Loading

Palmira Silva

6 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Totalitarismo ou religião?

A Comissão Europeia, através da Rede Europeia de peritos em direitos fundamentais que analisou o documento, avisou que o esboço de Concordata da Eslováquia pode corresponder a uma violação das obrigações deste país como membro da União Europeia. Em causa estão as cláusulas com que o Vaticano quer impor a sua posição anacrónica e aberrante sobre os direitos reprodutivos da mulher, via a «objecção de consciência religiosa».

Keith Porteous Wood, da Sociedade Nacional Secular britânica, aplaudiu as conclusões do painel de peritos, apontando que «Esta Concordata permitiria aos Eslovacos que o desejassem forçar a doutrina católica, por exemplo em relação ao aborto ou à contracepção, (…) independentemente das implicações adversas nas pacientes, que poderiam ser severas. O esboço do documento também é discriminatório a favor dos cristãos em certas áreas em detrimento daqueles de outras ou nenhuma religião».

As tácticas são diversas das dos talibans mas quer os objectivos quer os principais alvos são os mesmos: impôr a todos, especialmente às mulheres, as aberrantes «verdades absolutas» das respectivas religiões!

6 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

A saga afegã

Ahmed Shah Massoud, o leão de Panjshir, assassinado em 9 de Setembro de 2001.

Há pouco mais de uma semana assisti a um programa do Canal de História, Afeganistão, O Legado Da Guerra, retratando ao longo de mais de uma década os horrores de uma guerra que massacra os afegãos há quasi três vezes esse tempo. Um guerra que começou política e, depois da saída da União Soviética do país em 1989, que continuou numa guerra religiosa entre os fanáticos wahabitas conhecidos como Talibans e a coligação de mujahidin comandados por Ahmed Shah Massoud, que figurou proeminentemente no documentário. Guerra religiosa cujas verdadeiras proporções são bem expressas neste relatório sobre (e apenas este) o massacre de Mazar-I Sharif.

E guerra religiosa dirigida especialmente às mulheres que, sob o regime Taliban que perdurou até 2001, se tornaram verdadeiras reféns nas suas próprias casas, proíbidas de estudar, trabalhar, sair sem companhia de um familiar masculino, destituidas dos mais elementares direitos e de qualquer vestígio de dignidade.

Desde a queda dos Talibans em finais de 2001, que a posição cultural, política e social das mulheres afegãs tem vindo a normalizar, isto é a voltar à situação anterior às fanáticas lapidações religiosas. Pelo menos no papel, já que a recém adoptada Constituição afirma a igualdade de direitos de homens e mulheres. Na prática, os talibans continuam a ter um peso pernicioso na sociedade afegã e os seus métodos não se alteraram pela paz relativa dos últimos anos, ou seja, continuam a considerar-se divinamente justificados para impor as suas aberrantes «verdades absolutas» sobre as mulheres. Assassinando ou ameaçando de morte aquelas que, como Shaima Rezayee ou Malalai Joya, se atrevem a desafiar as regras impostas pelos talibans.

Desta vez o regime de terror dos fundamentalistas tenta minar a penosa reconstrução de um país em guerra ininterrupta há quasi 30 anos, assassinando professores de escolas em que são aceites raparigas como alunas.

Um dos últimos ataques ilustra os extremos que o fanatismo (diria mais, demência) religiosa pode atingir. Malim Abdul Habib, o director de uma destas escolas, que, infâmia das infâmias, se atrevia, apesar dos «avisos», a ensinar raparigas, foi arrastado do interior para o pátio de sua casa em Qalat, a capital da província de Zabul, na passada noite de terça-feira. Aí, perante os olhos da sua família, forçada pelos fanáticos a assistir, foi decapitado pelos defensores da pureza da fé wahabita.

O documentário a que assisti e os testemunhos recolhidos pelo jornalista do Guardian indicam que a esmagadora maioria da população não só quer ver as suas filhas educadas como gostaria de se ver livre dos talibans. Mas as tácticas de terror destes parecem estar a resultar. Nabi Khushal, o director de educação em Zabul, afirmou à Associated Press que já fecharam por motivos de segurança 100 das 170 escolas da província e que apenas 8% dos alunos são raparigas.

1 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Critérios contraditórios?

Enquanto em St Louis o arcebispo, Raymond Burke, excomungava os seis membros do conselho de direcção da igreja de St. Stanislaus Kostka e o seu padre polaco, Marek Bozek, por o conselho de direcção recusar ceder a propriedade da Igreja e o controle financeiro da paróquia para a arquidiocese, em Portland, Oregão, a arquidiocese local pretendia exactamente o contrário, ou seja, que eram as dioceses e não a arquidiocese as proprietárias dos bens da Igreja católica local.

A pretensão da arquidiocese local, que chocou os católicos americanos num caso vindo a lume recentemente, envolvendo a recusa da arquidiocese em pagar uma pensão de alimentos ao filho de um seminarista, surgiu na sequência da sua declaração de falência face aos muitos casos de abuso sexual de menores envolvendo padres da arquidiocese.

Aparentemente a pretensão do piedoso arcebispo de Portland de que apenas guardava a posse dos bens de outrem (as paróquias) não foi reconhecida pela Justiça americana, nomeadamente pela juíza Elizabeth Perris que determinou sexta-feira que todos estes bens são de facto posse da arquidiocese. Perris também rejeitou a outra pretensão da arquidiocese, de que deveria ser sujeita apenas à «lei da Igreja» e não à lei federal americana.

A decisão judicial, no entanto, não implica automaticamente que a referida arquidiocese seja forçada a vender propriedade da Igreja para pagar quer os acordos quer as indemnizações devidas aos abusados sexualmente.

1 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Fim de ano na Indonésia

O último dia de 2005 na Indonésia foi marcado por violência religiosa, na forma de mais um ataque bombista num mercado na província de Sulawesi. A mesma província que viu há pouco mais de dois meses três adolescentes serem decapitadas quando se dirigiam para a sua escola católica.

A bomba artesanal explodiu perto de uma banca que vendia carne de porco, numa zona da cidade maioritariamente católica, e vitimou oito pessoas, deixando muitos feridos.

Embora a Constituição da Indonésia afirme «que a nação é baseada na crença de um Deus Supremo» concede a «todas as pessoas o direito de adorar [este Deus Supremo] de acordo com o seu ou sua religião ou crença». Os ultimos anos neste país em que o islamismo é a religião maioritária têm sido palco de violência religiosa, especialmente contra católicos mas também dirigida a movimentos islâmicos liberais, como o Jaringan Islam Liberal (JIL). Grupos radicais islâmicos como o Jemaah Islamiah, que pretende transformar a Indonésia num país islâmico, estritamente sujeito à Sharia, têm sido acusados de uma série de ataques bombistas que incluem o ataque a igrejas cristãs na véspera de Natal de há cinco anos.

Nunca perceberei porque os fundamentalistas de todas as religiões, que não aceitam nem formas de agir nem de pensar diferentes das preconizadas pelas respectivas religiões, se acham no direito de impor a todos a sua religião e os seus dogmas anacrónicos, sejam alimentares, de escolha sexual ou referentes aos direitos reprodutivos das mulheres. E estes fundamentalismos não se restringem aos islâmicos, como os recentes acontecimentos em Timor indicam.

1 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Um excelente e laico 2006


E celebremos menos um ano que falta para concretizar a visão de Condorcet*:

«Chegará, pois, esse momento em que o Sol só iluminará, sobre a Terra, homens livres, que não reconhecem outro senhor para além da sua razão.»
Jean Antoine Nicolas Caritat, Marquês de Condorcet (1743-1794)

* Obrigado ao Luís Mateus pela mais iluminada mensagem de Ano Novo que recebi!

31 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Um novo ano

Men whose historical superiority
Is always greatest at a miracle.
But Saint Augustine has the great priority,
Who bids all men believe the impossible,
Because ‘t is so. Who nibble, scribble, quibble, he
Quiets at once with «quia impossibile.»

And therefore, mortals, cavil not at all;
Believe: — if ‘t is improbable you must,
And if it is impossible, you shall:

Don Juan, Canto XVI, Lord Byron (1788-1824)

Na altura em que simbolicamente encerramos 2005 e enunciamos os nossos propósitos para 2006, o nosso, neste cantinho virtual dos ateístas nacionais, é contrariar o conselho supracitado: não acreditar no improvável nem no impossível porque sim, mas continuar a promover «um esforço extraordinariamente obstinado para pensar com clareza». Mas certamente seguiremos a asserção de Byron que «Fools are my theme, let satire be my song»!

E já que Lord Byron foi o inspirador do post, recomendo para o início de 2006 a leitura do manifesto do seu par numa das mais firmes amizades na história da literatura, Percy Bysshe Shelley (1792-1822), «The Necessity of Atheism».

31 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Documentário do ano

A BBC4 passou este ano um documentário em três episódios, que espero chegar a Portugal, escrito por Jonathan Miller, um médico que se tornou um dos mais aclamados directores britânicos de ópera e teatro, intitulado Jonathan Miller’s Brief History of Disbelief (Breve história da descrença).

Num ano marcado pelas IDiotias dos fundamentalistas cristãos americanos que têm na ciência a principal inimiga da fé são interessantes as declarações do produtor/director desta série, Richard Denton, que confessa que as suas ideias preconcebidas de que tinha sido a ciência a grande culpada da erosão da fé foram abaladas pela descoberta proporcionada pelo documentário de que fora a filosofia, ou antes a atitude filosófica que consiste em não aceitar certezas e crenças estabelecidas, o factor que mais contribuira para a descrença.

Em adição ao documentário foram emitidas seis entrevistas de meia hora, The atheism tapes, com alguns dos colaboradores do documentário. De realçar a primeira entrevista da série, um tributo ao recentemente falecido dramaturgo americano Arthur Miller, o autor, entre outras, da peça «Morte de um caixeiro-viajante».

30 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

William W. Howells

William W. Howells, um dos mais eminentes antropólogos evolucionistas, professor emérito de Harvard, recipiente do Charles Darwin Award for Lifetime Achievement em 1992 e do Distinguished Service Award da American Association of Physical Anthropologists em 1978, morreu dia 20 de Dezembro com 97 anos.

Para os interessados nesta área fascinante Howells tem um excelente livro de introdução à evolução dos hominídeos, Getting Here: The Story of Human Evolution, que aborda a evolução humana desde antepassados tão remotos como o australopitecus e Homo habilis passando pelo Homo erectus até ao Homo sapiens.

Convido-os a explorarem algumas páginas do livro, que explicam fabulosamente o que é uma teoria científica, e a «evolução» do evolucionismo.

29 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Totalitarismos e vitimização

Numa atitude clara de desafio à hierarquia católica, que quer a posse da igreja e excomungou não só padre mas também toda a direcção, pelo menos 2 000 fiéis da comunidade polaca de St Louis encheram a proscrita igreja de St. Stanislaus Kostka na noite de 24 de Dezembro para ouvir a primeira celebração eucarística do excomungado padre Marek Bozek.

Este episódio permite-nos reflectir sobre não só uma característica indissociável do cristianismo, a mania da vitimização e perseguição, como também a génese dos fundamentalismos. Claro que neste caso os crentes católicos têm motivo reais para se sentirem perseguidos pela hierarquia local mas o facto de terem comparecido em massa à primeira missa «proibida» reflecte dois dos factores de que se alimenta(ra)m os vários «flavours» do cristianismo. Um deles é a já referida mania da perseguição/vitimização, o outro é uma idiossincrasia humana que nos faz almejar o que é proíbido, tão bem identificada na máxima popular «o fruto proibido é o mais apetecido». Um dos meus amigos alemães, agora na Universidade de Bayreuth mas originalmente da Alemanha de Leste, ateu convicto, contava-me que antes da queda do muro ia com frequência a missas clandestinas não por qualquer convicção religiosa mas porque o facto de estar a fazer algo proibido satisfazia a sua rebeldia juvenil.

Ambos os factores foram abordados por Ed Brayton num post de um blog que leio habitualmente, os Despachos das guerras culturais, a propósito da não existente Guerra ao Natal, já referida pela Mariana. Para Brayton demagogia pura e interesse económico são as razões subjacentes ao alarido estridente criado em torno destes não assuntos pelos Jerry Falwells, Matthew Stavers e Bill O’Reillys que abundam nos Estados Unidos, ou seja a invenção de um inimigo conveniente que mexa com os sentimentos dos crentes é indispensável para manter um fluxo confortável de doações monetárias.

Sobre as razões porque embarcam tão facilmente os cristãos nestas encenações de perseguições inexistentes basta pensar como os cristãos enaltecem e valorizam os «mártires» e as perseguições em nome da fé. De facto, a(s) Igreja(s) cristãs alimenta(m)-se de «mártires» e sem estes e sem perseguição fenece(m). Assim, é preciso inventar perseguições e glorificar os que se «sacrificam» em nome de uma qualquer «causa» cristã, seja ela o aborto ou a Inquisição «anti-católica» que rejeitou Rocco Buttiglione.

A tentativa de angariar clientes com supostas perseguições justifica as declarações do finado Papa há pouco mais de um ano de que «no final do segundo milénio, a Igreja é de novo Igreja de mártires, as perseguições contra os crentes, sacerdotes, religiosos e leigos produziram uma grande seiva de mártires em diversas partes do mundo» pois como afirmou Edward Novak, secretário da Congregação para as Causas dos Santos, «De um mártir» nascem «centenas, milhares» de novos fiéis.

George Bernard Shaw descreveu o Sermão da Montanha, onde começam os inúmeros avisos bíblicos das «perseguições» de que seriam alvos os seguidores do mítico Cristo, como «uma explosão impraticável de anarquismo e de sentimentalismo». Friedrich Nietzsche acertou em cheio quando escreveu que «a moralidade cristã é a mais maligna forma de toda a falsidade» (Ecce Homo) ou, na Geneologia da Moral, «o cristianismo (ou a moralidade dos escravos) necessita um ambiente hostil para funcionar, a sua acção é fundamentalmente reacção».

Aliás, as nossas caixas de comentários são ilustrações perfeitas desta necessidade de invenção de perseguições pelos crentes, que assim satisfazem a ilusão de serem automaticamente abençoados e merecedores do reino dos céus como preconizado no Sermão da Montanha, mais concretamente em Mateus 5:10-12. Qualquer texto nosso é encarado como um insulto que encobre motivações sinistras (e inexistentes), perseguições confortantes para a fé que preenchem o léxico do imaginário dos crentes. São também ilustrações perfeitas dos ingredientes necessários à eclosão de fundamentalismos sortidos que, assim como todos os totalitarismos, assentam em três pilares:

1) A detenção de uma verdade «absoluta», à qual todos devem se submeter, mesmo os descrentes nesta suposta verdade;
2) A certeza num destino glorioso para os justos/eleitos;
3) Um grande inimigo que é necessário diabolizar, sendo a suposta perseguição por este inimigo o nexus da angariação e fidelização de seguidores.

De facto, um inimigo sob o qual estão sob ataque constante os «justos» ou eleitos é indispensável a qualquer totalitarismo, seja ele religioso ou ideológico/político, um inimigo que pode ser responsabilizado por todos os males da sociedade e cujo combate exige a mobilização permanente dos eleitos. Para completar o quadro, é necessário convencer o rebanho de conformistas que este inimigo está sempre a postos para os perseguir, pois domina a cena financeira/política e controla os meios de comunicação. Este último ponto é indispensável na era da comunicação para imunizar os crentes em relação a qualquer crítica, atribuindo tudo o que é dito de negativo sobre as respectivas doutrinas a manobras persecutórias e manipuladoras do inimigo omnipresente.

Assim, todos os totalitarismos, religiosos ou políticos, dividem a humanidade entre eleitos e excluídos consoante a sua obediência ou não a estas verdades «absolutas», invocam infernos sortidos (concretizados em gulags e campos de concentração na versão política) como destino dos excluídos e consideram ser esta a forma suprema de justiça. Para todos os totalitarismos o destino do homem livre, o seu grande inimigo, é a perdição. Ou seja, pervertem o conceito de liberdade como pervertem o conceito de justiça ao pregarem que só a obediência cega, a Deus ou a líderes totalitários, conduz à verdadeira liberdade. E apelidam de ditadura, do relativismo ou afins, a verdadeira liberdade!