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Palmira Silva

21 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

O aborto em França e as práticas actuais

No passado dia 17 de Dezembro o Movimento Médicos pela Escolha realizou uma conferência dedicada ao tema «O aborto em França e as práticas actuais», em que participou a ginecologista/obstreta Elizabeth Aubény, membro fundador e presidente honorária da FIAPAC (Federacion Internacionale des Associations de Professionals de Avortement et de la Contracepcion).

O testemunho da médica sobre a realidade da prática do aborto num país onde este é legal há três décadas permite desfazer alguns dos mitos sobre o tema.

Nomeadamente, demonstra inequivocamente que a legalização/despenalização não conduz, como pretendem muitos, a um aumento do número de abortos realizados, como se pode confirmar nesta figura onde são indicados os valores médios de interrupções voluntárias da gravidez por mulher no período 1976-1997.


Por outro lado, considerando que muitos apontam os custos para o SNS que a despenalização da IVG acarretaria (presumindo à partida que o SNS a suportará, o que não é certo) é útil confirmar na experiência francesa que tal não é verdade.

De facto, a maioria das IVGs faz-se até às 6 semanas, como indicado no gráfico seguinte, com cerca de 56% das intervenções realizada com recurso a fármacos, nomeadamente mifepristone ou a pílula RU-486, o que, segundo Elizabeth Aubény, implica serem os custos da IVG para o Estado Francês bem menores do que os custos do tratamento das complicações derivadas do aborto clandestino. E claro, são eliminadas as consequências do aborto clandestino (infecções generalizadas, infertilidade e morte).


De realçar ainda que não obstante a IVG ser legal em França este país tem a 2ª maior taxa de fecundidade da União Europeia.

Como nota final, constata-se que há um número elevado de portuguesas que realizam em França o que é criminalizado em Portugal, embora o número tenha diminuido desde que é possível realizá-lo em Espanha.

(Publicado simultaneamente no EuVotoSim) tag

20 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

Organizações cristãs exigem direito à intolerância

A «causa» cristã mais glorificada no momento é o direito à intolerância. Assim, depois de nos Estados Unidos a Christian Legal Society, uma associação de juizes e advogados, ter formado um grupo nacional para revogar nos tribunais federais as políticas de tolerância actuais, a moda cristã de ulular serem «perseguição religiosa» as leis que pretendem acabar com a discriminação baseada na orientação sexual chegou ao Reino Unido, mais concretamente à Irlanda do Norte.

Sete grupos cristãos irlandeses iniciaram uma acção judicial pelo direito de serem intolerantes e poderem discriminar os execrados homossexuais, nomeadamente opondo-se a uma nova lei – Equality Act (Sexual Orientation) Regulations – que entra em vigor na Irlanda do Norte no dia 1 de Janeiro e que bane a discriminação de homossexuais na área de serviços, sendo vedado aos cristãos negarem-se a fornecer serviços e vender bens a homossexuais.

Em Inglaterra, a Sexual Orientation (Provision of Goods and Services) Regulations – uma lei que penaliza a homofobia, nomeadamente a recusa de prestação de serviços a homossexuais, tem sido empastelada pela Opus Dei Ruth Kelly que pretende que a nova lei não se aplique a organizações religiosas para que estas possam continuar a discriminar homossexuais.

Rupert Kaye, presidente da Associação de Professores Cristãos, explica porquê a nova lei é tão inaceitável aos cristãos do Reino Unido que consideram que a tolerância «interferirá com a liberdade de alguém manifestar a sua religião»: «As escolas religiosas não podem nem devem ser obrigadas legalmente a respeitar indíviduos ou organizações cujas crenças ou estilos de vida são anátema para os cristãos».

Isto é, confirmando que a intolerância é indissociável do cristianismo e a já habitual cristianovitimização, os cristãos consideram ser um direito cristão inalienável desrespeitar quem não segue os ditames da sua crença. E carpem-se perseguidos se forem obrigados a respeitar os que não seguem as suas crenças!

Como apontava uma das nossas leitoras no espaço de debate do post «O Público errou», parece plausível que a inventada (e inexistente) «Guerra ao Natal» faça parte das manobras de pressão cristã para evitar que esta lei anti-discriminação entre em vigor!

19 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

O Público errou

Dada a relevância do mesmo reproduzo integralmente um texto da Associação República e Laicidade a propósito da invenção de mais uma guerra ao Natal. Apenas mais um exemplo da cristianovitimização omnipresente desde os primórdios do cristianismo e de que assistimos um regresso em força a propósito de tudo e mais umas botas:

O texto de ontem do Público, assinado por António Marujo, parece deliberadamente concebido para criar a ilusão de que existe uma campanha internacional para «proibir» alguns festejos desta época. Esta ilusão é construída através de erros factuais e distorções. Apontamos alguns de seguida.

  1. Alega-se que «um inquérito feito em Novembro revelou que três empresários britânicos em cada quatro proibiram decorações alusivas ao Natal». É falso. A pergunta colocada no inquérito (e que teve 74% de respostas positivas) foi: «admite banir decorações de Natal por se preocupar que possa ofender outras fés?» (?Do you admit to banning Christmas decorations because you are worried about offending other faiths??). Portanto, António Marujo omite (deliberadamente?) a diferença entre ter proibido, e admitir fazê-lo em determinadas circunstâncias, transformando uma hipótese num facto. António Marujo também parece ignorar que o mesmo inquérito alude a uma «obrigação legal de celebrar todas as fés» que não existe, o que levanta a suspeita de que seja um inquérito deliberadamente capcioso, formatado para provar a tese da «perseguição anti-cristã».
  2. António Marujo alega também que «a escola Hilarion Gimeno, de Saragoça (…) decidiu que este ano não haveria festas natalícias, para não incomodar as crianças de outras religiões». É verdade que não haverá festa, mas é falso que tenha sido «proibida», e a razão apontada por António Marujo não é citada pelo director da escola, que assume como principal motivação a falta de espaço físico na escola e a falta de tempo para cumprir o programa curricular.
  3. António Marujo cita ainda dois casos que (assumidamente) estiveram-para-acontecer-mas-não-aconteceram: um peru que não foi trocado por um frango (numa escola), e um rabino de Seattle que pediu que fosse colocado um candelabro ao lado das árvores de natal (num aeroporto), o que não lhe terá sido concedido.
  4. Finalmente, o artigo termina citando a despropósito uma nota da Associação República e Laicidade em que se criticava principalmente a demissão do Ministério da Educação de fomentar actividades na escola pública, ligadas a esta quadra e isentas de carácter catequístico. António Marujo parece implicar que a peça teatral em questão, ao retratar o «anjo Gabriel» e o «nascimento de Jesus», está a referir-se a «factos históricos que estão na origem do Natal». Ignoramos qual a base factual que sustenta estas últimas alegações, muito arriscadas num contexto que se pretende noticioso.

A propósito do mesmo artigo no Público recomendo vivamente a leitura do post «Quando o jornalismo sério parece ser proibido» no Renas e Veados.

18 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

O embrião segundo a Igreja Católica – II

Uma vez que a ciência desmente os seus dogmas, a Igreja de Roma pela pena de João Paulo II declara-se a expert em embriologia – mais concretamente transforma Pio IX, o cruzado contra a modernidade e paladino contra a ciência, no perito da área – já que os cientistas, que não consideram o embrião uma pessoa, sustentam uma tese caracterizada «por um dualismo profundo, que não é capaz de explicar o ser humano como unidade substancial».

Mas se a ciência para a Igreja não é capaz de explicar o ser do Homem (o que não é verdade como veremos num post seguinte), a versão da ICAR tem mais buracos que uma peneira!

De facto, este ser do Homem é identificado como sendo o genoma, isto é, a «identidade específica de uma pessoa humana» é determinada «fundamentalmente» pelo genoma humano. Ou seja, João Paulo II considera ser um genoma humano uma pessoa não explicitando se existe um gene «sobrenatural» insondável à ciência que codifica a alma ou princípio vital, o tal que caracteriza o homem e a sua «triunidade entre as vidas vegetativa, senciente e intelectual», já expressado, sobrenaturalmente também, no genoma. Isto é, a Igreja que considera não ser uma pessoa apenas a vida vegetativa não consegue explicar onde está a vida senciente (muito menos intelectual) do dito genoma!

Nem consegue explicar a contradição com a própria doutrina da Igreja já que «sendo o princípio vital a forma substancial [da vida] só pode existir um destes princípios animando o ser vivo» o tal princípio vital ou alma não pode estar presente no genoma, que teria de apresentar múltiplos princípios vitais para explicar a existência de gémeos homozigóticos – que partilham o mesmo genoma! De igual forma, não está presente numa célula estaminal totipotente – que pode dar origem a uma infinidade de outras células iguais – cuja investigação é anátema para a Igreja que a considera igualmente uma pessoa…

Na realidade um genoma humana de per se não é uma pessoa nem é o que define o ser do Homem, contrariamente ao que pretende a Pastoral Familiar do Porto que afirma ser o «que caracteriza um ser humano, o que lhe define a identidade, o que o torna um ser irrepetível» apenas «a individualidade do seu genoma», já que se assim fosse os gémeos homozigóticos seriam a mesma pessoa.

Ora suponho que nem mesmo o católico mais fundamentalista pretende que esses gémeos sejam a mesma pessoa. O que os torna pessoas e pessoas distintas não é o código genético que partilham mas sim a forma diferenciada como esse código genético foi transcrito, nomeadamente como se expressou nas proteínas que regulam a migração e crescimento neuronal e posteriormente no estabelecimento de sinapses. Crescimento neuronal -praticamente sem sinapses estabelecidas – que está numa fase muito incipiente no embrião ou feto até às 10 semanas e que não lhe permite qualquer senciência: esta forma de vida humana não tem consciência de si nem do meio ambiente! Não satisfaz sequer os critérios da própria ICAR sobre o que caracteriza uma pessoa…

Assim, a vida humana de que a ICAR é defensora intransigente não é a vida de pessoas é apenas… um código genético! Na realidade, a oposição dos grandes paladinos de óvulos, espermatozóides e células estaminais totipotentes quer à contracepção quer ao aborto reflecte não só a misoginia de quem se considera o dono do útero feminino – e que atribui à mulher a culpa do «Queda», o pecado original da procriação, a tal ponto que para mãe do seu mito tiveram de inventar uma virgem imaculada que concebera sem «pecado» -, como a rejeição pela ICAR do sexo sem fins reprodutivos, pelas razões indicadas no Responsum do Papa que inventou os sete pecados mortais, Gregório Magno (590-604): «O prazer sexual nunca ocorre sem pecado».

A ilegítima imiscuição humana nos desígnios «divinos», que perverte a «sagrada» função procriativa da sexualidade em profanos prazeres carnais, transformando-a numa «tríplice concupiscência»: a «concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida», pechas para o mal advindas do dito «pecado [original]» é uma abominação, uma ideologia do sexo que a ICAR execra e combate na letra da lei dos países em que tem mais poder político.

A contracepção – e o aborto – assim como a homossexualidade são anátemas para a ICAR porque permitem prazer sexual «inconsequente». O sexo deve ser cumprido no espírito de mortificação de quem sabe estar a cometer um pecado apenas admissível como um «duplo efeito», isto é uma acção directa promovida por uma razão moral (ter filhos) que tem um efeito inevitável, não intencional, indirecto e negativo: o prazer sexual.

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18 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

O embrião segundo a Igreja Católica

Face a tudo o que já foi abordado sobre o tema conclui-se que o ponto central da discussão sobre a despenalização do aborto deveria incidir sobre a ontologia do embrião, se é ou não uma pessoa.

Do ponto de vista científico é falso, como pretendem muitos pró-prisão aproveitando-se da falta de conhecimentos científicos da maioria da população, que a ciência diga que a vida começa na concepção. A ciência não pode dizer que há um ponto em que a vida começa porque esta nunca acabou. Tanto o óvulo como o espermatozóide estão vivos, são formas de vida humana. E formas de vida humana a que não concedemos qualquer dignidade ou valor.

A discussão sobre se o embrião é ou não uma pessoa deveria fundamentar-se assim em algo mais concreto que dizer vagamente que é vida humana porque há muitas formas de vida humana que não são pessoas. É necessário discutir aquilo que nos caracteriza e identifica como pessoas, o ser do homem que nos distingue de outras formas de vida, humana ou não!

A concepção do ser do homem continua, no entanto, refém da teologia cristã, que cristalizou num paradigma completamente desadequado ao conhecimento actual.

Concepção resumida numa alocução de João Paulo II aos membros da Pontifícia Academia para a Vida :«há que reconhecer a qualidade essencial que distingue cada criatura humana, pelo facto de ter sido criada à imagem e semelhança do próprio Criador. Constituído de corpo e de espírito na unidade da pessoa, o homem corpore et anima unus (…) possui por essência uma dignidade superior às outras criaturas visíveis, vivas e não vivas».

Ora é essa «qualidade essencial» que caracteriza o ser do Homem e lhe confere uma dignidade superior que a Igreja não consegue explicar quando aparece. De facto, apenas sustenta que «os seres vivos são formados por um corpo biológico organizado e por um princípio vital» sem explicar quando surge esse «princípio vital», que para os humanos a Igreja Católica afirma ser a tal anima que só a ICAR pode salvar.

Mas como mitologias religiosas não devem ser a base de sustentação de qualquer lei num Estado supostamente laico vamos ver o que de facto defendem a ICAR e seus representantes na sociedade civil quando se dizem «defensores intransigentes da vida».

Na encíclica Evangelium Vitae, João Paulo II, evitando declarar expressamente que o momento da animação coincide com o da concepção, afirma que a ciência actual «pode oferecer indicações preciosas para discernir racionalmente uma presença pessoal desde o primeiro surgir de uma vida humana». Não se percebe exactamente o que significa este preâmbulo já que João Paulo II não explicita o que é esta presença pessoal que supostamente a ciência discerne num óvulo e num espermatozóide- o primeiro surgir da vida humana!

O que é para a Igreja a «presença pessoal» é esclarecido quando mais à frente no texto é declarada errada a teoria aristotélica da animação tardia, que foi defendida pela Igreja até 1869, data em que Pio IX, no âmbito da sua guerra declarada à modernidade, proclama, sem qualquer sustentação teológica ou conciliar, o novo dogma da animação imediata – isto é, que a alma entra no corpo no momento da fecundação – e torna um «pecado» o aborto até então aceite pela Igreja.

Ou seja, para a Igreja de Roma a tal presença pessoal que transforma uma forma biológica de vida sem valor intrínseco numa pessoa é a alma que João Paulo II, metendo os pés pelas mãos, afirma que a ciência (?) permite discernir como animando o tal corpo biológico no momento da concepção, mais concretamente declara que a teoria da animação tardia «fundava-se sobre conhecimentos embriológicos errados», mas ao mesmo tempo afirma que o conhecimento embriológico actual está igualmente errado porque «atribui o estatuto de pessoa humana ao embrião só na fase da consciência de si (no final da gestação)»!

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(continua)
17 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

Aborto: uma questão de Direito – II

Quer a reflexão ética contemporânea, que recusa uma base exterior, isto é, transcendental ou sobrenatural, para a moralidade, quer a reflexão científica, que demonstrou a base biológica da moral, não permearam a nossa sociedade do século XXI. Pelo contrário, há cada vez mais exemplos perfeitamente anacrónicos da imiscuição dos obsoletos códigos morais religiosos no direito que rege uma série de países.

E não falo apenas daqueles onde a Sharia é uma realidade – e onde não é reconhecida a dignidade da mulher -, falo igualmente de Portugal, onde muitos pró-prisão – que ululam não o serem já que bramem não querer ver na prisão as «assassinas», apenas as consideram umas pobres coitadas sem capacidades intelectuais e morais que abortariam pelas mais «fúteis» razões se o aborto fosse despenalizado – se arrogam a julgamentos de valor assentes em morais religiosas igualmente obsoletas sobre as motivações de uma mulher que aborta!

Um Portugal que também não reconhece dignidade intrínseca à mulher já que regista a maior taxa da Europa de violência contra as mulheres, onde se estima que uma em cada três mulheres seja vítima de violência por parte do companheiro! Ou seja, onde um em cada três homens considera legítimo punir fisicamente a mulher cujo comportamento não se coadune com o modelo mariano que ainda impera! Onde a pena por assassinato é reduzida em 4 anos por ser considerada circunstância atenuante a recusa da vítima em «manter relações sexuais» com um marido abusivo!

Se de facto não existirem razões para considerarmos que o embrião é uma pessoa – e nos próximos posts espero mostrar que não há razões éticas ou científicas para tal, apenas dogmas religiosos – a criminalização do aborto é apenas mais uma forma de violência contra a mulher. Que é obrigada por uma sociedade que não lhe reconhece dignidade intrínseca – mas concede essa dignidade a um embrião sem consciência de si nem do meio ambiente – a abortar em condições desumanas e humilhantes, com reais perigos para a sua saúde física e psicológica. Que a relega para um sub-mundo de abortos de vão de escada onde é evidente a exclusão da mulher de uma sociedade que lhe impõe deveres mas não lhe reconhece direitos, uma sociedade com leis feitas por homens contemplando apenas os direitos dos homens!

Uma sociedade mais justa e livre é necessariamente uma sociedade em que não existam quaisquer formas de violência de género! Não quero viver numa sociedade que produz jovens como aquele que motivou a Campanha do Laço Branco, apenas mais uma contra a violência sobre a mulher, e aquela que, como docente na maior escola de engenharia do país em que uma fatia crescente do corpo discente são mulheres, me toca mais fundo.

A campanha foi instituída em 1991 em resposta ao crime ocorrido em Montreal, Canadá, no dia 6 de Dezembro de 1989. Nessa data, um jovem de 25 anos invadiu uma sala de aula de uma faculdade de Engenharia e ordenou aos homens presentes para se retirarem da sala, permanecendo somente as mulheres.

Após gritar «Vocês são todas feministas!», o jovem assassinou 14 mulheres por não suportar a mera possibilidade de as mulheres fazerem engenharia, um curso que ele considerava reservado a homens. Presumo que por não suportar a ideia de viver numa sociedade sem discriminação de género, em que as mulheres podem ser engenheiras e outras profissões «masculinas», suicidou-se em seguida.

Por tudo isto e porque não há qualquer razão de ordem ética ou científica para considerar que um embrião/feto até às dez semanas é uma pessoa, voto SIM no referendo de dia 11 de Fevereiro! Porque o SIM ao referendo é igualmente uma forma de progredirmos na construção da sociedade que gostaria fosse a minha!

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(continua)
17 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

Aborto: uma questão de Direito

«Concebida como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais, o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não a uma qualquer ideia apriorística do homem» Vital Moreira e J. J. Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1° volume, Almedina, Coimbra.

No próximo referendo de dia 11 de Fevereiro os portugueses são chamados a decidir nas urnas se deve ou não ser descriminalizada a interrupção voluntária da gravidez, vulgo aborto, até às 10 semanas de gravidez.

E é tão só esta a questão a que temos de responder! Sem folclores falaciosos a contaminar a discussão, devemos reflectir se a interrupção da gravidez até às dez semanas, praticada sobre um embrião -até às oito semanas de gestação – ou um feto, deve ser ou não considerada um crime!

Uma vez que o direito penal deve ser totalmente independente de considerações morais ou religiosas e que crimes sem vítimas – assentes em morais religiosas que criminalizam ou proibem pecados como a homossexualidade, o aborto, o divórcio, o adultério, a fornicação, etc. – não devem ser penalizados, a reflexão que deveria ser feita incide sobre o que é o ser vivo – e ninguém duvida que se trata de um ser vivo – que será abortado.

Isto é, dever-se-ia fazer uma reflexão ontológica sobre o embrião ou feto, decidir se é já uma pessoa, como o consideram os pró-prisão – que se referem falaciosamente ao abortamento de um bébé -, ou apenas uma forma de vida humana que ainda não é uma pessoa. Se esta forma de vida sobre a qual se exerce o aborto ainda não é uma pessoa não faz sentido criminalizar o aborto e devemos deixar ser a mulher a optar por continuar ou não uma gravidez indesejada! Deveremos deixar à mulher a escolha difícil de consciência sobre o abortamento de um ser vivo que não é uma pessoa mas é uma forma de vida humana, numa sociedade que referendaremos igualmente ser uma que reconhece a mulher como um «ser autodeterminado e capaz de escolhas responsáveis e morais»!

Mas esta opção só pode ser tomada se considerarmos que o embrião ainda não é uma pessoa! Ninguém, excepto os pró-prisão mais fanáticos que ululam ser o embrião um «bébé» mas aceitam o «assassínio» de um «bébé» se decidido por pessoas «competentes» e capazes de escolhas «morais»- categoria de onde excluem as «fúteis» mulheres-, preconiza a pena de morte!

Se chegarmos à conclusão que um embrião é uma pessoa então, quaisquer que sejam as implicações dessa conclusão, problemas de saúde pública ou outros, o aborto deve ser considerado um assassínio e proibido em quaisquer circunstâncias excepto como legítima defesa, isto é, excepto para salvar a vida da mulher!

Mas em que critérios nos devemos basear para classificar esta forma de vida humana? Em critérios religiosos ou em critérios assentes na ciência e na razão? Em que ética devemos assentar a decisão, numa ética secular racional ou numa ética religiosa dogmática?

Relembro que desde o Iluminismo os filósofos defendem dever a ética (e mesmo a moral) ser fundamentada não em valores religiosos mas sim na compreensão da natureza humana. Foi o falhanço do projecto renascentista que forneceu o pano de fundo no qual a nossa cultura se torna inteligível: uma cultura onde o debate ético é visto como indissociável da religião e esta continua transposta para o Direito, mesmo em Estados supostamente laicos.

Uma ética secular racional será muito mais forte que uma moral dogmática religiosa, até porque os tempos conturbados que vivemos corroboram Feuerbach: «quando a moral se baseia na teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem ser justificadas e impostas».

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(continua)
16 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

8 de Dezembro – VI

Ao longo desta série de posts* fica claro que todo o reinado de Pio IX é pautado pelo combate à perda de poder político da Igreja – que confirma a citação de Antero de Quental, isto é, consistiu em «fortificar a ortodoxia, concentrando todas as forças, disciplinando e centralizando; empedernir a Igreja, para a tornar inabalável» – ou seja, para tentar recuperar a hegemonia perdida Pio IX acentuou fortemente as prerrogativas papais na área religiosa, debitando dogmas e proclamações sem qualquer discussão prévia dentro da Igreja. Assim, o dogma que criou o feriado que inspirou esta série foi o primeiro definido e proclamado – na bula Ineffabilis – apenas pelo Papa, sem o apoio de um concílio.

Mas o que marca o pontificado deste Papa absolutista que se arrogou a declarar-se infalível – não por coincidência, no mesmo ano em que a Itália anexou os estados pontifícios – são a encíclica Quanta cura (1864) e seu famoso apêndice, o Sílabo de Erros, ou mais concretamente o Syllabus complectens praecipuos nostrae aetatis errores (Sílabo que abarca os principais erros do nosso tempo) que, para além da defesa da intolerância religiosa, condenam explicita e veementemente a democracia, a laicidade, a pretensão dos governos em legislar sem os auspícios do papa, o feminismo que dava os primeiros tímidos passos, o progresso e a civilização moderna. Enfim, tudo que fosse ou parecesse moderno merecia o anátema da Igreja de Roma, que bramia estar sob ataque de forças demoníacas empenhadas em desacreditar ou destruir os dogmas da fé!

Mas as manobras de Pio IX para segurar as rédeas do poder secular, nomeadamente a centralização no Papa de todo o poder, foram contraproducentes para as ambições papais já que os governos europeus viram claramente os propósitos de Roma e uma onda de saudável anti-clericalismo varreu a Europa como resposta. Como o confirma a carta circular em que o chanceler Bismarck alerta em 1872 os governos europeus para o facto de, após o concílio Vaticano I, os bispos se terem tornado meros instrumentos do Papa. Num discurso no Reichstag em 1872, Bismarck afirma mesmo que:

«Não acredito que, depois dos dogmas recentemente expressos e publicamente promulgados pela Igreja Católica, seja possível a um poder secular chegar a uma concordata, sem que esse poder seja, em certa medida ou de alguma maneira, humilhado.»

Otto von Bismarck unificou a Alemanha sob o controle prussiano e após a incorporação dos estados católicos do sul e parte do que é hoje a Polónia, não via com bons olhos que os católicos, representados pelo Partido do Centro Católico – o tal que uns anos depois deu de bandeja a chancelaria a Hitler -, colocassem a autoridade papal acima da autoridade do estado alemão. Assim, tentou restringir e conter o poder político de Roma com a Kulturkampf (a luta cultural devidamente condenada por Pio IX na encíclica de 1875 Quod Nunquam), especialmente com o Kanzelparagraph – que ameaçava com até dois anos de prisão os clérigos que fizessem declarações políticas dos púlpitos – e, por exemplo, a introdução do casamento civil.

Para além da Alemanha, o despotismo papal que se traduzia na recusa de Pio IX em reconhecer a legitimidade do poder temporal de qualquer governo que não aceitasse ser regido pelos ditames do Vaticano, nomeadamente a recusa de Pio IX em aceitar o novo estado monárquico constitucional italiano e a excomunhão de todos os católicos que participassem em qualquer processo democrático, tiveram como consequência o oposto do pretendido pelo Papa. De facto, o poder católico na sociedade civil foi diminuindo um pouco por toda a Europa, nomeadamente com a secularização do ensino e a instituição do casamento civil, mesmo em países como a Áustria, um país tradicionalmente católico.

Secularização do ensino que sempre foi um espinho cravado na Igreja de Roma que considerava ser um «direito inalienável da Igreja» a lavagem cerebral desde tenra idade, como é reiterado na encíclica de Pio XI, Divini Illius Magistri. Recordo que as únicas divergências de Pio XI e Pio XII com Hitler e Mussolini tinham exactamente a ver com a educação dos jovens, que ambos carpiam ser direito da Igreja e não dos estados nazi e fascista, respectivamente.

O reconhecimento de que a linha de acção de Pio IX era contraproducente para as ambições de poder de Roma ditou a aparente reconciliação com a modernidade do papa seguinte, Leão XIII (1878-1903), que embora declarando na bula Immortale Dei ser a democracia incompatível com o catolicismo – isto é, com a autoridade da igreja – tentou uma reaproximação menos despótica com diversos governos europeus. O desentendimento com o estado italiano, no entanto, perdurou até ao Tratado de Latrão, assinado no antigo palácio papal em 1929 entre o Papado e o regime fascista de Benito Mussolini (mediante o qual foi criado o Estado do Vaticano e a Igreja recebeu uma astronómica quantidade de dinheiro em troca do apoio à ditadura fascista).

De qualquer forma, e como ligação para os posts seguintes, importa reter que toda a actuação de Pio IX se insere numa luta política de manutenção de poder e sequer remotamente tem a ver com questões de fé. Isto é, os dogmas que introduziu e as declarações que produziu, muitas delas em total discordância com a tradição católica, tentavam simplesmente assegurar o poder temporal de Roma.

Assim, a proclamação por Pio No No, em total discordância com a própria doutrina da Igreja, de que o aborto é um pecado imperdoável, merecedor de excomunhão automática, qualquer que seja o momento em que seja feito, tem de ser contextualizada na sua guerra desesperada contra o modernismo e a ciência e não traduz qualquer reflexão teológica sobre o tema. Reflexão teológica desencorajada por Roma a partir de então já que a negação da declaração quasi dogmática e quasi infalível de Pio IX, sem qualquer suporte teológico, filosófico ou ontológico, lançaria suspeitas sobre os restantes dogmas «infalivelmente» declarados !

* 8 de Dezembro
8 de Dezembro – II
8 de Dezembro – III
8 de Dezembro – IV
8 de Dezembro – V

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15 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

Obesidade e espantalho SNS

Suplemento da Nature de 14 de Dezembro de 2006: Obesidade e diabetes (acesso livre)

Na falta de argumentos para explicarem bem explicadinho porque razão os pró-prisão subscrevem a pena de morte – já que ululam ser um assassínio o aborto por opção da mulher mas aceitam sem problemas o aborto por opção médica -, o recurso ao espantalho SNS é a falácia de eleição dos que já começaram a invadir o ciber-espaço com lamentos de que nas condições actuais do país este «não se pode dar ao luxo de pagar os prazeres despreocupados e bem passados das meninas, que por descuido não tomaram as devidas precauções» justificando assim que «VOTO NÃO,NÃO E NÃO!!!!!!!!».

Claro que é impossível assentar em argumentos éticos ou ontológicos a posição insustentável de se ser a favor, no país pioneiro da abolição da pena de morte, do «assassínio» de uma pessoa por opção médica e seria mais que expectável ser a campanha dos pró-prisão assente exclusivamente em falácias, mas esta é tão imbecil que eu esperaria, quiçá optimisticamente face aos dados vindos a lume recentemente, que o NÃO recorresse a falácias mais subtis!

De facto, se alguém considera justificação para manter a criminalização do aborto não querer pagar dos seus impostos «os prazeres despreocupados e bem passados das meninas» porque razão não se há-de criminalizar outros prazeres, que não sexuais, igualmente despreocupados e bem passados e sem serem acauteladas as devidas precauções, que acarretam custos muito superiores, pelo menos uma ordem de grandeza quiçá duas a breve trecho, para o SNS?

Nomeadamente refiro-me aos prazeres da mesa que resultam na obesidade e implicam uma panóplia de doenças crónicas, como a que é abordada especialmente neste suplemento da Nature, a diabetes tipo II, mas igualmente outras disfunções metabólicas incluindo doenças cardiovasculares, a maior causa de morte em Portugal.

Porque razão deve uma fatia larga dos nossos impostos pagar as consequências da sandes de courato de alguém que, inundado de informação sobre as causas da obesidade bem como sobre as formas de a evitar, persiste neste comportamento irresponsável sem tomar as devidas precauções, nomeadamente exercício regular?

Com base no que parece ser o sustentáculo único da argumentação pró-prisão, que o comportamento «irresponsável» que acarrete problemas de saúde pública deve ser criminalizado, será que consideram igualmente criminalizar a obesidade? Considerarão igualmente criminosos os fumadores? Ou os que não fazem exercício regular?

14 de Dezembro, 2006 Palmira Silva

350 000 portuguesas em idade fértil já abortaram

Foi ontem apresentado na Maternidade Alfredo da Costa o estudo «A Situação do Aborto em Portugal: Práticas, Contextos e Problemas», assente numa sondagem encomendada pela APF à Consulmark.

Para além do autismo subjacente aos protestos dos movimentos pró-prisão em relação ao facto de um organismo público ter albergado a divulgação do estudo – mas não protestaram, claro, a apresentação do livro pró-prisão «Vida e Direito», da autoria de Matilde Sousa Franco, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, igualmente um organismo público – importa reflectir nos resultados deste estudo, que desmistifica algumas lendas urbanas em torno do tema.

O estudo indica que 350 mil mulheres em idade fértil (isto é, entre os 18 e os 49 anos) já terão abortado em Portugal. Pessoalmente considero que estes números pecam por defeito – e conheço muitas mulheres que sei terem abortado e se recusam a admiti-lo – também pelo facto de a sondagem se ter restringido a mulheres em idade fértil, isto é, a mulheres que cresceram e viveram na época de contraceptivos mais eficientes e acessíveis. Estou certa que se inquiridas mulheres da geração da minha mãe, em que os contraceptivos eram de mais difícil acesso e menos eficazes e o «desmancho» algo banalizado no «sub-mundo» das mulheres, estes números seriam muito mais avassaladores.

De qualquer forma, estes números demonstram claramente que o aborto não é, como pretendia um conhecido fazedor de opinião da nossa praça, «uma questão residual». Na realidade, e como este «exercício fútil e idiota mas às vezes dá vontade de o ser…» da Shyznogud indica, usando um método contraceptivo com uma eficiência de 99,5% – que é um valor optimista e não entra em conta com possíveis problemas, por exemplo gastro-intestinais, que anulam o efeito dos contraceptivos orais – todas as mulheres fertéis têm uma probabilidade, calculada de forma conservadora, de pelo menos 1,5 gravidezes indesejadas!

E o estudo indica que muitas destas gravidezes indesejadas são interrompidas, não obstante a lei, e – como refere o médico pró-despenalização Constantino Sakellerides, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e ex-director-geral da Saúde – torna evidente que as mulheres não tomam a decisão de abortar «com ligeireza»- a maior parte diz que a decisão foi «difícil» ou «dificílima».

O estudo ressalta ainda o problema de saúde pública que o aborto clandestino constitui já que quase 35% das mulheres ouvidas fala em complicações pós-aborto. Dessas, 27,4% precisaram mesmo de internamento hospitalar. Em um terço dos casos em que foi usado um medicamento abortivo, foi necessário concluir o processo num estabelecimento de saúde.

Isto é, os que ululam o espantalho SNS, ignoram, para além dos traumas psicológicos e físicos que a situação constitui, os custos actuais da criminalização do aborto, comparáveis ou até superiores àqueles que a despenalização acarretaria mesmo se a IVG fosse integralmente suportada pelo SNS, o que duvido!

No Público de sábado entre os artigos dedicados à tese de mestrado sobre o aborto de Andreia Peniche (links reservados a assinantes) retiro o que considero ser o cerne da questão no referendo de 11 de Fevereiro e que o estudo evidencia:

«A autora aponta ‘a dificuldade em perceber as mulheres como seres autodeterminados e capazes de escolhas responsáveis e morais‘».

Ou seja, num país que foi pioneiro na abolição da pena de morte, o que indica que a população nacional não aceita que qualquer que seja a dignidade ética de um determinado indíviduo esta se sobreponha à dignidade intrínseca de uma pessoa humana, todos (ou quase, há uma percentagem muito pequena de fundamentalistas católicos que quer uma lei análoga à da Nicarágua, que condena à morte todas as mulheres que tenham uma gravidez ectópica) aceitam e aprovam o aborto por escolha médica. Mas desses, muitos não aceitam o aborto por escolha da mulher! Isto é, para esses o aborto não é intrinsecamente algo errado o que é errado (ou fútil) é permitir que se realize por escolha da mulher!

Subentendendo a aceitação do aborto por opção médica – uma vez que estou certa que os mesmos que consideram justa a actual lei não aceitariam o assassínio de alguém por indicação médica ou outra – que muito poucos em Portugal consideram ser uma pessoa o embrião ou feto abortado, o que está em causa é o paradigma católico da mulher que ainda impera em Portugal. Mulheres que sendo mais «fracas de espírito» e «atreitas» às tentações do Demo não têm competência moral para tomar este tipo de decisões devendo estas ser feitas por outrem, que ajuizam as motivações femininas para abortar!

Assim, o que vamos votar no próximo dia 11 de Fevereiro é mais do que a despenalização do aborto! Vamos igualmente decidir que modelo de sociedade queremos seja a nossa! Porque uma lei que reflecte claramente falta de confiança na mulher, que não a considera capaz de tomar decisões, corresponde a uma sociedade que não se coaduna com os valores que supostamente deveriam ser os nossos, assente nos direitos do Homem. Se o resultado do referendo for NÃO, a nossa é quanto muito uma sociedade que reconhece (apenas) os direitos do homem…