de Boston, publicou uma declaração na qual dizia que a teoria da relatividade «encobre com um manto o horrível fantasma do ateísmo, e obscurece especulações, produzindo uma dúvida universal sobre Deus e sua criação». Apesar de pacífico aqui no DA o meu post «Relatividades e pontos de vista» provocou reacções semelhantes à do cardeal O’Connel, num post em que é criticado pelo blasfemo João Miranda.

Aparentemente o meu último parágrafo foi mal compreendido porque não ficou suficientemente explícito o que são as as «’leis’ absolutas da Humanidade» a que eu chamo de «ética consensual». Que, quiçá, é uma denominação tão pouco apropriada como teoria da relatividade para a teoria das invariâncias de Einstein.

Para tentar explicitar claramente o que eu penso serem as invariantes nos comportamentos sociais, as tais «leis» absolutas, vou mais uma vez recorrer a uma analogia com a ciência. Cuja extrapolação deve ser óbvia para os blasfemos uma vez que a maioria das ciências sociais e mesmo a economia recorrem a termos e conceitos «emprestados» da Física, em expressões tão corriqueiras como «as forças do mercado».

Suponho que os nossos leitores não duvidem que os fenómenos da Natureza obedecem a leis estritas. O objectivo da Ciência é chegar a essas leis ou, pelo menos, a leis que sejam consistentes com os fenómenos observados que, dentro das nossas limitações de observação, conhecimento e desenvolvimento científico, são o melhor que nos conseguimos aproximar das leis absolutas que regem esses fenómenos.

Por vezes para que uma lei seja consistente com todo o conhecimento científico acumulado é necessário postular, isto é, pedir. Pedir que se aceitem como verdadeiras algumas afirmativas que não se demonstram mas que, a serem verdadeiras, explicam convenientemente os fenómenos observáveis.

Por exemplo, no início do século passado Rutherford mostrou que um átomo é formado por um núcleo pequeno e denso, formado por protões (cargas positivas) e igual número de electrões (cargas negativas), orbitando a periferia. O modelo do átomo de Rutherford não era convincente porque os electrões radiariam energia sob a forma de radiação electromagnética, colapsariam sobre o núcleo e o átomo seria aniquilado. Para obstar a este «inconveniente» Niels Bohr, em 1913, apresentou um modelo que previa (quase) correctamente o comportamento do átomo de hidrogénio e que assentava em vários postulados. Um dos postulados de Bohr dizia que o electrão se pode mover em determinadas órbitas (circulares) sem radiar energia. Essas órbitas estáveis eram denominadas estados estacionários.

Mas em 1924 Louis de Broglie, um estudante de Arte Medieval que trocou as catedrais góticas por ondas electromagnéticas após ter servido como operador de rádio na 1ª Guerra Mundial, especula que a luz não é a única entidade a apresentar o dualismo onda-corpúsculo proposto por Einstein para a luz, que lhe permitiu a explicação do efeito fotoeléctrico em 1905 e o Nobel em 1921. Assim, de Broglie propõe que partículas como os electrões exibem igualmente comportamento ondulatório e apresenta a conhecida relação que tem o seu nome. E em 1926 Erwin Schrödinger adopta a proposta de de Broglie e publica um artigo com a famosa equação sua homónima aplicada ao átomo de hidrogénio. A mecânica ondulatória ou mecânica quântica nasceu no Natal de 1925 na estância alpina de Arosa, Suiça. Dois anos depois, em 1928, Dirac apresenta a equação de onda de d’Alembert sob a forma de um operador algébrico, encontrando a primeira solução para exprimir a mecânica quântica numa forma invariante sob o grupo de transformações de Lorentz da relatividade restrita. A mecânica quântica estava estabelecida, sem postulados, e o modelo de Bohr foi abandonado, sendo referido hoje apenas no âmbito da história da ciência.

Ou seja, em ciência os postulados são um meio, não um fim, para se chegar às leis absolutas, as tais que regem os fenómenos e que nós ambicionamos descobrir. E são alegremente abandonados quando se provam desnecessários. E são questionados sempre que alguém duvide da sua veracidade. E assim a ciência avança. Questionando os «dogmas» existentes e progredindo na direcção das tais leis absolutas.

Este progresso na descoberta das «leis» absolutas que regem o homem social é fortemente impedido porque a ética se confunde com a moral e esta, mesmo na sociedade mais laicizada, é ainda fortemente determinada pela religião. E na religião os dogmas são um fim, uma lei, uma verdade absoluta, e não um meio que se deve descartar quando se comprova desnecessário, anacrónico e até contraproducente. E assim a religião inibe o progresso ético da sociedade.

25 de Abril, 2005 Palmira Silva

Terrorismo em Timor Leste

Os dois bispos de Timor-Leste pediram hoje a demissão do primeiro-ministro Mari Alkatiri, depois de uma semana de manifestações organizadas pela Igreja contra a decisão de tornar facultativo o ensino da religião em 32 escolas.

Assinado pelo vigário-geral de Díli, padre Apolinário Guterres, a Igreja Católica divulgou hoje um comunicado que pretende que a concentração de católicos na capital timorense, hoje no seu sétimo dia, «não é simplesmente sobre religião».

«A essência do problema reside no modelo de sociedade que está a ser imposto sobre este povo», informa a Igreja timorense e, falando em nome dos cerca de cinco mil fanáticos que arregimentou, afirma que «o povo perdeu a confiança neste governo» e assim «em consequência o povo exige ao partido FRETILIN a remoção deste governo».

A Fretilin pela voz do seu presidente, Francisco Guterres «Lu-Olo», que já na semana passada tinha acusado a Igreja Católica de estar a criar um «clima pré-insurreccional», disse aos jornalistas que o partido maioritário em Timor-Leste «nunca aceitará que alguém tente tomar o poder pela força».

«A FRETILIN nunca há-de aceitar um golpe de estado. Nunca aceitará que alguém tente tomar o poder pela força. A experiência de 1975 bastou.»

Num comunicado de imprensa apresentado depois da reunião do Secretariado Político Permanente do Comité Central, realizada hoje em Díli, é exigido à hierarquia da Igreja Católica que respeite a Constituição e que que não se repita a experiência de 1975, uma guerra civil que colocou timorenses contra timorenses.

Nota: Terrorismo é o uso da violência ou a ameaça do uso da violência contra civis por razões políticas, religiosas ou ideológicas.

25 de Abril, 2005 Palmira Silva

Imago Dei

Foram recentemente conseguidos resultados muitos promissores para o tratamento da artrite, um flagelo que assola a população portuguesa, já que as doenças osteoarticulares «constituem uma parte importante das patologias crónicas que afectam a população com mais de 65 anos de idade, embora se iniciem frequentemente em idades jovens», como se pode ler no Plano Nacional de Saúde: Orientações estratégicas para 2004-2010.

Mas, possíveis curas envolvem técnicas «pecaminosas» como terapia genética, ou envolveram manipulação genética e clonagem para produção de ratos knockout (isto é, com uma mutação que impede a transcrição de um determinado gene) no gene que codifica a proteína que foi considerada responsável pela desagregação do aggrecan, o componente maioritário da cartilagem (excluindo água, claro) a aggrecanase-2.

Na realidade, manipulações «pecaminosas» são a esperança para a cura de mais doenças até agora sem tratamento efectivo. Outro exemplo é a doença de Alzheimer. Entre 2001 e 2002 a equipa liderada pelo professor Mark H. Tuszynski, na UCSD (Universidade da Califórnia em San Diego) implantou fibroblastos da pele geneticamente modificados para produzir NGF (factor de crescimento de tecido nervoso) no cérebro de oito pacientes com esta doença.

Os resultados deste tratamento por terapia genética foram agora conhecidos e são igualmente extremamente promissores: seis dos pacientes apresentam sinais evidentes do sucesso da técnica e o grupo do professor Tuszynski prepara-se para iniciar a Fase II do estudo.

Resta saber se o novo Papa, que já declarou que uma das prioridades do seu papado será exactamente a bioética, em que se inclui manipulação genética, investigação em células estaminais, etc., e que prepara um novo documento sobre o assunto, vai apelar à desobediência civil, como parece ser a sua táctica de imposição dos anacrónicos dogmas e referencial da Igreja de Roma, para travar quer a investigação quer terapias baseadas no que considera imiscuição indevida do homem nas competências divinas.

Lendo a profusão de documentos, entrevistas e declarações debitadas sobre o assunto, é fácil concluir que o Cardeal Ratzinger considera pecaminosa qualquer interferência no desígnio divino por manipulação genética.

Para o cardeal Ratzinger, e podemos apenas supor que para Bento XVI igualmente, o homem foi criado à imagem de Deus, e embora «A ideia do homem como co-criador com Deus poderia ser utilizada para justificar a manipulação da evolução humana através de manipulação genética.» não podemos esquecer que «isto implicaria que o homem tem direito pleno sobre a sua natureza biológica.» Ou seja, «O nosso estatuto ontológico como criaturas feitas à imagem de Deus impõe limites à nossa auto determinação (biológica). A soberania (sobre o nosso corpo) de que dispomos não é ilimitada» já que «Um homem só pode melhorar realmente realizando mais completamente a imagem de Deus em si unindo-se em Cristo em sua imitação.»

E convém informar que este novo Papa considera que se uma célula adulta é alterada para se tornar totipotente (ou estaminal) então deve ser considerada um embrião. Ou seja, é expectável que brevemente pretenda proibir, na boa tradição inquisitorial a que já nos habituou, a investigação em células estaminais, embrionárias ou adultas, e todas as terapias envolvendo estas células, que serão certamente consideradas um pecado mortal.

24 de Abril, 2005 Palmira Silva

Relatividades e pontos de vista

«A permanência é uma ilusão. Somente a mudança é real. É impossível pisar duas vezes o mesmo rio.»
Heraclitus (540-475 a.C.)

Especialmente depois da eleição de Bento XVI o termo relativismo entrou definitivamente no léxico do quotidiano, normalmente empregue em termos pejorativos, como tive ocasião de confirmar quando assistia à emissão em directo do congresso do CDS, marcada por referências constantes aos dois Papas do século XXI e a este suposto flagelo da Humanidade. É extremamente curioso que a maior parte dos que o utilizam não se apercebam do tiro no pé que tal recurso semântico constitui.

Na realidade a relatividade, entendida como «tudo é relativo» por aqueles que ou não sabem Física ou ficam bloqueados pelo complexo formalismo matemático da teoria, é conceptualmente muito simples e assenta na invariância das leis da Física. Ou seja, a teoria da relatividade (restrita) diz simplesmente que as leis físicas são as mesmas para todos os observadores inerciais ou em todos os referenciais de inércia. Os observadores, «presos» aos respectivos referenciais, observam comportamentos «desviantes» de objectos apenas porque estes se movem relativamente a outro referencial de inércia. Mas na realidade estes comportamentos são «normais» no respectivo referencial. Extrapolando para a sociedade a razão porque alguns comportamentos parecem «desviantes» das leis sociais ou morais reflecte simplesmente os pontos de vista – os referenciais, na linguagem da relatividade – de cada observador.

Como escreve o meu amigo Jorge Dias de Deus no livro «Viagens no Espaço-Tempo» da colecção Ciência Aberta da Gradiva «A relatividade, que desde o início fascinou o grande público, foi, por outro lado, quase sempre mal entendida. A frase «tudo é relativo», resumindo, segundo muitos, as ideias de Einstein, seria uma espécie de machadada na objectividade e no realismo científico. Nada, porém, estava mais longe do pensamento de Einstein.(…) Realmente, o que Einstein procurava era, não o relativo, mas o invariante. Para ele seriam as invariâncias da física que dariam sentido à relatividade das descrições. Que características dos acontecimentos permaneciam invariantes, independentes da descrição, do referencial?»

Tal como na Física o que devemos procurar são as características sociais que permanecem invariantes independentemente do ponto de vista ou referencial de cada um, o que de facto são (ou deveriam ser) as «leis» absolutas da Humanidade ou o que chamo de ética consensual. Nomeadamente o Direito de cada Estado deve reflectir esta ética consensual e não deve impôr um determinado referencial. O que é o grande objectivo da Igreja de Roma: a imposição do seu referencial medieval (com resquícios de neolítico) a todos, tornando crime tudo o que considera pecado.

23 de Abril, 2005 Palmira Silva

Ciência e religião

«Apenas acrescenta factos ao teu conhecimento (…)
Assim não estarás perdido ao deixar esse paraíso,
pois possuirás um paraíso muito maior dentro de ti,
uma felicidade muito maior
»
John Milton, Paraíso Perdido

Os seres humanos apresentam uma apetência inata por explicações, por respostas aos muitos «porquês» que a observação do mundo que os rodeia causam. Esta é certamente uma das razões que explica porque a religião se difundiu tão universalmente, já que a maioria das religiões oferece, ou oferecia, respostas concludentes para praticamente tudo: desde cosmologia, biologia, física, química até, claro, à indispensável «teoria» da criação. Neste sentido a religião poder-se-ia considerar como ciência, já que esse é também o objectivo da Ciência, explicar todos os fenómenos físicos numa associação tão completa quanto possível. Mas a metodologia de ambas não poderia ser mais diversa e a religião é, quanto muito, um paradigma da má ciência, já que não se baseia em conhecimento ou observações mas sim em «revelações» improváveis de entidades não fisicamente observáveis.

Assim no século XXI todo o conhecimento concreto e real pertence à ciência; e todo o dogma quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido, pertence à teologia. A teologia pretende que os cientistas são incapazes de descrever a Natureza, pelo facto de descartarem causas sobrenaturais e de desígnio insondável nas suas explicações.

Nos últimos tempos temos assistido a uma guerra surda entre as autoridades religiosas (e totalitárias) e a ciência, achando as primeiras que os cientistas dever-se-iam coibir de opinar sobre assuntos que contrariam os muitos dogmas religiosos, para além de deverem restringir os objectos de investigação a assuntos com os quais estas autoridades concordassem. A investigação em células estaminais ou a reprodução assistida destacam-se neste aspecto, já que os religiosos de várias confissões pretendem que determinados conhecimentos são restritos a Deus e que a ciência não pode investigar nessas áreas nem manipular técnicas que são da competência divina.

Para a Igreja Católica em concreto a verdade só pode ser revelada através da palavra divina, incompreensível para o homem, e a ciência, completamente fora do controle da Igreja, é um inimigo a anatematizar:

«Uma aceleração sem precedentes do progresso científico (…) a parcialidade contraditória das respostas oferecidas pela ciência moderna geram desorientação existencial e cultural entre os jovens e não só entre os jovens. O pensamento frágil, que se difunde rapidamente proclamando os dogmas da dúvida, do cepticismo e do relativismo radicais, produz personalidades frágeis, homens e mulheres que desistem da procura da verdade. Aumenta a diferença entre ética e pesquisa científica, aumenta o risco que a ciência, em vez de ser aliada do homem, se transforme numa ameaça para toda a humanidade» foram as palavras dirigidas pelo Arcebispo Stanislaw Rylko, em 31 de Março de 2004, ao oitavo Forum Internacional dos Jovens sobre o tema «Os jovens e a universidade: testemunhar Cristo no ambiente universitário».

O finado Papa, já tinha avisado que «A revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o homem, que avança por entre os condicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica tecnocrática» na sua encíclica Fides et Ratio. Realçando que a ciência sem fé, resultou no «positivismo» e no «cientificismo», no «humanismo ateu» e em todas as «pragas» dos tempos correntes que João Paulo II jamais deixou de invectivar contrapondo como exemplo os piedosos «cientistas» da Idade Média.

Neste contexto, a ciência, completamente incompatível com quaisquer revelações divinas, é extremamente perigosa para a fé já que pode dar respostas satisfatórias sobre os «mistérios» da vida e prova que estes conhecimentos não são exclusivos à omnisciência divina, o que quer que isso seja. E prova também que algumas das «verdades absolutas» que se contrapõem à «ditadura do relativismo» são apenas rematados disparates.

Por isso não é de estranhar que o início do pontificado deste novo Papa tenha sido pautado pela denúncia desta dita «ditadura do relativismo», ou seja, supremacia da razão e ciência em detrimento do totalitarismo da fé, pois, como afirma o jornalista e escritor espanhol Juan Arias «Ratzinger não pediria perdão à ciência pelas perseguições durante a Inquisição. Ele acha que é o mundo moderno que tem de pedir perdão à Igreja».

23 de Abril, 2005 Palmira Silva

Premonição ou Espírito Santo de orelha?

A nota pastoral debitada pelo cardeal Patriarca de Lisboa por alturas da Páscoa causou à época muita celeuma por o digno prelado ter entendido ser essa a altura apropriada para esclarecer um certo mau-estar relacionado com as circunstâncias em que decorreu o funeral do Dr. Nunes de Almeida.

Como terceira figura do Estado, o funeral do presidente do Tribunal Constitucional mereceu honras de Estado, que, no nosso País apenas laico no papel, decorreu na Basílica da Estrela. Como maçon, Nunes de Almeida tinha deixado expresso o seu desejo de ser velado segundo os ritos maçónicos, que decorreram numa capela adjacente à Basílica de Estrela.

Seis meses depois, o Cardeal Patriarca «apressou-se» a esclarecer que «Um católico, consciente da sua fé e que celebra a Eucaristia não pode ser mação». Porque a Maçonaria faz parte do conjunto de correntes de pensamento que «se baseiam na razão como fonte da verdade» e que acreditam «no carácter absoluto da liberdade individual».

Depois da eleição na passada terça-feira de Joseph Ratzinger interrogo-me se o ilustre cardeal português, que muitos especulavam ser um provável sucessor, teria tido uma premonição sobre as orientações do seu futuro Papa sobre o tema.

De facto, a opinião do actual Papa sobre a Maçonaria está explicitamente indicada em vários documentos emanados da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, ex- Santo Ofício da Inquisição, a que presidia. Que sem margem para dúvidas indicam:

«Permanece portanto imutável o parecer negativo da Igreja a respeito das associações maçónicas, pois os seus princípios foram sempre considerados inconciliáveis com a doutrina da Igreja e por isso permanece proibida a inscrição nelas. Os fiéis que pertencem às associações maçónicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão.»

Certamente que a Opus Dei e os Legionários de Cristo secundam e aplaudem tal disposição doutrinária…