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Palmira Silva

8 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Sashimi versão cristã

«Temos de ser realistas em relação ao que a Bíblia diz sobre medo e não recearmos partilhar a nossa fé na escola» é a posição do pastor Anthony Martin da First Assembly of God Church, em Florence, Alabama. E como «Não podemos deixar que o medo regule as nossas vidas» o denodado pastor recorre a métodos inovadores para marcar cruamente as suas prelecções sobre medo.

Assim, a semana passada os participantes das ousadas iniciativas do pastor, que pretende que os jovens se entreguem a Cristo e desenvolvam um relacionamento mais profundo com ele, digeriram uma lição (intragável, diria eu) sobre medo, em que os jovens foram convidados a engolir… peixes vivos!

Quiçá para Martin não incorrer nas desventuras do padre Arthur Michalka, que foi obrigado a pedir desculpas pela sua lição in promptu sobre o valor do sofrimento, todos os adolescentes que participaram na degustação estavam devidamente munidos de autorizações paternais…

8 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A missão

São George contra o dragão aka eixo do mal.

Um programa da BBC que irá para o ar segunda feira provocou uma reacção oficial da Casa Branca, nomeadamente um comunicado de imprensa em que o porta-voz, Scott McClellan, afirma serem absurdas as afirmações de um dignitário palestiniano de que G. W. Bush afirmou estar a cumprir uma missão «divina» quando decidiu invadir o Afeganistão e o Iraque.

De acordo com Nabil Shaath, o ministro dos Negócios Estrangeiros palestiniano aquando da cimeira israelo-palestiniana de Sharm el-Sheikh, quatro meses antes da invasão do Iraque, durante esta Bush revelou detalhes do seu fervor religioso, já abordados no seu livro autobiográfico, «A charge to keep».

Segundo Shaath, Bush terá dito, entre outras devotas revelações, que: «Sou conduzido por uma missão de Deus. Deus disse-me ‘George vai e luta contra estes terroristas no Afeganistão’. E eu fui. E então Deus disse-me ‘George, vai e acaba com a tirania no Iraque’. E eu fui.» afirmando em relação à cimeira «E outra vez, senti as palavras de Deus vindo a mim, ‘Vai e faz os palestinianos terem o seu estado e faz os israelitas terem a sua segurança e leva a paz ao Médio Oriente’. E, por Deus, eu vou fazê-lo».

Estas alegações, vigorosamente negadas pela Casa Branca, serão difundidas no âmbito de um documentário em três episódios da BBC, que analisa as tentativas de paz no Médio Oriente na perspectiva dos seus intervenientes directos. O líder palestiniano Mahmoud Abbas, que participou na cimeira de 2003 no Egipto, aparece igualmente no documentário a reforçar a motivação religiosa das «cruzadas contra o eixo do mal» de Bush. Aliás, imediatamente após a cimeira, o periódico israelita Haaretz revelava que, segundo Abbas, Bush terá dito: «Deus disse-me para lutar contra a al Qaida e eu lutei contra ela, depois deu-me instruções para ir contra Saddam, o que eu fiz, e agora estou determinado a resolver o problema no Médio Oriente.»

Assim, não se percebem as objecções da Casa Branca à divulgação da história, até porque G. W. Bush reafirmou inúmeras vezes o seu papel de cruzado divino. Papel perfeitamente entendido e interiorizado pelo seu Departamento de Defesa, nomeadamente pelo general William “Jerry” Boykin, o sub-secretário da Defesa encarregue da caça a bin Laden, que considera ainda que os terroristas tentam destruir a América porque «somos uma nação cristã e o inimigo é um tipo chamado Satanás» considerando que «o nosso inimigo espiritual só pode ser defendido se lutarmos contra ele em nome de Jesus».

Boykin, um fanático cristão que vê Satanás até em manchas escuras de fotos (de Mogadishio, capital da Somália), afirmou ainda que Bush, que foi eleito em 2000 sem a maioria dos votos, que foram para Al Gore, não foi posto na Casa Branca com o voto popular mas sim nomeado por Deus.

Curiosamente os países integrantes do «eixo do mal» são, juntamente com o Vaticano, os grandes aliados dos Estados Unidos noutra cruzada, esta contra o uso de preservativo como forma de prevenção contra a SIDA…

4 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A nomeada para o Supremo Tribunal

George W. Bush nomeou ontem Harriet Miers, uma conselheira da Casa Branca, para o Supremo Tribunal.

A nomeação de Miers, cuja posição sobre assuntos como o aborto e a separação religião-Estado é desconhecida, provocou ondas de indignação nas hostes teocratas. De facto, os teocratas norte americanos que ajudaram a eleger Bush sentem-se traídos nas suas aspirações de verem juízes teoconservadores no Supremo, que transcreveriam na pena da lei os anacrónicos dogmas cristãos.

Não obstante os protestos dos teoconservadores, que preferiam alguém como o católico John G. Roberts no lugar, a apreciação de Dick Cheney sobre Miers, sossegando o conservador spin doctor Rush Limbaugh sobre a nomeação, não é muito animadora…

2 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Presunção e água… Bento XVI

«É importante fazer um grande esforço para explicar adequadamente os motivos das posições da Igreja, destacando que não se trata de impor aos não-crentes uma perspectiva de fé, mas sim de interpretar e defender os valores radicados na natureza mesma do ser humano.» Ratzinger aka Bento XVI dixit

Qunado li esta notícia lembrei-me de uma excelente crónica de José Vítor Malheiros, no Público (link indisponível) de 26 de Abril, especialmente do parágrafo que afirmava: «Quando alguém como Ratzinger chama a atenção para o “relativismo moral” da sociedade moderna mas, ao mesmo tempo, afirma que ‘não há salvação fora da Igreja Católica’ […] ou condena o aborto em nome da defesa da vida mas se mostra compreensivo para com a pena de morte, compreendemos que os ‘valores morais universais e absolutos’ que defende são apenas a supremacia das posições do Vaticano sobre todas as outras, com as variantes regionais e temporais que este entenda defender.

O Vaticano não possui qualquer autoridade para falar de ‘relativismo moral’ pois essa é a sua moeda corrente. Um dos domínios onde isso é gritante – e só não vê quem não quer – é a questão dos direitos das mulheres no seio da Igreja. A Igreja não pode considerar que o mais alto papel a que uma mulher pode aspirar é lavar os pés do Papa e falar de duplicidade de critérios. Como não pode abençoar torcionários e autores de massacres e falar do direito à vida, ou amordaçar as opiniões divergentes no seu seio e falar dos direitos humanos. Ou condenar milhões de africanos a morrer de SIDA ameaçando-os com o inferno se usarem o preservativo e falar da piedade, do perdão e do amor de Cristo».

De facto, fico sempre espantada com a pesporrência totalitária de quem se arroga detentor das «verdades absolutas» reveladas, de quem acha que só a hierarquia da Igreja de Roma é competente para definir o que é a natureza humana da qual decorrem, sem discussão, os seus dogmas. Ou seja, estas «verdades absolutas» que não podem ser questionadas, resultam da interpretação desta natureza humana … pelos iluminados pelo espírito santo, outro dogma cristão. Claro que quem questiona estes dogmas são relativistas «infelizes que não receberam as graças de Deus» ou «não conheceram Jesus». O que redunda exactamente no tentar «impor aos não-crentes uma perspectiva de fé».

Para além das inconsistências morais referidas na crónica de José Vítor Malheiros, analisando a posição da Igreja de Roma ao longo da História verificamos ainda que, como para o resto da Humanidade, na realidade as «verdades absolutas» para a ICAR foram-se alterando com o tempo. Verdadeiro e falso são valores lógicos atribuídos a uma determinada proposição, ou seja, a verdade não pode ser absoluta, porque ela é um conceito que emitimos sobre uma proposição. Uma verdade de ontem pode não ser uma verdade hoje, porque o contexto em que essa verdade é avaliada mudou ou porque novos dados entretanto descobertos transformaram essa verdade em mentira. Isso aconteceu a muitas «verdades absolutas» da ICAR, não só as que foram desmistificadas (com grande oposição e muitas fogueiras inquisitoriais pelo meio) pela ciência, como o geocentrismo ou o criacionismo bíblico, mas também os «valores morais universais e absolutos» que foram, com grande resistência, abandonados pela Igreja de Roma. O anti-semitismo, a defesa da escravatura, a perseguição e assassínio de bruxos, hereges e apóstatas, a defesa do uso de tortura, a legitimidade das guerras «santas», a negação dos direitos dos homens, a defesa de regimes de «direito divino» e a condenação da democracia, a condenação da liberdade de expressão, a luta contra a emancipação da mulher, enfim, uma série de «erros» morais por alguns dos quais, difíceis de apagar dos livros de História, João Paulo II fez me(i)a-culpa.

Mas todas estas ex-verdades absolutas católicas só são reconhecidas hoje como abominações morais após muita resistência da Igreja, muitos discursos e encíclicas condenando os erros da modernidade, em tudo menos no assunto idênticos às prelecções contra a «ditadura do relativismo» do actual Papa. Que autoridade e credibilidade para falar em «valores morais universais e absolutos» tem uma Igreja que tantas vezes impôs dogmas falsos? Que perseguiu, torturou e muitas vezes queimou como hereges os que se atreveram a questioná-los?

2 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Teorias criminais

Um dos pioneiros do teoconservadorismo e da introdução da religião no debate político nos Estados Unidos é o republicano católico devoto William J. Bennett, uma dos mais destacados cruzados nas guerras culturais que assolam os Estados Unidos. Bennett defende a moral e bons costumes cristãos afincadamente na cena política norte-americana há mais de 20 anos, primeiro na qualidade de presidente da National Endowment for the Humanities, sob Ronald Reagan, na qual preleccionou exaustivamente contra a permissividade académica. Promovido depois a ministro da Educação foi um crítico acerbo do ensino público e do multiculturalismo subjacente, defendendo um ensino centrado nos «valores» ocidentais e na religião cristã. Quiçá por isso tenha fundado a empresa K12, devotada a ajudar pais avessos à ideia de os seus filhos frequentarem imorais escolas públicas. Empresa que teve em 2004 um financiamento estatal de 4.1 milhões de dólares…

Mas foi como o Czar das drogas de Bush pai que se destacou, nomeadamente com afirmações tais como a decapitação de traficantes de droga é «moralmente plausível».

Depois da sua saída da vida política activa o devoto Bennett escreveu «O livro das virtudes», um compêndio de parábolas utilizado por milhões de pais e professores como a última palavra em questões morais. Escreveu também «A morte da indignação» onde lamenta que o público americano não tenha condenado os «pecados» de Bill Clinton mais acesamente. Aliás, Bennett considera que os Democratas são intrinsecamente menos morais que os conservadores e menos vocacionados a denunciarem os pecados que «destroem» a família. Pena é que Bennett se tenha esquecido da justiça e respeito pelos outros na sua enumeração das virtudes a seguir e, de entre os vícios que destroem as famílias, condenar o vício do jogo, que nos Estados Unidos atinge proporções e tem os efeitos do mui combatido vício das drogas. Quiçá porque a justiça não faz parte do dicionário dos teoconservadores e porque Bennett, o grande paladino dos valores morais, dotado de um sentimento de superioridade moral tão exarcerbado que lhe permite debitar dislates inconcebíveis é (ou foi, como afirma depois de os seus hábitos terem sido descobertos) ele próprio um viciado em jogo, cliente VIP de uma série de casinos em Las Vegas e Atlantic City.

O último dislate deste tão devoto católico levantou ondas de indignação e repúdio de todos os sectores nos Estados Unidos, incluindo a Casa Branca cujo porta-voz, Scott McClellan, esclareceu que o Presidente considera as palavras pronunciadas por Nennet aos microfones do seu programa nacional, «Manhã na América», ouvido por milhões de americanos, «inapropriadas».

Qual foi então o dislate debitado por este paladino da moral e bons costumes cristãos que tanto indignou a esmagadora maioria dos americanos? Simplesmente uma congeminação despoletada por uma chamada de um ouvinte que equaciona a raça como única variável na (elevada) taxa de criminalidade nos Estados Unidos:

«Poder-se-ia abortar todos os bébés negros neste país e a taxa de crime diminuiria. Essa seria uma coisa impossível, rídicula e moralmente repreensível de fazer mas a taxa de crime diminuiria».

1 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Laicidade no Japão

Em completa oposição ao que se passa nos Estados Unidos, em que o muro de separação entre o Estado e a religião se está a tornar cada vez mais fino e ameaça ruir sob os assaltos dos teocratas, do Japão chegam-nos notícias de que uma visita do primeiro-ministro Junichiro Koizumi a um templo foi considerada inconstitucional por um tribunal japonês.

Na realidade, os membros do Governo não podem participar oficialmente em qualquer actividade religiosa já que a constituição do Japão prescreve total separação da religião e estado, nomeadamente através do seu artigo 20, que diz «A liberdade religiosa é garantida a todos. Nenhuma organização religiosa receberá privilégios do Estado nem exercerá qualquer autoridade política», e do artigo 89 que enuncia «Nenhum dinheiro público ou outra propriedade pública será gasto ou apropriado para o uso, benefício ou manutenção de alguma instituição religiosa ou qualquer organização de caridade, educacional ou de benevolência que não esteja sob o controle de uma autoridade pública».

Ironicamente a actual Constituição japonesa foi elaborada com base numa proposta do general norte-americano MacArthur, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial e na sequência da rendição incondicional do Japão exigida pela Declaração de Potsdam. Declaração em que na secção 10 se podia ler «Liberdade de expressão, de religião e de pensamento, assim como respeito pelos direitos humanos fundamentais serão estabelecidos (no Japão)». Assim foram estabelecidas as bases de uma laicidade até então desconhecida no Japão pela pena dos americanos, que nesta altura enfrentam o risco muito real de verem a laicidade abolida no seu próprio país!

1 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Crónica de uma derrocada anunciada

Na passada quinta-feira John G. Roberts Jr. tomou posse como membro (vitalício) do Supremo Tribunal norte-americano. Para os mais desatentos do que se passa no outro lado do Atlântico, Roberts, um católico convicto, é igualmente um activista anti interrupção voluntária da gravidez e irá, como é exigido aos católicos, transportar os seus dogmas religiosos para o cargo que passará a ocupar.

De facto, Roberts assistiu a uma missa por alma dos fetos abortados nos Estados Unidos, evento que constituiu para o piedoso jurista «um meio absolutamente apropriado para chamar a atenção para a tragédia do aborto». A sua mulher é advogada e uma grande financiadora de um grupo activista anti-aborto. Para além de que Roberts considera que a decisão do Supremo Tribunal conhecida como Roe vs Wade, que estabeleceu o direito ao aborto nos US em 1973, foi «decidida erradamente» e baseada no «assim chamado direito à privacidade».

Mas mais preocupantes são os indícios de que uma vez no Supremo Roberts será um paladino da derrocada do que Jefferson, um dos pais fundadores dos US, chamou muro de separação religião – Estado, e que foi até ao século XXI um dos pilares desta nação. De facto, a actuação legal anterior de Roberts indicia que este não partilha dos propósitos que presidiram à fundação dos Estados Unidos, bem pelo contrário, indica que se lhes opõe visceralmente. Preocupações que já foram expressas por grupos laicos deste país, que consideram por esta razão que Roberts é absolutamente inapropriado para o cargo.

Roberts foi eleito para substituir William Rehnquist, outro teo-conservador, que faleceu no início de Setembro. Os norte-americanos laicos aguardam agora com temor a nomeação de um candidato para o lugar de Sandra O’Connor. Esperemos que este(a) nomeado(a) partilhe da opinião de um anterior membro do Supremo, John Paul Stevens, que escreveu:

«Quando se remove um tijolo do muro que foi desenhado para separar a religião do governo, aumentamos o risco de conflitos religiosos e enfraquecemos as fundações da nossa democracia»

30 de Setembro, 2005 Palmira Silva

Marketing arrojado

Um livro intitulado «Abre a porta» recomenda uma série de práticas evangelizadoras no mínimo pouco comuns, que incluem a disseminação dos Evangelhos em festas de … lingerie. Este livro, que tem o apoio de um bispo da Igreja Anglicana, o bispo de Bolton David Gillett, preconiza que nesta era em que mais pessoas sabem o seu signo do Zodíaco que os Dez Mandamentos é altura de os cristãos recorrerem a métodos pouco convencionais para «espalhar a mensagem» e travarem o declínio no número de fiéis em Inglaterra.

Assim todos os meios são válidos para apanhar os mais incautos num momento descontraído e tentar impingir-lhe as «verdades absolutas» do cristianismo. Festas de lingerie (não é explícito se poderá ser lingerie mais sedutora ou se estas festas se restringem às cuecas de gola alta da coisa do anel de prata), festas do chocolate, de tricot, de leitura de policiais, de tratamentos de beleza, enfim a panóplia completa para relaxar os incréus, ou mais propriamente as descrentes, já que o livro trata essencialmente de tácticas de evangelização de mulheres.

A minha experiência pessoal faz-me suspeitar que, contrariamente ao que o piedoso Bispo afirma, uma ida à manicure ou à esteticista não é de facto a altura mais apropriada para falar de Adão e Eva. Quiçá o seu fascínio pelo programa de que é fã incondicional, o Big Brother, lhe tenha feito perder um pouco de … perspectiva! Mas o desespero de ver o produto que vendem sem saída e a clientela a desaparecer tem levado a Igreja de Inglaterra a campanhas de marketing … inesperadas!

29 de Setembro, 2005 Palmira Silva

Deduções fiscais new age

As autoridades fiscais holandesas aceitaram como deductível os 2 210 euros que uma actriz de 39 anos pagou para tirar um curso de um ano sobre… feitiçaria! O curso envolve o ensino da correcta utilização de utensílios indispensáveis à profissão, tais como o perscrutar uma bola de cristal quiçá manobrar uma recalcitrante vassoura, para além do domínio de complicados hocus pocus feitiços e da arte de bem preparar mezinhas de origem vegetal.

O fisco holandês aceitou as despesas porque o curso serviu para promover a actividade profissional da ex-actriz, agora devotada a espalhar o conhecimento da mágica da terra em workshops e afins.

29 de Setembro, 2005 Palmira Silva

Religião e Sociedade

As religiões judaico-cristãs assentam numa concepção do ser humano naturalmente perverso, muito susceptível às tentações do mafarrico, factos que justificam a existência do Mal. Outra concepção concomitante é o mito da Queda que nos sobrecarrega com o pecado original: «o homem era inocente e bom, e o mundo era um jardim, um paraíso. Mas o homem foi tentado, sucumbiu e caiu». A tradição cristã, que influenciou indelevelmente a sociedade ocidental é assim muito veemente na condenação da natureza humana e da sua natureza intrinseca e irrevogavelmente má afirmando que não há nem salvação moral nem sociedade funcional fora do amor a Deus. Aliás essa é a arma mais frequentemente esgrimida contra os ateístas, ou seja, os crentes em geral e os católicos em especial afirmam a impossibilidade de existência de um sistema moral fora dos auspícios divinos.

Um artigo recente publicado na revista científica que dá título a este post, Journal of Religion and Society, vem liminarmente deitar por terra todos os supostos argumentos de ordem moral que, sem qualquer sustentação empírica mas apenas reflectindo o sentimento de superioridade moral que as religiões conferem, os crentes vêm falaciosamente utilizando até agora. E que apenas confirma o que Feuerbach já afirmava há cerca de 150 anos: «quando a moral se baseia na teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem ser justificadas e impostas».

No artigo são analisados dados de incontáveis sondagens internacionais, nomeadamente da International Social Survey Programme, Gallup e outras, que permitem a conclusão que «Em geral, taxas mais altas de crença e reverência num Criador correlacionam com taxas mais altas de homícidio, mortalidade juvenil e de jovens adultos, infecções com doenças sexualmente transmíssiveis, gravidez adolescente e aborto nas democracias prósperas».

Reflectindo ainda que «democracias não religiosas, a favor do evolucionismo contradizem a máxima de que uma sociedade não pode gozar de boas condições a não ser que a maioria dos seus cidadãos acreditem ardentemente num criador moral». Aliás, a desacreditação desta máxima já tinha sido indicada aqui no DA com o exemplo da República Checa, a democracia ocidental mais ateia.

A conclusão retirada no artigo «O medo generalizado que uma cidadania sem Deus deve experienciar um desastre social é assim refutado» apenas corrobora as minhas lucubrações de que o progresso ético da humanidade é impedido peals religiões.

De facto, e como já escrevi, se analisarmos criticamente a História, podemos constatar que apenas depois de Petrarca e do início dos movimentos humanistas, que colocam a ênfase no Homem e não em qualquer ser transcendente, e consequentes separação da Igreja-Ciência e da Igreja-Estado se dá um avanço ético nas sociedades ocidentais. A progressão do sub-homem de Sartre para o Homem pleno, só pode de facto realizar-se através do humanismo. Apenas acreditando no Homem, repudiando a tradição cristã da sua natureza pecadora e má, e estabelecendo uma ética centrada no Homem e não em verdades «reveladas», podemos viver harmoniosamente com os nossos semelhantes.

Ou seja, a ética cristã assenta na natureza intrinsecamente má do Homem, causada pela dentadinha na maçã da pérfida Eva, e na supressão virtuosa dessa natureza humana, por obediência a ditames divinos. A ética ateísta pretende não só devolver ao Homem a dignidade que as religiões do livro lhe sonegaram como combater o antropocentrismo autista que estas promovem. E como este estudo confirma, em total oposição ao que pretendem os crentes, a ética ateísta permite o desenvolvimento de uma sociedade melhor, mais pacífica e mais justa!