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Palmira Silva

22 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A Igreja e o aborto III- gravidez ectópica

Depois de no post anterior ter afirmado que a posição da Igreja Católica face ao aborto é um sólido e rotundo não em todas as circunstâncias convém esclarecer que esta oposição é absoluta em relação a interrupções directas da gravidez mas existe um aceso debate sobre a «moralidade» dos abortos indirectos.

O que é e em que assenta a moralidade de um «aborto indirecto»? Um artifício rebuscado e falacioso que consiste em pretender que certos procedimentos médicos que resultem indirectamente na morte do feto ou do embrião podem constituir uma escolha moral via o princípio do «efeito duplo». Este afirma que uma acção directa promovida por uma razão moral pode ter um efeito inevitável, não intencional, indirecto e negativo.

De acordo com a Enciclopédia Católica uma acção envolvendo um efeito duplo só é moralmente aceitável se obedecer aos seguintes requisitos:

– Os efeitos negativos não são desejados e são efectuados todos os esforços razoáveis para os evitar.
– O efeito directo é positivo
– O efeito negativo não é um meio de obter o efeito positivo
– O efeito positivo é pelo menos tão importante quanto o efeito negativo

Assim, no caso de uma gravidez em que se descobre que a gestante tem um cancro no útero que se não for removido antes da viabilidade do feto causará a morte da mulher a maioria dos teólogos afirma que é uma escolha «moral» remover o útero para evitar a morte da gestante, não obstante a consequência colateral da morte do feto. A Enciclopédia Católica põe como ressalva os casos em que o procedimento impede um possível baptismo do feto, um efeito tão negativo que se sobrepõe ao efeito positivo de salvar a vida da mãe!

O problema de aplicação deste efeito duplo em casos que para qualquer outra pessoa pareceriam óbvios é evidente na gravidez ectópica, bastante frequente infelizmente, sendo a causa principal de morte de mulheres durante o primeiro trimestre de gravidez. Em cada 40-100 gravidezes ocorre uma gravidez ectópica, uma gravidez extra-uterina, frequentemente uma gravidez em que o embrião se fixa nas trompas de Falópio. Este embrião não tem qualquer hipótese de sobrevivência e a mulher corre risco certo de morte se não abortar espontaneamente antes de o embrião crescer o suficiente para provocar a ruptura da trompa.

Uma vez que a Igreja Católica não tem instruções oficiais sobre que tratamentos são lícitos ou ilícitos neste caso existem duas interpretações possíveis. A mais «progressista» exige que a gestante «respeite a vida do filho» e como tal os tratamentos «directos», que envolvem a administração de um mero comprimido ou uma pequena incisão no umbigo e subsequente remoção do feto da trompa, são proibidas. Para ser possível aplicar o «duplo efeito» numa gravidez ectópica um médico católico «progressista» deve proceder à ablação da trompa onde está implantado o embrião, que envolve uma cirurgia demorada e complexa. Ou seja, é indispensável sujeitar a gestante a uma mutilação e cirurgia desnecessárias apenas para satisfazer as convolutas (i)moralidades católicas.

Imoralidades claramente falaciosas na opinião de bioéticos reconhecidos, como Peter Singer da Universidade de Princeton. Que afirma «A distinção entre efeito directo intencional e efeito indirecto é um artíficio. Não podemos evitar responsabilidade simplesmente dirigindo a nossa intenção para um efeito em vez do outro. Se prevemos ambos os efeitos devemos assumir responsabilidade por todos os efeitos prevísiveis das nossas acções».

De qualquer forma a moralidade do duplo efeito é a interpretação «progressista». A interpretação tradicional da Enciclopédia Católica, afirma categoricamente que é ilícita qualquer intervenção numa gravidez ectópica, em que o embrião é «um agressor injusto» mas o efeito negativo (matar o embrião) é o meio de obter o positivo (salvar a mãe).

Todas estas questões (e mais algumas não mencionadas) conjugadas com a explosão do número de instituições de saúde religiosas nos Estados Unidos (generosamente financiadas com dinheiro público pelas administrações Bush), em que as católicas que correspondem a 18% de todos os hospitais e 20% das camas em solo norte-americano, preocupam algumas associações norte-americanas. Instituições católicas que se regem por uma directiva emanada da conferência de Bispos católicos americanos que tem uma secção muito detalhada (e muito nociva) sobre saúde reprodutiva da mulher…

22 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A Igreja e o aborto II

A posição da Igreja Católica sobre o aborto, em qualquer momento da gravidez sejam quais forem as razões que o motivem, violação, incesto ou para salvar a vida da mãe, é sempre um sólido não. Em países europeus, em que tal posição não seria aceite pela opinião pública, não a explicitam em todos os detalhes, mas em países do terceiro mundo podemos apreciar sem disfarces toda a extensão desta aberração.

Um exemplo de quão imoral é a posição da Igreja em relação ao aborto pode ser ilustrado com um caso recente. Em finais de 2002 uma criança de 8 (oito!) anos foi violada na Costa Rica e ficou grávida (e infectada com doenças sexualmente transmíssiveis) em consequência de tão abjecto acto.

Os pais, com o auxílio de organizações não governamentais, conseguiram levar a criança de volta para o seu país de origem, a Nicarágua, e interromper a gravidez da criança numa clínica privada, depois de um painel de três médicos ter declarado que a vida da criança corria grave perigo quer levasse a gravidez a termo quer a terminasse. De facto, na Nicarágua, um país católico em que a Igreja Católica detém uma influência (nefasta) considerável, ainda são permitidas interrupções de gravidez em que a vida da mãe ou do feto corram «risco imediato». Claro que a «santa» Igreja local, que segue estritamente os ditames do Vaticano, pretende que a lei criminalize até esta possibilidade de aborto que, nas palavras do Bispo Abelardo Mata «é um crime abominável mesmo quando disfarçado por atenuantes pseudo-humanitárias como aborto terapêutico»

A posição da Igreja Católica foi a prevísivel de tão piedoso conjunto de celibatários. Pela voz do Cardeal Miguel Obando y Bravo, excomungou todos os envolvidos: os pais da criança, os médicos, os membros das ONGs, incluindo a Women’s Network Against Violence. O mui influente Cardeal pressionou ainda o governo da Nicarágua para proceder criminalmente contra os envolvidos, depois de ter enviado aos dirigentes da Nicarágua uma carta aberta em que afirma que o «crime» cometido pelos pais da criança é equivalente aos ataques por bombistas suicidas!

A excomunhão foi posteriormente levantada devido às ondas de indignação contra a Igreja que tal acto levantou, especialmente em Espanha, que incluiram uma petição assinada por 26 000 católicos que, face à actuação da Igreja, pediam para também serem excomungados.

22 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A Igreja e o aborto I

tinha referido que para Igreja de Roma a mulher não detém qualquer tipo de direitos sobre o seu útero e quando digo qualquer tipo de direitos refiro-me aos ditames da Congregação para a Doutrina da Fé, liderada à altura pelo actual Papa, que explica muito claramente que nem em caso de uma futura gravidez acarretar morte certa para a mulher é permissível a um médico católico proceder à ablação do útero (laqueação das trompas é sempre proibido). Indicando que «A opinião contrária, que considera as supracitadas práticas referidas nos números 2 e 3 como esterilização indirecta, lícita em certas condições, não pode portanto considerar-se válida e não pode ser seguida na praxe dos hospitais católicos.».

O que a maioria dos nossos leitores certamente não conhecerá são as disposições aberrantes da Igreja de Roma em relação a situações que qualquer pessoa normal consideraria obviamente não problemáticas. Refiro-me à gravidez ectópica, ou gravidez fora do útero, normalmente nas trompas de Falópio, ou a casos em que é impossível sobreviverem mãe e feto.

A questão não é académica porque os hospitais católicos são obrigados a seguir as normas ditadas de Roma e estas normas, como veremos, são, não apenas nos exemplos que se seguem, completamente inadmissíveis.

Na sua encíclica Humanae Vitae, o Papa Paulo VI escreveu: «Não é lícito, mesmo pelas razões mais graves, fazer o mal para que se siga o bem, isto é, fazer ao objecto de um acto positivo da vontade algo que é intrinsecamente imoral, e como tal indigno da pessoa humana, mesmo quando a intenção é a salvaguarda ou promoção do bem estar individual, familiar ou social (…) o aborto, mesmo por razões terapêuticas, deve ser absolutamente proibido». Ou seja, quando um parto corre mal, o feto não tem hipóteses de sobrevivência e os médicos são confrontados com as opções:

  • Matar o feto e salvar a vida da mulher;

  • deixar a natureza seguir o seu curso e assistirem à morte de ambos, parturiente e feto,

a única decisão moral, a ser seguida em hospitais católicos, é a última.

Como é indicado na Enciclopédia Católica nem mesmo quando o feto é «um agressor injusto» (gravidez ectópica, a que voltarei) e quando «pareça desejável salvar a vida da mãe» é legítimo matar o feto. Indicando as decisões do Tribunal do Santo Ofício, a autoridade em semelhantes assuntos à data, de 28 de Maio de 1884 e de 18 Agosto de 1889, em relação à pergunta do Cardinal Caverot de Lyons se era legítimo matar o feto para salvar a mãe. A resposta foi não! Essa parece ser também a posição da sucessora do Santo Ofício, a Congregação para a Doutrina da Fé, que confirma que tal prática não é admissível nem em casos de «problemas sérios de saúde, por vezes de vida ou de morte, para a mãe».

Aliás esta tem sido consistentemente a posição da Igreja do Roma sobre a questão «É lícito matar o feto para salvar a vida da mãe?» desde que o avanço médico a proporcionou, expressa não só nos supramencionados documentos mas também na carta encíclica Casti Conubii (1930) do pio Pio XI, reiterada em 1951 pelo papa Pio XII, o tal que manteve um silêncio ensurdecedor em relação ao Holocausto mas foi muito vocal na sua condenação de tal possiblidade1.

Posição que se mantém até aos dias de hoje e, se possível, é ainda mais explícita na encíclica Veritatis Splendor (1993) onde o Papa João Paulo II afirma que o aborto é intrinsecamente mal e que não há excepções que o permitam. Para vincar bem o facto parece reclamar da sua infalibilidade na encíclica de 1995 Evangelium Vitae, em que se pronuncia sobre qualquer forma de aborto qualquer que seja a razão que o motive:

«Assim, pela autoridade que Cristo conferiu em Pedro e seus sucessores e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica confirmo que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral (…) Nada e ninguém pode de alguma forma permitir a morte de um ser humano inocente, seja um feto ou um embrião».

Aliás por isso João Paulo II canonizou Gianna Beretta Molla com o título Mãe de Família, uma mãe que deve ser o paradigma das mulheres cristãs, que confrontada com uma gravidez que se levada a termo resultaria na sua morte se «sacrificou» cristãmente!

A parte curiosa tem a ver com casos em que apenas um, a mãe ou o feto, pode ser salvo. Neste casos, como nos informa Uta Ranke-Heinemann, a Igreja decretou que a criança tem precedência. A razão não é tanto salvar uma vida mas, seguindo a doutrina agostiniana da condenação eterna de bébés não baptizados, permitir o baptismo do feto. De facto, de acordo com o teólogo (século XX) cardeal Bernhard Haring, a mãe deve submeter-se a qualquer prática, incluindo as de consequências mortais, que permita o baptismo do feto. Haring responde assim à pergunta retórica de Pio XI na encíclica Casti Connubii «O que poderia ser razão suficiente para justificar a morte directa de uma pessoa humana?». A resposta do piedoso cardeal é o baptismo de um recém-nascido, como indica no seu livro «A Lei de Cristo», em que assevera que uma mãe deve arriscar a sua vida para permitir o baptismo do feto.

[1]«Eunuchs for the Kingdom of Heaven: Women, Sexuality, and the Catholic Church» da teóloga católica alemã Uta Ranke-Heinemann.

21 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Europeu do Ano

A votação para Europeu do Ano pode ser feita através da Voz da Europa até ao próximo dia 11 de Novembro.

A votação inclui para além da escolha do Europeu do Ano a escolha de candidatos em muitas outras categorias e cada voto só é válido quando todas forem preenchidas. Sendo o tema das patentes de software um que me é caro segui boa parte das recomendações disponíveis no site Não às patentes de software!

Como a Oracle acredito «que a existência de leis de direito de autor e de protecção do segredo comercial, em oposição à lei de patentes, são mais adequadas à protecção do desenvolvimento de programas informáticos» assim como subscrevo integralmente a sua política de (não) publicação de patentes de software: «A lei de patentes dá aos inventores o direito exclusivo à nova tecnologia em troca da publicação da tecnologia. Isto não é o mais adequado para indústrias como as de desenvolvimento de software onde as inovações ocorrem de forma acelerada, podem ser realizadas sem grande investimento de capital, e tendem a ser combinações criativas de técnicas já conhecidas.».

Assim votei sem hesitações em Florian Müller da NoSoftwarePatents.com para Campaigner of the Year mas quando chegou à parte da escolha do Europeu do Ano hesitei uns segundos entre José Luis Rodriguez Zapatero (que já tinha escolhido para Estadista do Ano) e Florian Müller. Não obstante ser acerrimamente contra as patentes de software, o meu voto foi para Zapatero!

A coragem de Zapatero no confronto com a (até aí) toda poderosa delegação local da Igreja de Roma em defesa dos direitos humanos e da laicidade do estado merece, na minha opinião, a sua designação como Europeu do Ano!

20 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Leitura recomendada

Está disponível em português na Crítica, Revista de Filosofia e Ensino, a primeira parte de um artigo simplesmente a não perder que põe a descoberto a verdadeira agenda dos neo-criacionistas disfarçados de IDiotas. Escrito por um dos mais prestigiados evolucionistas da actualidade, o cientista da Universidade de Chicago, Jerry Coyne, «A fé que não tem coragem de se mostrar», é a primeira parte de um artigo que recomendo vivamente aos nossos leitores! Artigo que se inicia explicando a fundamentação religiosa da guerra da evolução em foco nos Estados Unidos:

«Exactamente oitenta anos após o processo de Dayton, Tennessee, que ficou conhecido como o John Scopes ‘monkey trial’, a história está prestes a repetir-se. Numa sala de audiências em Harrisburg, Pennsylvania, desde fins de Setembro cientistas e criacionistas travam uma luta para saber se e como os estudantes do liceu, em Dover, irão aprender a respeito da evolução biológica. Poder-se-ia presumir que estas batalhas tinham acabado mas isso seria subestimar o furor (e a ingenuidade) dos criacionistas escarnecidos.

O julgamento Scopes dos dias de hoje – Kitzmiller e outros contra Distrito Escolar da Zona de Dover e outros – começou de forma inócua. Na primavera de 2004, a comissão de revisão do manual escolar do distrito recomendou que um novo manual escolar comercial substituísse o obsoleto manual de biologia.

Na reunião do conselho de instrução, em Junho, o presidente da comissão curricular, William Buckingham, queixou-se de que o livro proposto para revisão estava ‘estreitamente ligado ao Darwinismo’. Depois de desafiar a audiência para que recuasse nas suas origens até ao macaco sugeriu que um manual mais apropriado deveria incluir a teoria bíblica da criação. Quando foi questionado sobre se isso poderia ofender aqueles que professassem outras crenças, Buckingham retorquiu: ‘Este país não foi fundado sobre as crenças muçulmanas ou sobre a evolução. Este país foi fundado a partir da Cristandade e os nossos estudantes devem ser ensinados como tal’. Uma semana mais tarde, defendendo o seu ponto de vista, Buckingham alegadamente argumentou: ‘Há dois mil anos alguém morreu numa cruz. Será que ninguém pode defendê-lo?’. E acrescentou: ‘Em lado algum a Constituição exige a separação entre a igreja e o estado’»

Agradeço efusivamente ao Renas e Veados a indicação deste artigo fabuloso!

20 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Tom Cruise na mira de Andrew Morton

De acordo com fontes bem informadas (e munidas de uma câmara com uma excelente lente) Andrew Morton, o ex-jornalista do tablóide britânico Daily Mail que virou biógrafo (por vezes não autorizado) de celebridades sortidas prepara uma biografia de Tom Cruise.

A crer em afirmações recentes de Morton, que foi ouvido a arengar contra a Igreja da Cientologia, que classificou de totalitária (eu recorreria a outro tipo de epítetos) e a comparar Tom Cruise com Charles Lindbergh, o famoso aviador que deu nome ao aeroporto de San Diego mas que foi simultaneamente um simpatizante do fascismo, não são necessárias grandes capacidades dedutivas para prever que este não vai ser um livro muito lisonjeiro quer para Cruise quer para a Cientologia. Acho que eventualmente este será o primeiro livro de Morton que considerarei ler!

De facto Morton foi avistado num dos cafés de culto em Venice (Califórnia) com dois críticos reconhecidos da Cientologia, Paul Barresi e o advogado Graham Berry. Paul Barresi foi sujeito às habituais tácticas de intimidação da Cientologia após ter afirmado ter mantido uma relação de dois anos com outra das celebridades cientologistas, John Travolta, e assediado até ter retractado as afirmações. Graham Berry foi advogado de defesa de um dos psiquiatras citado no artigo demolidor sobre Cientologia publicado pela Time e a partir daí foi alvo de vinganças mesquinhas dos fanáticos crentes em Xenu, que desceram ao ponto de espalharem panfletos na zona de residência de Berry acusando-o de ser pedófilo.

Parece pouco provável que Morton, que resistiu estoicamente até a um assalto à sua casa na altura em que preparava a biografia de Diana, seja demovido das suas intenções pelo jogo duro e sujo da Cientologia. E essas intenções parecem ser a exposição das imbecilidades da Cientologia e das tácticas por esta usada para intimidar os que se atravessam no seu caminho dourado… para uma conta bancária com muitos zeros.

20 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Manobras de marketing

Numa Grã-Bretanha em que o número de crentes na exegese da Igreja de Roma decresce com uma velocidade vertiginosa, em que os seminários estão às moscas e procuram candidatos em países mais pobres devotos, urgem medidas de marketing que captem clientes para encher os depauperados cofres das dioceses.

Nada melhor para captar e fidelizar os clientes que a oferta de um produto local e assim o Vaticano prepara-se para produzir o primeiro santinho inglês pós-reforma, o Cardeal Newman (1801-1890), o padre que chocou a sociedade vitoriana convertendo-se ao catolicismo e que previu o advento de uma «segunda Primavera» do catolicismo em Inglaterra.

Newman é candidato a santinho já há uns anos mas, não obstante a prodigalidade com que o finado Papa distribuiu beatificações e canonizações pelos quatro cantos do globo, a míngua de milagres impediu a concretização do primeiro passo para a santidade. Mas a situação desesperada da delegação britânica da Igreja de Roma exige medidas desesperadas de forma que, milagrosamente também, surgiu recentemente o testemunho de um clérigo da diocese de Boston que asseverou ter recuperado de uma maleita das costas depois de interceder junto ao piedoso e presciente Newman.

Só não percebi porque razão Paul Chavasse, o padre responsável pela causa de Newman, diz que o padre americano não pode ser nomeado. Um padre de Boston que não quer ou não pode ser nomeado, atendendo à dimensão do escândalo da pedofilia que abalou e quase levou à bancarrota a diocese local, parece-me um pouco estranho!

19 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Bactérias sociais

No final dos anos 80 alguns dados experimentais intrigavam os cientistas da Universidade de Tel Aviv Eshel Ben-Jacob e James Shapiro da Universidade de Chicago. As bactérias, dos organismos vivos mais «simples, demonstravam comportamentos que implicavam a existência de uma estrutura social e inclusive apresentavam comportamentos altruísticos de «indíviduo» em prol da comunidade bacteriana.

Mais interessantes são ainda os comportamentos bacterianos inesperados que Ben-Jacob trabalhando com bacillus subtilis (e também Paenibacillus dendritiformis e Paenibacillus vortex) e Shapiro com E. coli e salmonella encontraram. Comportamentos que os levaram a sugerir que o genoma colectivo dos indivíduos de uma colónia funciona como um computador ou, como afirma Ben-Jacob, «o genoma faz cálculos e altera-se de acordo com os resultados desses cálculos». Assim sendo o genoma bacteriano contraria o teorema de Gödel que implica que um computador não pode desenhar outro computador com um poder computacional mais sofisticado que o original. Isto é, em casos de alterações drásticas do ambiente em que a mutação aleatória de genomas individuais não assegure sobrevivência da colónia esta funciona como um grupo. Grupo cujo CPU bacteriano dá conta do recado, resolvendo catástrofes ambientais insuperáveis à capacidade «computacional» de uma única bactéria.

Num artigo escrito especialmente para o «Mundo da Ciência» podemos ver uma súmula e uma discussão do trabalho dos referidos cientistas e de outros que trabalharam sobre este tema. Que concordam que em determinados casos as bactérias sacrificam a sua individualidade ao grupo social e toda uma colónia se comporta como um macro organismo.

Estes grupos sociais são redes neuronais que funcionam como um massivo supercomputador com processamento paralelo mas um computador «inteligente», que pode aprender. Redes neuronais que requerem que haja troca de informação entre indíviduos, nomeadamente informação sobre o meio ambiente, e a resposta a estímulos exteriores é uma decisão que envolve todo o grupo. Vou tentar voltar a este tema difícil mas fascinante noutra ocasião, mas o que podemos inferir do trabalho destes (e outros) cientistas é que um microscópico bacilo apresenta comportamentos sociais inesperados incluindo acções morais, tais como o altruísmo, que algumas religiões consideram impossíveis sem a crença num qualquer Deus.

Estranhamente, tanto quanto eu saiba não se detectou actividade religiosa em qualquer destas colónias bacterianas e não se conhece qualquer Deus que tenha feito a E. Coli ou a salmonella à sua imagem.

16 de Outubro, 2005 Palmira Silva

IVG II: as raízes

Para conseguirmos entender a concepção do dogma cristão em relação ao aborto é necessário abordar as raízes do cristianismo que são simultaneamente as raízes da demonização do sexo e da demonização e menorização da mulher. Embora frequente e inconvincentemente negada, a misoginia explícita na Bíblia foi a fonte onde os chamados pais fundadores do cristianismo beberam a misoginia que ainda hoje caracteriza as religiões cristãs em geral e a católica em particular. Misoginia expressa, por exemplo, no mito da «imaculada concepção». A »virgem» Maria foi elevada a paradigma da mulher cristã, uma mulher que nasceu «liberta do pecado original» e concebeu um filho «por graça do Espírito Santo», isto é sem o abominado sexo, façanhas que mais nenhuma mulher na História conseguiu igualar. Ou seja, o culto mariano apenas reforça quão indigna é a mulher que não consegue cumprir a sua função reprodutora sem o pecaminosos desejo sexual!

Quando o cristinanismo se tornou a religião dominante no Império Romano pela mão de Constantino, a posição e papel social da mulher, até aí muito «equalitários», quiçá também por infuência etrusca, conheceram uma crescente deterioração, tendência que só começou a ser invertida no século XIX quando o poder das Igrejas, especialmente a de Roma, começou a declinar.

Como indicado pela teóloga católica alemã Uta Ranke-Heinemann1 o ódio às mulheres é a caracteristíca comum de todos os principais teólogos cristãos dos primeiros séculos do cristianismo. Especificando com os mais reconhecidos teólogos (e santinhos) desta época, a patrística. Clemente de Alexandria (~150-215), o pai grego da Igreja, devotava um tal desprezo pelas mulheres que afirmou no seu livro Paedagogus que «a consciência da sua própria natureza deve evocar sentimentos de vergonha» às mulheres. Tertuliano (~160-225), o pai africano, chamava às mulheres «a porta do Diabo», Orígenes (~185-254), o patriarca de Alexandria, tinha tal ódio às mulheres e ao sexo que se castrou de forma a atingir «perfeição cristã».

Igualmente condenatórios da mulher e do sexo (uma consequência da Queda promovida pela pérfida Eva e cuja culpa é carregada para sempre por todas as mulheres) encontramos os grandes defensores da virgindade, a grande virtude cristã, Gregório de Nazianzum (329-389), bispo de Constantinopla, outro «santinho» Gregório (~330-395), bispo de Nyassa, Ambrósio (~339-397), bispo de Milão, Jerónimo (~342-420)(que traduziu a Bíblia para latim) e o patriarca de Constantinopla, João Crisóstomo (340-407).

Mas o expoente máximo da misoginia e ódio ao sexo cristãos é Agostinho de Hipona. Agostinho achava a mulher tão claramente inferior ao homem que achou necessário fazer a pergunta «Por que razão a mulher foi sequer criada?». A fobia da mulher e do sexo que se encontra em Agostinho, apenas entendida como uma aberração particularmente grotesca, infelizmente consolidou-se de pedra e cal no cristianismo pela pena fácil e erudita de Agostinho.

Hoje em dia a misoginia da Igreja manifesta-se na oposição a qualquer forma de controle da fertilidade feminina, nomeadamente à IVG e contracepção, como claramente indicado no documento de repúdio à Plataforma de Acção produzida na IV Conferência Mundial sobre a Mulher. Que expressa a condenação católica a qualquer forma de reconhecimento legal do aborto, assim como da contracepção ou do uso de preservativos, «tanto como medida de planeamento familiar, como em programas de prevenção da SIDA». Declara também a sua não aceitação de todo o capítulo IV, secção C, sobre saúde, «por dar atenção desproporcional à saúde sexual e reprodutiva». Manifesta ainda reservas quanto ao direito das mulheres a controlarem a sua sexualidade, «porque poderia entender-se como aprovação a relações sexuais fora do matrimónio heterossexual.»

A misoginia da Igreja manifesta-se também inequivocamente nas posições assumidas pelo finado João Paulo II, que como já tive oportunidade de escrever, tentou arduamente remeter a mulher para o papel tradicional consagrado pela Igreja de Roma e anular as conquistas duramente conseguidas de emancipação da mulher (que o Papa considerava perniciosa). O ideal feminino do finado Papa ficou bem estabelecido quando «Tomando a estas duas mulheres como modelos de perfeição cristã» beatificou Isabella Canori Mora, uma mulher que suportou estoicamente a violência de um marido abusivo, santificando assim a violência conjugal, e Gianna Beretta Molla (posteriormente canonizada com o título Mãe de Família), que preferiu morrer a interromper uma gravidez de alto risco. Isto é, o ideal de mulher para o Vaticano é assim uma mulher completamente subjugada ao marido e aos filhos, sem valor intrínseco fora de ambos e que deve renunciar à própria vida em favor de um qualquer óvulo fertilizado.

Assim, a condenação histriónica da IVG (e da contracepção) pela Igreja de Roma não tem nada a ver com uma pretensa «defesa intransigente da vida», que, como já tive oportunidade de abordar, não o é de facto, já que para a «santa» Igreja «a vida na sua condição terrena não é um valor absoluto». A oposição ao aborto baseia-se nas raízes do cristianismo que justificam igualmente a oposição à contracepção: misoginia e ódio ao sexo, que distrai e desvia os cristãos das «virtudes» cristãs. Aliás, a Igreja teve várias posições em relação ao aborto, que só passou a ser pecado em 1869, em pleno século XIX, pela pena do Papa Pio IX.

Curiosamente, em grande parte do mundo industrializado o aborto não era considerado um crime até que uma série de leis anti-aborto foram promulgadas na mesma época das declarações do pio Pio. Por essa altura, os proponentes da proibição do aborto realçavam os perigos clínicos do aborto. Também curiosamente a sacralidade do embrião e feto só é introduzida quando o argumento clínico deixou de ser válido…

[1]«Eunuchs for the Kingdom of Heaven: Women, Sexuality, and the Catholic Church» da teóloga católica alemã Uta Ranke-Heinemann, colega de Ratzinger nos tempos de estudantes de doutoramento (em teologia católica, claro) em Munique. Uta foi a primeira mulher a quem foi permitido um doutoramento em teologia católica.

16 de Outubro, 2005 Palmira Silva

IVG I: dogmas secularizados

Agora que as eleições autárquicas terminaram e os tabus presidenciais estão prestes a levantarem-se, podemos certamente esperar um recrudescer das hostilidades, quer na agenda política quer na mediática, em relação ao tema pseudo-polémico/fracturante da interrupção voluntária da gravidez, vulgo IVG ou aborto.

É um tema que eu considero pseudo-polémico porque o que na realidade está em causa é decidirmos se devemos permitir que a lei nacional, a seguir por todos independentemente da sua crença ou falta de crença religiosa, se sujeite aos dogmas da religião maioritária no país e consagrar como criminoso e punível com pena de prisão aquilo que é «pecaminoso» aos olhos da Igreja. Não há qualquer razão objectiva, biológica ou moral, para criminalizar a IVG. Há apenas um dogma católico explícito nos muitos vociferadores em nome de Deus com que somos frequentemente agraciados nos meios de comunicação e implícito naqueles que rejeitam motivação religiosa para a sua objecção ao livre arbítrio sobre o tema.

Na realidade, todos estamos sujeitos a «programação» religiosa via dogmas secularizados. O homem é o mamífero superior cujas crias nascem mais impreparadas para o mundo, numa fase em que o seu cérebro mal começou a desenvolver-se. Na realidade todos os nascimentos humanos, como qualquer estudante de biologia sabe, poderiam considerar-se abortos de fetos viáveis. Esse é quiçá o acaso da selecção natural que resultou no maior trunfo da Humanidade, aquele que distingue o ser do Homem do ser dos demais animais, já que a selecção natural privilegiou os exemplares capazes de dar à luz fetos viáveis sensivelmente a meio do tempo de gestação «normal», fetos com poucas conexões neuronais estabelecidas mas a cujo nascimento uma maior percentagem de gestantes sobreviviam. E é um trunfo que a evolução proporcionou porque o desenvolvimento cerebral extra-uterino é muito mais rico em estímulos o que permite uma «programação» francamente mais diversa e flexível que a possível uterinamente. E boa parte dessa programação é efectuada durante os primeiros anos de vida, como os tristemente célebres casos de crianças selvagens indicam claramente. Um dos casos mais bem documentados, o da menina-lobo Kamala encontrada com 5 anos, mostra quão importantes são os estímulos externos no desenvolvimento de um ser humano e quão difícil é a reprogramação humana.

Assim, se considerarmos a História nacional em que até há pouco mais de 30 anos o condicionamento social era estrita e institucionalmente católico não é de espantar que muitos dogmas religiosos se tenham secularizado. Nomeadamente o dogma em relação ao aborto. Mas já é tempo de a sociedade portuguesa reconhecer pelo nome um dogma religioso e progredir para um estágio em que a laicidade preconizada na Constituição e a liberdade religiosa sejam um facto e não uma ficção.

Exactamente o que quero dizer com dogma secularizado é melhor ilustrado com um exemplo de outra sociedade com a qual não partilhamos todos os dogmas. Quando vivi nos Estados Unidos um dos meus amigos era um israelita ateu que se encontrava em San Diego a fazer doutoramento em música na UCSD. Não obstante ser ateu, o Avi recusava-se a comer carne de porco ou a ingerir refeições na qual constassem carne e leite como ingredientes simultãneos. Claro que no nosso círculo de amigos tal facto era alvo de comentários de espanto aos quais o Avi retorquia que não havia nada de religioso na sua recusa em comer alguns pitéus, simplesmente era-lhe repugnante sequer pensar em ingerir semelhantes barbaridades gastronómicas. Como co-habitante de uma casa com dois biólogos sabia que não havia algo de «impuro» no denegrido suíno nem alguma justificação lógica ou biológica para as suas idiossincrasias alimentares. Mas simplesmente fora programado na sua (mui tenra) infância em Israel a abominar as ditas «delicatessen», programação que o seu ateísmo ainda não fora capaz de ultrapassar. O Avi estava (e suponho que continua) refém de um dogma secularizado!

De forma a podermos reconhecer como dogma religioso a motivação dos chamados pró-vida (que não o são de facto) é didáctico analisar não só as origens como as inconsistências do dogma. Porque normalmente fomos expostos a este dogma específico numa fase de programação mais tardia e como tal é racionalmente ultrapassável se reconhecido como tal!