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Palmira Silva

7 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Confissões em catedral de consumo

Certamente preocupados com o estado das «almas» dos seus crentes, preocupação «legítima» nesta época em que os deveres religiosos do dia do sol, que deveria ser dedicado ao suposto criador que descansou ao sábado, são descurados face à azáfama consumista, a igreja de Katowice, no sul da Polónia, abriu uma mini-capela num centro comercial.

A capela, devotada primariamente à confissão dos polacos que, pouco catolicamente, dedicam o domingo a actividades mundanas, foi abençoada por um dos teólogos polacos mais proeminentes, Arkadiusz Wuwer, um padre que lecciona na Universidade da Silésia em Katowice.

Devo confessar que não consigo imaginar local mais apropriado, mais realista, para um local de culto da Igreja Católica.

7 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Em nome de Salazar, esse grande libertador

É o título de um artigo absolutamente imprescíndivel de Fernanda Câncio no Glória Fácil. Artigo que versa, numa prosa fabulosa, sobre a guerra dos crucifixos em que os fundamentalistas católicos transformaram um não acontecimento em qualquer outro ponto do mundo democrático: no seguimento de queixas sobre o incumprimento da lei máxima da República a tutela ordenou que a lei se cumprisse. Um pequeno excerto para abrir o apetite:

«de bagão félix a sarsfield cabral, de joão miguel tavares a barata feyo, para culminar no papa espada e nos habituais rigorismos informativos do espesso, les beaux esprits encontram-se na tese de que os crucifixos ‘são naturais’, estão ‘naturalmente’ nas salas de aula, em nome da ‘tradição’ (pois claro, a tradição, esse garante de civilidade e progresso, esse sinónimo de bondade absoluta e inquestionável e, já agora, de ‘cultura’) e querer de lá retirá-los é como extirpar uma parte da alma ao país sem sequer um pó de anestesia, atentando contra a ‘liberdade religiosa’ da ‘maioria cristã’ e desrespeitando ‘as mais fundas convicções’ do povo, contra o ‘bom senso’ e a ‘boa convivência’ — e a cultura, que, claro está, ‘é de todos nós’, mesmo dos muçulmanos e dos judeus e dos ateus.»

7 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Apelo à laicidade na Rússia

A imposiçao abusiva em locais públicos dos símbolos religiosos de uma determinada fé a todos os cidadãos de uma nação supostamente laica não é exclusivo português. Da Rússia chega-nos a notícia que os principais clérigos islâmicos protestam o uso e abuso dos símbolos religiosos da Igreja Ortodoxa russa em locais públicos e apelam à reposição da laicidade violada pelas autoridades russas.

Entre os pedidos dos clérigos islâmicos figura a retirada dos símbolos cristãos da heráldica de estado mas existem inúmeras violações da laicidade pelas quais os muçulmanos russos afirmam sentir os seus sentimentos violados.

«Não se trata apenas do brazão russo. Nós podemos dizer que os ícones estão praticamente afixados em todas as paredes de instalações estatais» afirmou Nafigulla Ashirov, presidente do Conselho Espiritual dos muçulmanos da Rússia asiática, que acusou ainda os Ministérios da Defesa e do Interior e o Serviço Federal de Segurança de se terem apropriado de vários santos «supostamente os patronos dos guerreiros». Lamentando-se «As estruturas de poder, as autoridades e Igreja Ortodoxa russa do patriarcado de Moscovo estão a erigir enormes crucifixos em postos fronteiriços e na aproximação de cidades. Estão a construir capelas ortodoxas nos postos de comando das forças armadas».

Preocupações e lamentos partilhados por outros líderes da comunidade muçulmana russa, nomeadamente Damir Mukhetdinov, presidente do Conselho Espiritual dos muçulmanos da região de Nizhny Novgorod e Ali Visam Bardvil, o seu equivalente para os muçulmanos da Karelia.

O primeiro recorda que «Nós, os muçulmanos da região de Nizhny Novgorod, fomos inteiramente a favor da introdução do feriado da unidade dos povos. Nunca imaginámos, no entanto, que o som dos sinos da Igreja Ortodoxa e o ícone da Virgem de Kazan se tornariam os símbolos deste feriado na Rússia». O mufti está convicto de que «tudo isto viola a natureza laica do estado e não contribui para a unidade dos povos na Rússia».

Esperemos que os cristãos ortodoxos russos mostrem mais bom senso que os seus homólogos católicos em Portugal e não tentem fazer uma guerra de crucifixos (e ícones) daquilo que deveria ser evidente e que os responsáveis muçulmanos na Rússia reconhecem: a laicidade é indispensável e é a melhor prevenção de possíveis conflitos!

6 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo: Inquisição

Na minha análise das razões que explicam o obscurantismo imposto pela Igreja católica durante a Idade Média figura proeminentemente a Inquisição e a perseguição de hereges, crentes em outras fés e «bruxas». A definição de herege dada pelo teólogo proscrito por Bento XVI, Leonardo Boff, é a minha favorita até porque ilustra perfeitamente as causas biológicas, a serem explanadas em breve, dessa longa noite obscurantista.

Segundo Leonardo Boff o herege é:
«(…) aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência colectiva. (…) Por isso está mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução do passado.».

Para o catolicismo medieval eram consideradas heresias todas as formas de pensamento que não obedecessem estritamente às emanações da hierarquia da Igreja. Ou seja, eram hereges todos os que ousassem sair do controle rígido efectivado pela Igreja, todos os que não aceitassem as orientações, práticas, concepções e preconceitos da Igreja como sendo a verdade «absoluta». Assim, eram hereges todas as pessoas que acreditavam, aceitavam ou mesmo divulgavam quaisquer ideias que se desviassem minimamente da doutrina concebida pela Igreja romana, o que incluía, obviamente, quem ousasse usar perversa e culpadamente a razão em incursões proibidas pela «má» ciência de Agostinho de Hipona.

A Inquisição foi a forma a que a Igreja recorreu para perseguir tudo e todos que não se conformassem aos moldes que esta impunha, nomeadamente que se permitiam ao uso «blasfemo» da razão.

Problema que começou a surgir nos finais do século XII, quando a dita Reconquista da Península Ibérica começou a ter sucesso, (dita Reconquista porque o objectivo foi a recuperação de terras sob domínio árabe às quais os cristãos acreditavam ter direito) graças à fragmentação do califado de Córdoba. Reconquista que pôs os incultos cristãos em contacto com uma civilização cultural e cientificamente muito mais avançada e cujos focos de infecção principal se situaram na Córdoba cosmopolita, elegante e educada, com uma comunidade judaica muito importante de que se destaca um dos seus mais prestigiados filósofos, Maimonides (1135-1204), e na académica Toledo, que expuseram o mundo cristão não só à filosofia aristotélica sem censuras (o que determinou o período seguinte da escolástica) mas também à matemática dita árabe.

E especialmente a matemática porque o crescimento económico de cidades como Florença, Veneza e Pisa, implicava a existência de conhecimento impossível de satisfazer pelos mistícos scholasticus. Conhecimento que possibilitasse cálculos prosaicos como os envolvidos em empréstimos e juros, preços de revenda, investimentos, custos dos seguros das viagens, etc. As necessidades económicas ditaram a criação de uma nova instituição educativa: a Botteghe ou Scuole d’abaco (Escola de Ábaco), cujo primeiro Maestri d’abaco (mestre de ábaco, ou cálculo) foi, provavelmente, o famoso Fibonacci da série que tem o seu nome ou Leonardo de Pisa (ca. 1175-1250). Estas escolas, dirigidas a um público diverso desde filhos dos mercadores, aspirantes a funcionários públicos a aspirantes a pintor (Piero della Francesca frequentou uma escola de Ábaco), escultor ou arquitecto, ensinavam essencialmente a matemática indo-árabe. Fibonacci estudou com um mestre árabe e, tal como Fibonacci, cada vez mais europeus se atreviam a algo proibido até então: usar os neurónios para algo mais que lucubrações sortidas sobre Deus e os Evangelhos.

Assim a Igreja precisava de um «cão de fila», a Inquisição, que exercesse não só uma severa vigilância sobre o comportamento dos fiéis, assegurando que não eram contaminados com toda a produção cultural e inovações científicas que o contacto com os infiéis catalizou, como controlar e tentar cercear toda esta produção intelectual anti-cristã. Na verdade, a Igreja receava que as ideias inovadoras conduzissem os crentes à dúvida religiosa e à contestação da autoridade do Papa. As novas propostas filosóficas ou científicas eram examinadas (e cortadas radicalmente) pela Inquisição, exame que mais tarde, depois da invenção da prensa por Gutenberg que dificultou o trabalho inquisitoral, culminou na criação do Index auctorum et librorum prohibitorum, o catálogo dos livros cuja leitura era proibida aos católicos, sob pena de excomunhão.

A origem da Inquisição remonta ao século IV, quando se iniciam as perseguições contra os hereges. Nesta época, o movimento ainda não era institucionalizado, e no período que vai dos séculos VI ao IX o seu poder era restrito. A partir do século X, a Inquisição vai assumindo um papel cada vez mais importante. Com o IV Concílio de Latrão, de 1216, o papa Inocêncio III estabelece o metodo inquisitio e após o Concílio de Toulouse, em 1229, a sua organização foi formulada, sendo oficializada em 1231 pelo Papa Gregório IX. Inserido num cenário ainda de poder eclesiástico absoluto e soberano este Tribunal é instaurado essencialmente para perseguir os hereges que começavam a incomodar os alicerces do poder da Igreja católica. Em 1252 o poder da Inquisição é reforçado com a santificação da tortura pelo Papa Inocêncio IV que no Ad Extirpanda, diz que os hereges «podem ser torturados a fim de revelar os próprios erros e acusar os outros, como se faz com os ladrões e salteadores» e em que propõe que os heréticos irrecuperáveis devem ser queimados vivos na fogueira. Na prática, um testemunho era suficiente para justificar o envio para a câmara de tortura do acusado e quanto mais débil a evidência do crime, mais severa era a tortura.

O Manual dos Inquisidores, o Directorum Inquisitorum (escrito em 1376 por Nicolau Eymerich e revisto e ampliado em 1576 por Francisco de la Peña) é uma compilação da praxis da Inquisição desde a sua criação formal, um tratado dividido em três partes: a) o que é a fé cristã e seu enraizamento; b) a perversidade da heresia e dos hereges; c) a prática do ofício do inquisidor que importa perpetuar, dá conta, na secção b), que:

«Aplicar-se-á, do ponto de vista jurídico, o adjectivo de herético em oito situações bem definidas. São heréticos:
a) Os excomungados;
b) Os simoníacos;
c) Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que ela recebeu de Deus;
d) Quem cometer erros na interpretação das Sagradas Escrituras;
e) Quem criar uma nova seita ou aderir a uma seita já existente;
f) Quem não aceitar a doutrina romana no que se refere aos sacramentos;
g) Quem tiver opinião diferente da Igreja Romana sobre um ou vários artigos da fé;
h) Quem duvidar da fé cristã.»

Nestas oito alíneas cabem todos os que não aceitavam de cruz o que a Igreja de Roma determinava ou qualquer um que se considerasse ter ofendido os costumes (as tradições ainda tão invocadas hoje em dia) e a fé cristã da Santa Madre Igreja, para além dos culpados do costume: judeus, cristãos novos, marranos, sodomitas e bruxas (boa parte parteiras que, inspiradas pelo demo, ajudavam parturientes a «escapar» ao castigo ordenado pelo Senhor de parirem em dor).

4 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo: a escolástica pré tomista

Como referi logo no primeiro post devotado ao tema, considero que o início da longa «noite de mil anos» cristã se situa no Natal de 800, data da coroação de Carlos Magno por Leão III, que investiu o rei franco da suprema autoridade temporal sobre os povos cristãos do Ocidente. Simultaneamente Leão III conseguiu desta forma cimentar o poder da Igreja na Europa medieval, que já detinha um poder económico considerável uma vez que a Igreja de Roma, a única instituição que sobreviveu à queda do Império Romano, possuía cerca de um terço das áreas cultiváveis, a base da riqueza medieval, da Europa ocidental.

Carlos Magno (768-814) reinava assim sobre um continente europeu fragmentado e desorganizado. Para restaurar o império, precisava do apoio da Igreja, a única estrutura organizada sobrevivente. A consequência cultural e civilizacional da união entre a Igreja e o Estado foi o que alguns apelidam de renascimento carolíngio que na realidade se traduziu no início de um obscurantismo de que o Ocidente só começou a sair na Renascença. Um longo período da História em que a civilização europeia cristã foi acorrentada aos dogmas das Escrituras e sujeita a vigilância constante e repressiva pela Igreja.

De facto, a supremacia total da Igreja sobre o pensamento da época, que se traduziu não só na asfixia na difusão do conhecimento como na perseguição de quem diferisse uma vírgula das emanações da Igreja, deve-se a Carlos Magno que criou uma quase obrigatoriedade de fornecer instrução aos cidadãos europeus por parte da Igreja. Pretendendo imitar o Império Romano e assegurar a unidade do seu vasto império, como a única estrutura sobrevivente passível de tal tarefa era a Igreja, encarregou-a de educar religiosamente os povos bárbaros que o constituíam. Para além disso Carlos Magno precisava urgentemente de preparar uma classe dirigente e, em especial, de dispor de funcionários letrados, capazes de cumprir tarefas que assegurassem a funcionalidade do império.

Assim, criou um grande número de escolas em mosteiros, conventos e abadias, para além de fundar, junto da sua corte e no seu próprio palácio, a chamada Escola Palatina, precursora das Universidades (sob domínio católico, claro) que começaram a surgir na Europa a partir do século XII. Estas escolas deveriam ser presididas por um eclesiástico, scholasticus, dependente directamente do bispo, daí o nome de escolástica dado à doutrina católica a partir do século IX.

Os traços característicos da escolástica são, tal como na patrística, a subordinação à teologia do pensamento antigo, especialmente dos filósofos gregos, Platão, mais concretamente o neoplatonismo, na escolástica pré-tomista, Aristóteles na escolástica tomista e de novo o neoplatonismo na versão agostiniana do pós Tomás de Aquino. Em todas as vertentes da escolástica afirma-se a supremacia da Igreja em relação às instituições seculares, nomeadamente defende-se (e implementa-se) que o direito deve ser elaborado a partir da teologia, pois Deus é o seu fundamento.

Um dos pomos de discórdia entre os vários períodos da escolástica tem a ver com o livre arbítrio, uma vez que para os neoplatónicos do período inicial da Escolástica, tanto a vontade, como a razão de Deus, determinavam o justo, pois só «Deus é criador do Justo». Daí serem chamados de voluntaristas. Já a linha tomista é não-voluntarista, pois o que determina a justiça é a natureza das coisas e a natureza racional do homem. Nesse sentido, Deus é apenas conselheiro e guia do Justo.

O teólogo mais proeminente do período inicial da escolástica é Scoto Eriúgena, um teólogo originário da Irlanda, dita Scotia maior, Eriu em língua céltica, daí o nome de Scoto Eriúgena. Em 874 é chamado à corte de Carlos o Calvo, para presidir e leccionar na escola palatina. A sua obra principal, De Divisione Naturae, (847)uma obra marcadamente neoplatónica, com uma interpretação realista dos universais (um conceito mental, a natureza intrínseca das realidades expressas por palavras universais como homem, árvore, animal, etc.), foi posteriormente condenada pela Igreja em 1225…

O facto do saber neste período medieval partir exclusivamente dos clássicos e ser reproduzido com muita interpolação em enciclopédias sortidas, de acordo com o autor «copista» mas seguindo as piedosa censura proposta por Agostinho, impediu a inovação do conhecimento. Por outro lado como se procedia à «purga» dos clássicos de forma a «comprovar» as opiniões da Igreja muito do conhecimento perdeu-se, irremediavelmente não fora ter sido conservado pela civilização árabe. Foi um período em que a aversão pelo empirismo propiciou o desenvolvimento de lendas sortidas, em que se acreditava nas coisas mais mirabolantes como são exemplo os bestiários medievais. Estas obras compiladas por monges pretendiam, como não podia deixar de ser, ensinar ao homem o caminho da redenção, e atribuiam a cada animal um significado místico, tendo como base as Sagradas Escrituras. Nas páginas dos bestiários abundam animais míticos como a fénix, o unicórnio, a sereia, cavalos alados e afins. Lendas como a do reino de Prestes João, um mítico reino cristão situado «para lá da Pérsia e da Arménia», governado por um rei-sacerdote denominado Iohannes Presbyter, descendente de um dos Reis Magos, propagada por Hugo de Gebel, bispo de uma colónia cristã no Líbano, preenchiam o imaginário dos europeus oprimidos e crédulos.

Foi um período de obscurantismo supersticioso em que reinou o maravilhoso, uma fuga ao insuportável quotidiano determinado estritamente pela Igreja, o mirabilis (o maravilhoso de origens pré-cristãs), o magicus (o sobrenatural maléfico) e o miraculosus (o maravilhoso cristão, o milagre que ainda hoje perdura).

De facto, a característica principal deste período escolástico pré-tomista, que se estendeu até ao século XIII, é a luta dos teólogos mais influentes, ou seja, os místicos, contra a ciência e a filosofia por eles considerada um resíduo pagão, uma distracção mundana, uma demonstração de vaidade e orgulho intoleráveis num cristão. Mistícos bem representados por São Pedro Damião no século XI e São Bernardo de Claraval (ou Clairvaux) no século XII.

Este último, que pregava a ignorância piedosa afirmando que «Deus não obedece à lei ordinária», combateu especialmente a linha filosófica dos chamados dialécticos, escola de pensamento cristão iniciada por Anselmo de Aosta (1033-1109), que cometiam a heresia de advogarem o uso da razão.

Segundo Bernardo, estes «hereges» «desvirtuavam a fé exigida pelos mistérios de Deus» e perseguiu Pedro Abelardo, o sucessor de Anselmo no uso blasfemo da razão, que, acusado de heresia, foi condenado em dois concílios, Soissons e Sens.

3 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Zâmbia bane IURD

Na passada terça feira a Igreja Universal do Reino de Deus foi banida na Zâmbia depois de ser acusada de praticar satanismo e sacrifícios humanos. Já em 1997 o governo da Zâmbia tinha banido a IURD, por «práticas anti-cristãs», mas esta apelou da sentença obtendo a revogação da decisão no Supremo Tribunal.

O Ministro do Interior da Zâmbia, Peter Mumba, informou os repórteres que «O governo decidiu suspender as operações da Igreja na Zâmbia com efeitos imediatos, (…) de forma a permitir investigações das alegações, que consideramos muito sérias».

A decisão governamental foi tomada escassos dias depois de milhares de pessoas se terem manifestado violentamente em frente a um dos templos da IURD na capital, Lusaka, devido à existência de rumores de que existiriam pessoas raptadas, prestes a serem sacrificadas, no seu interior. Depois de a polícia ter sossegado os ânimos dos manifestantes, os dois homens que a multidão afirmava terem sido raptados para rituais satânicos, sairam, pintados dos pés à cabeça, de dentro do edifício. Ambos não se recordavam do que lhes tinha acontecido nem como tinham ido parar ao interior da Igreja.

No dia seguinte uma multidão incendiou uma igreja da IURD em Kanyama, uma cidade ao sul de Lusaka, e marchou para uma recém-construída catedral de muitos milhões de dólares que a IURD era suposta inaugurar na semana que decorreu.

3 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo – a patrística

Como a própria Enciclopédia Católica Popular indica, a Idade Média foi um período de total domínio da Igreja Católica que imprimiu «à Europa a visão teocêntrica do mundo, o ideal do império sujeito ao Papado (Cris-tandade) e a organização da vida do povo em torno dos princípios doutrinais e morais do Cristianismo». Os ecos desta «longa noite de mil anos», uma época de trevas e de obscurantismo, um tempo em que o homem, marcado indelevelmente pelo pecado original, morre para fazer viver Deus, ainda hoje se imprimem na sociedade actual, especialmente no Sul da Europa que a Reforma protestante não libertou da asfixia intelectual imposta pela Igreja de Roma.

De facto, se as culturas gregas consagraram como valores fundamentais o saber e a razão, o cristianismo procurou contrapor aos mesmos a superioridade da Fé revelada. Assim, o abandono do saber e da razão e a subordinação (e asfixia) de todo o conhecimento à religião marcou o pensamento europeu durante a Idade Média. Os únicos pensamentos «originais» que surgem, especialmente na Alta Idade Média (até ao século X), têm a ver com temas cristãos, tais como a providência e revelação divinas, a criação a partir do nada (creatio ex nihilo) e afins.

Podemos dividir a cultura cristã medieval em dois períodos, um designado por Patrística (séculos II-VIII), porquanto representa o pensamento dos pais da Igreja, os construtores da teologia católica e que domina na Alta Idade Média, e a Escolástica que se segue e termina com a (Baixa)Idade Média. Os expoentes destas escolas de pensamento são, como não poderia deixar de ser, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, respectivamente.

O De doctrina Christiana (397) do inescapável Agostinho de Hipona (354-430) será a obra que dominará toda a cultura cristã medieval, obra que tem como objectivo formar o vir Christianus dicendi peritus, o cristão que através do uso judicioso da cultura antiga aplicada às Escrituras adquire sabedoria e habilidades retóricas necessárias à sua eficiência no disseminar da doutrina cristã. Agostinho quer assim uma cultura total e directamente subordinada ao cristianismo, em que todas as manifestações da vida intelectual estão ao serviço da vida religiosa, não sendo mais que uma função desta. Para Agostinho a vida intelectual do cristão deve opor-se de forma radical à cultura tradicional dos sábios do seu tempo, à estética do letrado e à curiosidade do erudito. Todas as ciências irrelevantes para este objectivo devem ser abandonadas por pagãs ou contrárias à verdade revelada.

De facto, Agostinho viveu numa época de transição e conviveu com a cultura greco-romana que lhe serviu de inspiração, especialmente Platão, ou melhor, o neoplatonismo de Alexandria. Assim, cristianiza selectivamente a cultura greco-romana, com ênfase em Platão, extirpando o que considera erro comum de todos os filósofos antigos: a exaltação da razão, considerada a mais alta manifestação do homem. À razão Agostinho contrapunha a revelação e, traçando o caminho para o obscurantismo medieval cristão que se vai seguir, recomenda a colecção, numa só obra de preferência o que deu origem ao enciclopedismo medieval, de todos os conhecimentos do mundo clássico necessários à interpretação e ensino dos textos sagrados e ignorar (isto é, suprimir) os restantes.

Talvez a expressão Sapientia Dei, Scientia Mundi descreva os dois aspectos da cultura cristã agostiniana, o superior, a sapiência, a contemplação das «verdades eternas» divinas, e o inferior, a ciência, que consiste na interpretação dos dados sensíveis. Deveras interessante são as várias conotações que Agostinho dá à ciência, pejorativa quando corresponde a um considerado uso perverso e culpado da razão, que ocorre quando o objectivo é o conhecimento de per se, uma explicação do mundo sensível e não um meio para chegar a Deus.

A interpretação de ciência de Agostinho conjuntamente com a desvalorização da vida terrena, já que o mundo medieval não tinha qualquer valor intrínseco, era apenas uma passagem para um outro mundo, traduziu-se numa desconfiança pelos dados dos sentidos e, em particular, pelo conhecimento empírico que perduraram em toda a Alta Idade Média. O fundamento para a verdade seria unica e exclusivamente a Bíblia, a palavra revelada de Deus e quem a pusesse em dúvida um perigoso herege que urgia exterminar antes que contaminasse outrem com o seu pensamento impuro.

Para esta subordinação do conhecimento à religião contribuiu igualmente a desagregação do sistema de ensino da antiguidade clássica que acompanhou a queda do Império Romano no Ocidente. A Igreja monopolizou o conhecimento, os clérigos foram durante muito tempo os únicos letrados e as instituições de ensino romanas foram substituídas por mosteiros. O pouco ensino praticado assentava exclusivamente na interpretação da Bíblia.

De igual forma na Alta Idade Média, as bibliotecas foram transferidas para mosteiros e conventos. Aí, em húmidos scriptoria, os manuscritos eram conservados, copiados, cristãmente interpolados (o que passava por tradução à época) e ilustrados. Uma colecção de 200 volumes, criteriosamente escolhidos e censurados de acordo com a doutrina agostiniana, era considerada uma grande biblioteca. Alexandria no seu apogeu possuía 700 000 volumes…

1 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo – O legado árabe

A destruição pelos árabes de uma biblioteca da dimensão da de Alexandria parece pouco plausível se considerarmos que a civilização árabe recriou em Bagdad o ambiente académico de Alexandria, criando infraestruturas apropriadas à livre, cosmopolita e multi-religiosa difusão e desenvolvimento de conhecimento. Aliás, era então praxis muçulmana tolerar as culturas e religiões dos povos conquistados e, ao invés de a aniquilar, os muçulmanos assimilaram a cultura, nomeadamente científica, que encontraram nas regiões conquistadas.

Assim, nos primórdios da civilização árabe (identificada com islâmica) a esmagadora maioria dos matemáticos e sábios «árabes» praticavam outras religiões e escreviam numa língua diferente do árabe. Por exemplo, quando a Arménia foi conquistada cerca de 640 já o geógrafo e matemático Anania de Shirak teria escrito, em arménio, o seu livro sobre aritmética.

Só em 762 o árabe passou a ser a língua oficial de todo o império islâmico pela mão do califa abássida al-Mansur (754-775) que transferiu a capital para a recém-criada Bagdad. Tanto al-Mansur como os califas subsquentes, especialmente o califa Harun ar-Rasid (786-809), promoveram o desenvolvimento das ciências da natureza. No califado deste último Bagdad comecou a ser transformada no epicentro da difusão de conhecimento com a criação de uma importante biblioteca, contendo diversos manuscritos provenientes, entre outros, do império Bizantino. Nessa altura numerosos sábios e tradutores, professando religiões sortidas, e vindos de diversas regiões não apenas do império árabe, reuniam-se em Bagdad, que substituiu Alexandria como centro de saber.

O filho de ar-Rasid, o califa al-Mamum, fundou uma espécie de academia, Bayt al-Hikma, a Casa da Sabedoria, em cujas funções se incluia a tradução de textos diversos, especialmente gregos e indianos, e que dispunha de um muito bem equipado observatório astronómico

Assim, aquilo a que chamamos matemática árabe não o é de facto mas sim matemática escrita em árabe. Os algarismos ditos árabes correspondem à numeração indiana cuja primeira referência (excluindo o zero) fora da Índia, cerca de 662, se deve a Severus Seboht, originário de Nisibis, Mesopotâmia, que para além de versar sobre matemática escreveu, a partir de fontes gregas, babilónicas e sânscritas, obras de astronomia, de geografia e um tratado sobre o astrolábio.

Mas a Casa da Sabedoria produziu obras originais fundamentais como o primeiro tratado de álgebra (de al-jabr, que significa restauração), Hisab al-jabr w’al-muqabala, da autoria de um dos primeiros matemáticos da Casa da Sabedoria, Abu Abdullah Mohammed ben Musa al-Khwarizmi de que existem várias traduções em latim datadas do século XII. Aliás, o termo algoritmo deriva de uma corrupção latina do nome do matemático, inscrita numa obra do século XIII, sem título, que se encontra na Biblioteca da Universidade de Cambridge, que se inicia com as palavras Dixit Algorismi, ou Algorismi (al-Khwarizmi) disse. Poderia citar inúmeros matemáticos brilhantes fruto da Casa da Sabedoria. Mas relembrarei apenas Jemshid Al-Kashi, que propôs a resolução de equações cúbicas por iteração, métodos trigonométricos e também pelo método conhecido hoje como «método de Horner». Este método tem uma forte influência chinesa, indicando que a matemática chinesa da dinastia Sung foi assimilada no mundo islâmico.

Para além da matemática, a medicina e a astronomia eram as ciências em destaque na Casa da Sabedoria. O famoso Muhammad Ibrahim al-Fazari redigiu a sua primeira obra de astronomia, intitulada as-Sindhind al-kabir, a partir da tradução do livro sânscrito Brahmagupta. A medicina era uma ciência nobre a tal ponto que o kahim-bashi, o médico chefe, era um dignitário com poderes na corte do califa muito semelhantes aos de um primeiro-ministro. Aliás, as bases para a revolução intelectual no Ocidente situam-se na Espanha do século XII, à época ainda um importante centro da ciência árabe, e os seus principais mentores, o cordobês Averrois e Avicena, cujo Canon de Medicina foi traduzido para o latim no final do século XII e foi estudado nas universidades europeias até o século XVII, são ambos, para além de filósofos, médicos reconhecidos.

Assim, devemos à civilização árabe, tolerante e sem conflitos de autoridade com a ciência, a manutenção e recuperação de todo o saber de outra forma perdido em orgias de fé cristã, guardado em numerosas bibliotecas na forma de preciosos manuscritos gregos, traduções em árabe para além de livros da ciência árabe. Bibliotecas acessíveis a todos, vulgar cidadão, professor ou estudante. Cada cidade tinha a sua própria biblioteca onde todos podiam consultar os livros ou mesmo requisitá-los. A biblioteca de Córdoba, fundada em 965, constituiu a terceira biblioteca do mundo islâmico. E foi a semente para a recuperação da ciência proscrita e para o despertar da Europa das longas trevas intelectuais impostas pelo cristianismo.

Os árabes tiveram pois um papel inestimável na história da ciência, já que traduziram, fielmente e sem interpolações, os clássicos gregos (Apolónio, Arquimedes, Euclides, Pitágoras, Ptolomeu e outros). Estes clássicos estariam perdidos sem os árabes, não só devido ao encerramento da escola de Atenas, último reduto do paganismo, pelo imperador romano do Oriente Justiniano (483-565) cujo lema era «Um Estado, uma Lei, uma Igreja» e por conseguinte foi um feroz perseguidor de judeus, pagãos e hereges, como também à posterior destruição das obras consideradas heréticas de alguns destes pensadores.

1 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois mil anos de obscurantismo – os primeiros anos

Alguns dos nossos leitores insurgiram-se contra os termos em que o Carlos assinalou a passagem do 2º aniversário do Diário Ateísta e que dá título a este primeiro post devotado ao tema.

Devemos desculpas a esses leitores: na realidade não foram dois milénios de obscurantismo, nem sequer 1700 anos, desde que Constantino criou o catolicismo tal como o conhecemos hoje, numa tentativa de manter a unidade do Império Romano. Talvez possamos fazer coincidir o despoletar do obscurantismo com o início da Idade Média, situada por muitos historiadores em 395, data da morte de Teodósio, o Grande, imperador do Ocidente e do Oriente, que uns anos antes reconheceu o cristianismo como religião oficial do Império Romano e baniu os templos pagãos.

Na minha opinião, devemos traçar o declínio intelectual ocidental e o início da longa «noite de mil anos» cristã ao Natal de 800, data em que Leão III coroou o rei franco Carlos Magno como imperador do Sacro Império Romano, investindo-o da suprema autoridade temporal sobre os povos cristãos do Ocidente. O Sacro Império Romano durou mil anos até declinar em 1806 e a coroação de Carlos Magno marcou a data em que o papado se tornou o principal centro de poder espiritual e temporal da Idade Média. E alargou a toda a Europa o obscurantismo cristão vigente desde o início da Idade Média e até aí confinado às zonas de influência directa dos fanáticos cristãos.

Podemos dividir as causas desse obscurantismo em razões biológicas, que serão abordadas num próximo post, e razões a que chamarei socio-culturais. Na realidade a divisão é apenas de conveniência explicativa uma vez que ambas estão intimamente interligadas.

Começando então pelas causas socio-culturais que basicamente se podem resumir ao estrangulamento da difusão do saber e à censura dos (poucos) textos científicos preservados em território cristão. E passo a explicar porque atribuo ao cristianismo o estrangulamento na difusão do saber que grassou na Europa e foi depois exportado para os territórios colonizados pelas potências europeias, Portugal incluído, com uma análise do que se passava no pré-cristianismo e nos territórios não sujeitos à influência nefasta deste.

A difusão e preservação do saber, nomeadamente na forma de bibliotecas, era uma prática corrente na Antiguidade. Existem inúmeros vestígios desta difusão na Pérsia, Ásia Menor, etc. mas especialmente na Mesopotâmia e no Egipto. Na Mesopotâmia, mais concretamente na Babilónia, centro da dinastia Amorita (2100-1600 a.C.) e capital no reinado de Hamurabi (1792-1750 a.C.) esses vestígios assumem a forma de placas de argila inscritas com registos de matemática e economia. Existem ainda placas que parecem conter colecções de exercícios que o mestre distribuía aos seus alunos e pequenas placas que parecem ser a solução de problemas anotados pelos alunos.

Sabemos também que o rei assírio Assurbanipal (668-631 a.C.), criou uma biblioteca, uma das mais antigas de que há registo, no seu palácio da capital da Assíria, Nínive, que continha mais de 10 000 placas de argila.

Os vestígios da difusão do saber na forma de incipientes bibliotecas no Antigo Egipto são menos evidentes já que os egípcios utilizavam papiro, menos resistente à passagem do tempo. De qualquer forma existem inscrições em diversos templos que indicam a existência de bibiotecas e de bibliotecários que as mantinham (dois dos quais enterrados com pompa em Tebas).

As primeiras grandes bibliotecas surgiram em Atenas, nomeadamente a fundada por Pisístrato em 540 a.C. e, especialmente importante, a biblioteca escolar do Liceu de Aristóteles, considerada por muitos como a mais importante antes da biblioteca de Alexandria.

Sem dúvida que Alexandria é o paradigma da difusão do saber com o seu Museu (um instituto de pesquisa em medicina e ciências naturais) e a Biblioteca que, segundo a História, resulta da migração para o Egipto do conceito grego de cultura, universal e cosmopolita, introduzido por Alexandre o Grande (que fundou Alexandria) e continuado pelo primeiro faraó macedónio da dinastia ptolomaica, Ptolomeu I. Demétrio de Phaleron circa 297 a. C. não precisou de grandes dotes de eloquência para convencer Ptolomeu I a fundar em Alexandria algo similar à Academia de Platão ou ao Liceu de Aristóteles da sua nativa Atenas, de que foi governador entre 317 e 307 a.C. .

Carl Sagan, que dedicou algumas páginas a Alexandria e à sua biblioteca no seu livro «Cosmos», escreveu: «Sabemos, por exemplo, que nas prateleiras da biblioteca existiu um livro do astrónomo Aristarco de Samos, defensor de que a Terra era apenas um planeta que, tal como os outros, girava em torno do Sol e que as estrelas estavam a distâncias enormes. Cada uma destas conclusões é inteiramente correcta mas tivemos de esperar quase 2000 anos pela sua redescoberta. Se multiplicarmos por 100 000 a perda deste livro de Aristarco, poderemos fazer uma ideia da grandiosidade da civilização clássica e da tragédia que representou a sua destruição.»

Não obstante as tentativas de revisionismo histórico por parte dos cristãos, actualmente a atribuição da destruição da biblioteca de Alexandria ao general árabe Amrou Ben Al-As, que conquistou o Egipto em 642, está em descrédito sabendo-se hoje que se verificaram uma série de destruições nos finais do século IV perpetradas pelo zelo fanático dos cristãos contra as instituições e os símbolos da cultura pagã. Aliás, o bárbaro assassínio da brilhante matemática Hipatia no início do século V pelos devotos seguidores de São Cirilo indica ser o fervor cristão a causa mais provável da destruição deste repositório do saber da Antiguidade, considerado herético pelos cristãos.

1 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Os vagabundos do limbo

Uma excelente notícia para todos os ateístas que, como foi a minha experiência com as minhas filhas, especialmente a mais velha que teve graves problemas de saúde em bébé, vão deixar de ser perseguidos por fervorosos cristãos sob o pretexto de que estão a condenar os respectivos filhos às profundas do inferno (ou do limbo, para os poucos que distinguem entre os conceitos) se não os baptizarem.

De facto, séculos de grandes efabulações teológicas sobre o destino dos «justos» não baptizados vão ser em breve apagados das páginas da doutrina católica. Assim, mais uma verdade «absoluta» da Igreja de Roma está prestes a ser abandonada (ia escrever vítima do relativismo moderno mas certamente que a uma emanação de Roma o termo não se aplica). Estou a falar do limbo, mais propriamente limbos, um conceito aplicado teologicamente a (sic)

(1) lugar temporário ou estado das almas dos justos (mortos antes da crucificação do mítico fundador da religião) que, apesar de livres de «pecados», estão «excluídos da visão beatífica até a ascensão triunfante de Cristo ao Céu» (o limbus patrum) ou

(2) lugar ou estado permanente daquelas crianças não baptizadas e de outros que, morrendo sem algum pecado pessoal grave, são excluídos da visão beatífica por causa do pecado original (o limbus infantium).

A comissão teológica internacional da Igreja de Roma começou ontem uma reunião devotada ao tema cujo desfecho prevísivel será a abolição do limbo da colecção de sofismas doutrina católica. De facto, o actual Papa já deu indicações enquanto Ratzinger que considera o limbo apenas «uma hipótese teológica» (que ele não sustenta) e, porque o limbo é actualmente uma questão delicada neste ponto, afirmou mesmo que «Está ligado à causa do pecado original mas muitos bébés morrem porque são vítimas».

Reforçando que o que está em causa é o destino no «além» das crianças não baptizadas, que o relativismo dos tempos modernos impede aceitar ser condenação a um limbo quasi eterno por uma mera falta de aspersão aquosa, o Cardeal Georges Cottier, teólogo da Casa Pontifical, afirmou ontem ao italiano La Stampa: «Nós necessitamos considerar e levar em conta que muitas crianças morrem vítimas dos males modernos – fome no mundo, e muitos males provenientes das enormes desordem social e miséria, sem falar nos frutos de abortos e coisas semelhantes».

De facto, mais de seis milhões de crianças morrem anualmente de fome em países subdesenvovidos, exactamente os mesmos (e únicos) países onde a Igreja vê aumentar os seus rebanhos. E a Igreja está preocupada que o conceito do limbo não impressione favoravelmente potenciais clientes, especialmente se considerarmos que entre a concorrência, nomeadamente a islâmica, tal condenação não existe. Aliás, para o islamismo todas as crianças que morrem vão direitinhas ao céu sem precisarem qualquer teste.

A teoria dos limbos tornou-se doutrina comum a partir de Anselmo de Cantuária (início do século XII), ratificada por Inocêncio III (1160-1216) que disse que os que morreram «apenas» com o pecado original a manchar as suas almas não sofrerão «outra pena, seja fogo material ou do verme da consciência, excepto a dor de ser privado para sempre da visão de Deus» (Corp. Juris, Decret. l. III, tit. xlii, c. iii – Majores). Como não poderia deixar de ser, o primeiro a elaborar o que aconteceria aos bébés não baptizados foi Agostinho de Hipona, que os considerava condenados aos fogos eternos do Inferno. Lucubrações retomadas e suavizadas por Tomás de Aquino que afirmava não sofrerem estes inocentes alguma dor da perda da visão divina ou «aflição interior», nihil omnino dolebunt de carentia visionis divinae, dando assim a volta ao dogma de condenação eterna dos não baptizados, justificado pela resposta a Nicodemos do mítico fundador da religião descrito em João 3, 5: «Em verdade, em verdade Eu te digo: quem não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus».

Considerando as inúmeras «almas» que, de acordo com os ensinamentos da Igreja ainda em vigor, habitam o tal limbo (povoado, entre outros, por incontáveis óvulos fertilizados, embriões e fetos não nascidos) questiono-me qual será o destino que a Igreja de Roma dará a estes vagabundos dos limbos. E qual o sofisma com que resolverão a contradição dogmática que a falta de limbo irá introduzir, já que, supostamente, todo o ser morto sem a graça do baptismo está condenado para a eternidade. Para não falar na desculpa que será necessário arranjar para justificar o proselitismo e a evangelização (supostamente indispensáveis para salvar as «almas», mesmo justas, desta condenação eterna).

Claro que seria utópico esperar que ao abolir o limbo a Igreja Católica abolisse igualmente a intolerância que a caracteriza, mas pelo menos deixa de existir justificação para a imposição do catolicismo desde o berço. E menos uma razão para a guerra das cruzetas em que a Igreja Católica, que se acha acima da lei dos homens, transformou o mero cumprimento da lei máxima nacional.