4 de Junho, 2005 Palmira Silva
Crónicas fantásticas
A fantasia ou ficção fantástica é um género de literatura normalmente menorizado e relegado para literatura infantil. Basta lembrar que o livro que antecede a trilogia de «O Senhor dos Anéis» de J. R. Tolkien, «O Hobbit», está classificado nesta categoria!
O meu primeiro contacto com a fantasia, para além dos contos de fadas, aconteceu por volta dos sete anos com três livros da editora Civilização que descobri numa feira do livro: o referido livro de Tolkien, vendido como «O Duende», e dois livros de George MacDonald, «A Princesa e os Duendes» e «Curdie e a Princesa». O tema recorrente da fantasia é a luta do bem contra o mal em que, após muitas peripécias que normalmente envolvem a viagem dos paladinos do bem ao antro do mal, o bem vence. Na maioria dos livros de fantasia as alegorias do bem e do mal são completamente maniqueístas e, estranhamente, transcrevem muitos dos mitos cultivados pela comunidade essénia cujos escritos foram recentemente descobertos: os manuscritos do Mar Morto. A luta do bem contra o mal é uma luta da luz contra as trevas e a beleza física está associada ao bem. Basta recordarmos a saga das Guerra das Estrelas para confirmarmos que George Lucas seguiu à risca a «receita» mágica da fantasia, incluindo, no último episódio, o pormenor não despiciendo da tranformação física sofrida por Palpatine e, especialmente, por Anakin Skywalker.
De facto, apesar de a fantasia não ser considerada literatura «nobre», no cinema revela-se um grande sucesso de bilheteira, com pelo menos sete dos dez filmes mais bem sucedidos na história do cinema pertencendo ao género (alguns, como a Guerra das Estrelas, mais propriamente fantasia SciFi).
Tendo a fantasia o seu maior sucesso nas camadas mais jovens da população não é de estranhar que os fundamentalistas se indignem com o que consideram fantasia perniciosa, nomeadamente a série Harry Potter. Ironicamente, ou talvez não, a guerra dos fundamentalistas cristãos contra a série foi despoletada por um artigo satírico, que ridicularizava os acéfalos fanáticos, na indispensável «Cebola».
Clive Staples Lewis (1898-1963) ou C. S. Lewis é conhecido pela sua série «As Crónicas de Nárnia», publicadas em sete volumes entre 1950 e 1956. Lewis, um cristão fervoroso, escreveu a série após um debate sobre um dos seus livros estritamente religiosos, Milagres, em que foi «trucidado» por Elizabeth Anscombe. As Crónicas de Nárnia são uma forma diferente do autor transmitir a sua visão cristã do mundo.
O primeiro livro da série, O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, foi passado ao grande écran pela Disney estando a estreia prevista para Dezembro próximo. Neste episódio a acção desenvolve-se entre o Velho Testamento (Génesis) e o Novo Testamento, com o leão Aslan, o verdadeiro soberano de Nárnia que a malvada feiticeira tenta impedir de assumir o legítimo trono, no papel principal de salvador (e criador) de Nárnia. Considerado uma alegoria de Cristo, ele tem poderes de cura e prega o amor ao próximo. As crianças são os seus apóstolos, com Edmund no papel do traidor Judas. Tentado pela feiticeira através da gula Edmund torna-se numa parte fundamental da execução de Aslan, que, claro, o perdoa. E após uma morte cerimonial, com direito a via crucis, o leão sagrado ressuscita fechando e confirmando todo o círculo alegórico.
Com este filme acaba para a Disney um boicote de nove anos por uma associação de fundamentalistas cristãos, a American Family Association. Esta associação acusava a Disney de promover a homossexualidade e exigia que a Disney criasse um conselho consultivo de cristãos evangélicos. Para além, claro, de exigir que a Disney proibisse a reunião de homossexuais, GayDay, que se realiza anualmente nas suas instalações em Orlando.
Nenhuma das reinvidicações dos fundamentalistas cristãos foi atendida pela Disney mas os primeiros declaram-se satisfeitos por Michael Eisner, o director executivo de 62 anos da Disney, ter anunciado que se ia retirar em Setembro de 2006. A anunciada cisão da Disney com a Miramax, que esteve envolvida em filmes tão «ofensivos» como Pulp Fiction e Fahrenheit 9/11 também ajudou ao levantamento do boicote, mas a razão principal foi a adaptação ao grande ecrán de fantasia boa, recomendada por todos os cristãos!
Pessoalmente preferiria que a Disney tivesse continuado a transcrever em filme as «Crónicas de Prydain» de Lloyd Alexander de que fizeram um único episódio: «Taran e o Caldeirão Mágico».