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Palmira Silva

30 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Crónicas do Cavaleiro da Pérola Redonda

«toda a religião que, em nome de uma ordem espiritual, impõe sobre o corpo um regime de sistemática repressão, tende a produzir personalidades neuróticas» Rubem Alves, teólogo, filósofo e psicanalista

Passada a excitação das presidenciais, que o distraiu da res católica, João César das Neves regressa em força ao mais básico fundamentalismo cristão abordando um tema recorrente na sua opinação de segunda: a homossexualidade. Lendo apenas o título do artigo, «Fundamentalismo e homofobia» poder-se-ia pensar que J.C. das Neves tinha finalmente apreendido o conceito tolerância e que o artigo seria um mea culpa do opinador do Diário de Notícias em relação a opinações anteriores.

Uma vez que o termo «sodomia» remete a um dos mitos relatados no Génesis, a destruição de Sodoma e Gomorra, a condenação da homossexualidade é, na sua génese, uma manifestação de fundamentalismo (que é simplesmente a insistência em levar estritamente à letra os escritos ditos «sagrados»). Só depois de Tomás de Aquino se utilizou outro argumento, que perdura até hoje, a afirmação de que é um pecado contrário à natureza (peccatum contra naturam). Claro que à época de Tomás de Aquino o conceito de «natureza» não era de todo «natural». Aliás, ainda hoje se discute o que é natural e o que é cultural. O auxílio das ciências sociais é fundamental para tratarmos desse tema, pois a antropologia, a sociologia e a psicologia têm mostrado que muitos comportamentos que consideramos «naturais» são na verdade, culturais. De qualquer forma, um pecado, seja «contra a natureza» ou qualquer outro, só o é para os seguidores da religião que os define. Não faz sentido impôr a toda a sociedade não só o conceito de «natureza» bíblico como a criminalização dos «pecados» cristãos!

Claro que este «pequeno» pormenor passa completamente ao lado de J.C. das Neves que compara o fundamentalismo IDiota que assola os Estados Unidos à recente resolução do Parlamento Europeu que pretende pôr termo à discriminação de homossexuais. Na sua introdução condenatória do fundamentalismo integrista norte-americano, o ilustre opinador mostra que está a leste do que se tem passado nos Estados Unidos, porque não é verdade que «o fundamento invocado para essa proposta [o ensino do criacionismo a par do evolucionismo], inclusive em tribunal, costuma ser o conceito de liberdade religiosa». Os IDiotas pretendem exactamente o contrário, que o seu neo-criacionismo não tem nada a ver com religião e é sim uma teoria «científica» válida. Que o não é e que é apenas uma forma disfarçada de introduzir religião nas salas de aula de ciências foi o fundamento da recente decisão do juiz John Jones no mediático julgamento de Kitzmiller.

Ou seja, J. C. das Neves não só baseia a sua opinação em premissas erradas, diria mais trocadas, ou seja, a IDiotia pretende ser ciência e não religião e como tal nunca esteve em causa a liberdade religiosa, bem pelo contrário, enquanto na «Resolução sobre a Homofobia na Europa» se repõe este direito fundamental do Homem. Para além disso, enquanto a IDiotia se refere à res pública esta resolução diz respeito à res privada.

Na sua opinação que, como é habitual, é um tratado de falácias, J.C. das Neves insurge-se contra a violação da liberdade (?) que esta resolução «abstrusa» (sic) constitui, já que uma «pessoa, em liberdade, tem o direito de pensar que a homossexualidade é uma depravação». Eu pensaria ser pacífico que a resolução pretende não limitar as lucubrações privadas de qualquer fundamentalista católico mas sim as suas manifestações públicas de intolerância, nomeadamente via «linguagem inflamatória, odiosa e ameaçadora».

Que tal seja considerado uma afronta à liberdade, isto é intolerância, religiosa ou uma imposição de «dogmas alheios» é algo que me mistifica. Quando, mais de 57 anos após a Assembleia Geral das Nações Unidas ter proclamado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhece que a praxis pública europeia não pode ser refém dos preconceitos e dogmas de qualquer religião em relação a comportamentos privados e ao decidir em conformidade, o Parlamento Europeu está apenas cumprir o preconizado na supracitada Declaração.

30 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

A primeira encíclica – a parte política

A segunda parte da encíclica de Bento XVI é um manifesto político e, simultaneamente, um tratado do pensamento sofismático. Pensamento sofismático que pode enganar um leitor mais apressado que, descontando uma menção ao «ameaçador» secularismo actual no parágrafo 37, poderia acreditar que com esta encíclica se renova o Concílio Vaticano II no que respeita à separação Estado-Igreja, ou mais concretamente em relação à «autonomia das realidades temporais».

Nada mais longe da verdade! Depois de arrumada numa primeira parte a ortodoxia da res privada, Bento XVI explicita na segunda parte o que tem sido tema do seu papado, a recusa da laicidade e das dissidências «sociais» dos católicos. Assim, a segunda parte da encíclica versa sobre como deve ser ordenada a res pública, a polis, mais concretamente, quais devem ser os papéis do Estado e da Igreja na sociedade.

E as congeminações de Bento XVI são no mínimo alarmantes já que ele tem, como passarei a explicar, uma visão minimalista do Estado. Estado que não deve de forma alguma interferir na «missão» da Igreja, que passa pela regulação das sociedades determinada pela sua «natureza íntima» expressa no «tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos Sacramentos (leiturgia), serviço da caridade (diakonia)». Quaisquer pretensões que alguns crentes pretendem ver no ponto c) do parágrafo 31 de que a caridade não é uma capa para um proselitismo aberto é desmentido pela afirmação do Papa de que estes «São deveres que se reclamam mutuamente, não podendo um ser separado dos outros»

As citações de filósofos políticos como Nietzsche, Descartes, Aristóteles, Platão, Agostinho de Hipona (várias vezes, como já indiquei) e Marx pretendem recordar que o «amor» divino é um tema recorrente na História da filosofia política e que quando os filósofos ( e os políticos que neles se inspiram) esquecem o divino quando fazem política o resultado é calamitoso. Assim sendo, a secção sobre justiça e caridade (parágrafos 26-29) em que Bento XVI discute as funções da Igreja e do Estado, inicia-se pela refutação da crítica marxista à caridade cristã, isto é, a refutação da afirmação, para muitos católicos pacífica, de que os pobres precisam de justiça social não de caridade.

Bento XVI, de forma hábil mas falaciosa, usa a falência do marxismo/comunismo para demonstrar que de facto a caridade não é uma forma de os ricos «subtraírem-se à instauração da justiça e tranquilizarem a consciência, mantendo as suas posições e defraudando os pobres nos seus direitos» mas sim algo indispensável para uma «ordem» social mais justa, para a qual é fundamental o papel caritativo (e prosélito) da Igreja, financiado com dinheiro estatal. Nova ordem social em que o papel do Estado é minímo já que «Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais», ou seja, um Estado que basicamente tem como função financiar a Igreja!

Esta encíclica é assim um tratado de teologia política católica par excellence que essencialmente versa sobre a necessidade de «menos Estado», não no sentido liberal do termo, mas sim significando que a governação de facto deve ser efectuada pela Igreja. Igreja que, segundo Ratzinger, é a instituição que deve suprir as necessidades mais básicas dos cidadãos, já que justiça e política são necessárias mas o agape transcende a política.

Teologia política subjacente ao percurso do católico Sam Brownback, o republicano teocrata que não só Pat Robertson mas também Harald Bredesen, o fazedor de presidentes que conta Reagan e Bush no curriculum, querem ver na presidência dos Estados Unidos em 2008. Brownback, um dos autores do «Acto de Restauração» – que limita o âmbito das acções que podem ser apreciadas pelo Supremo Tribunal, mais especificamente, faz com que não sejam passíveis de recurso decisões feitas por um agente judicial que reconheça Deus como a fonte da lei, liberdade ou governo – pretende, no caso de ser eleito, implementar uma concepção de Estado em tudo análoga à defendida por Ratzinger nesta Encíclica. Isto é, Brownback pretende não uma política baseada na fé mas fé em vez de política. Se eleito, a América será uma terra de sonho em que apenas mandam o livre mercado e Deus. Todas as estruturas estatais que mantiveram o tecido social americano desaparecerão ou serão privatizadas, nomeadamente escolas, Segurança Social e o «welfare» americano, que será certamente substituído pela caridade cristã.

Qual é o papel da Igreja então que ressalta desta encíclica que fez alguns dos nossos crentes leitores, que certamente não a analisarm em profundidade, afirmar que constitui um hino à laicidade? Depois de traçar a doutrina social da Igreja face às ameaças marxistas que, com as suas pretensões de justiça social, pretendiam retirar à Igreja a arma por excelência do proselitismo, a caridade, Bento XVI distingue entre a acção indirecta da Igreja, da competência dos católicos leigos que devem assumir «empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade», e acção directa da Igreja que se deve restringir à «actividade caritativa organizada». Ou seja, para Ratzinger não compete directamente à Igreja «a formação de estruturas justas», com o que condena implicitamente todos os teólogos da libertação e afins, a Igreja deve imiscuir-se na política apenas indirectamente, preparando leigos, que devem trazer (isto é impôr) os ditames de Roma para a cena política dos respectivos países.

Devem ser esses leigos a efectivar as lutas políticas da Igreja nos tais temas fracturantes, através da «purificação da razão e o despertar das forças morais» já que é «missão dos fiéis leigos configurar rectamente a vida social».

Assim, esta encíclica é de facto uma ode anti-laicidade, para além de uma ode anti-Estado Social, já que não só afirma que o Estado deve subsdiar a Igreja, a quem cabe via caridade/agape fazer «justiça» social, como por outro lado afirma ser obrigação dos crentes imiscuirem-se na dispensa da justiça (o único papel, para além da cobrança dos impostos que sustentarão a Igreja, claro, que segundo Ratzinger cabe ao Estado) sempre que esta não seja «recta», isto é, não obedeça aos ditames do Vaticano, ou antes «às exigências do bem», sendo que o bem é o agape cristão definido e interpretado por Ratzinger!

Achei igualmente interessante o parágrafo em que Ratzinger relembra que a caridade cristã, embora assegurada pelo dinheiro público, deve ser dispensada «principalmente para com os irmãos na fé»!

29 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

A primeira encíclica

Nove meses depois de entronizado, Bento XVI debita a sua primeira encíclica, datada de 25 de Dezembro mas lançada em 25 de Janeiro, data da suposta conversão de Paulo. A data escolhida para a vernissage não me parece inócua e numa primeira análise do texto espero explicar porque a acho preocupante.

Mesmo o tema da encíclica, o amor, apresentado como algo apenas aceitável se cristão a la Ratzinger, que pareceria inofensivo a um leitor mais incauto, não o é de facto já que com esta primeira encíclica Bento XVI pretende marcar «pontos». E fá-lo em primeiro lugar por não referir, contra o que é hábito em encíclicas papais, as obras sobre o tema de anteriores papas, nomeadamente de João Paulo II, que escreveu aquela que é considerada por muitos cristãos a obra de referência sobre o amor marital, «Amor e responsabilidade».

Mas há duas citações a Gregório Magno (540-604), o papa que inventou os sete pecados mortais e que no seu Responsum afirmou «O prazer sexual nunca ocorre sem pecado» e que nas suas reflexões sobre o prazer sexual realçava «não basta dizer que o prazer não é meta lícita nas relações sexuais, mas quando ocorre, há transgressão das leis do matrimónio». Este papa foi responsável igualmente pela cristianização das Ilhas Britânicas e pela divulgação da música de eleição do actual Papa, o canto litúrgico típico pré Concílio Vaticano II, conhecido como canto gregoriano, e poder-se-ia pensar que foi o único Papa citado nesta primeira encíclica de Bento XVI pelo último motivo, já que enquanto Ratzinger carpiu a degeneração da música sacra, associada às formas destrutivas ocorridas durante a implantação da reforma litúrgica, decidida pelo Concílio Vaticano II.

Por outro lado, com esta primeira encíclica Ratzinger, que cita Aristóteles (mas não Tomás de Aquino), Virgílio, Descartes e até o epicurista Pierre Gassendi, que permitiu que professar o atomismo não fosse equivalente a uma sentença de morte, faz uma apologia da patrística com uma citação de Ambrósio, que se notabilizou pela defesa da «virtude» máxima cristã, a virgindade, e três citações do misógino Agostinho.

Ou seja, com esta encíclica sobre o amor, que segue estritamente a teologia cristã que não apenas recusa vida sexual a Cristo como também a seus pais, Bento XVI não só reitera como válida apenas a visão agostiniana sobre o amor, nomeadamente sobre o papel da mulher (não falta o criacionismo cristão com a mulher a ser «plasmada» de uma costela de Adão) mas refuta as «modernices» blasfemas sobre a legitimidade do amor físico, estabelecendo-se como o teólogo para que os cristãos devem olhar sobre estas questões.

De facto, ao condenar como erro a separação de eros (amor «mundano») e agape (como expressão do amor fundado sobre a fé) afirmando «quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor» sem sequer o citar, Bento XVI pretende anular a influência do bispo de Lund e influente teólogo do século XX, Anders Nygren, que com a sua obra de 1932, «Agape e Eros», marcou a forma como o mundo cristão moderno vê o amor. Também não mencionado mas obviamente refutado é C.S. Lewis (sim, o mesmo das Crónicas de Nárnia) mais concretamente o seu livro «Os quatro amores», que distingue quatro tipos de amor (igualmente válidos), storge (afecto), philia (amizade), eros (amor erótico ou romântico) e agape (o amor cristão por excelência).

De uma forma magistral e por isso mesmo mais preocupante, nesta encíclica curta, incisiva e completamente cristocêntrica (nos antípodas do que nos habituou João Paulo II), Ratzinger, que é na minha opinião o Papa mais inteligente que ocupou o trono papal, resolve igualmente as questões «fracturantes» que agitam as hostes católicas. Ao afirmar «numa orientação baseada na criação, o eros impele o homem ao matrimónio, a uma ligação caracterizada pela unicidade e para sempre; deste modo, e somente assim, é que se realiza a sua finalidade íntima» Bento XVI reafirma a oposição da Igreja à contracepção, implicitamente ao aborto, a qualquer relacionamento fora do matrimónio, ao divórcio e não só ao casamento homossexual como à homossexualidade. Oposição reiterada e reforçada quando afirma que «o matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano». Ao refutar a possibilidade de separação do amor a Deus e do amor «terreno», isto é, dos relacionamentos intímos, Ratzinger reafirma o que já tinha apelado em Colónia, que é indispensável que os católicos voltem às bases do cristianismo (identificadas com a patrística nesta encíclica), rejeitem o secularismo e a «religião faça você mesmo».

Mas é a segunda parte da encíclica, estritamente política, que se revela mais preocupante. Explicarei porquê no próximo post.

28 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Teoria de Cordas e a Ilusão do Desenho Inteligente


A teoria de cordas por uma qualquer razão que não ainda não percebi preenche o léxico do imaginário de insuspeitos cidadãos, nomeadamente os meus alunos recém-chegados ao Técnico, quiçá devido a títulos como o deste comunicado de imprensa da Northeastern University, que, recheado de referências à teoria de cordas, indica que cientistas desta Universidade e da UCIrvine, encontraram sinais de dimensões extra. Na realidade, resolvi investigar o artigo original que motivou toda a excitação de evidências para as «exóticas previsões da teoria de cordas» e, mais uma vez, não me pareceu detectar qualquer confirmação desta teoria, bem pelo contrário.

Mas como de teoria de cordas dizer que não percebo muito é um eufemismo e todos os semestres vejo um olhar incrédulo nos meus alunos quando o confesso, há uns tempos que ando para comprar um livro de divulgação científica sobre o tema que preencha as lacunas de conhecimento que as conversas com os meus amigos físicos não conseguem colmatar.

Hoje descobri um livro, que já encomendei, que junta o útil ao agradável, um que dá título ao post e que é o primeiro livro de divulgação escrito por um dos pais da teoria, Lenny Susskind.

Nele, para além de descrever para «o povo» a teoria, Susskind afirma não ser necessário qualquer desenho inteligente associado ao princípio antrópico, que basicamente tem sido utilizado para afirmar impossível ser a vida na Terra o que é subjacente ao evolucionismo, ou seja, o produto do acaso, e propõe que o Universo e as leis da Física foram «desenhadas» para a existência do Homem. Ou seja, como o próprio afirmou, «Descobri [em blogs e websites religiosos] esta enorme cultura de pessoas que acreditam que o princípio antrópico significa desenho inteligente. O que foi educacional para mim. Este livro é sobre não serem necessárias explicações sobrenaturais».

Apesar de para mim o princípio antrópico ser simplesmente uma pescadinha de rabo na boca será interessante ver a abordagem de Susskind ao tema!

24 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Palavras do Papa com direitos de autor

A controvérsia instalou-se em Roma quando se tornou conhecimento público que uma editora de Milão teve de pagar a posteriori cerca de 15 000 euros pelas 30 linhas do primeiro discurso do Papa que publicou. De facto, o Vaticano transferiu, em finais de Maio, para a sua editora, Libreria Editrice Vaticana, os direitos de autor sobre as palavras (escritas e faladas) do Papa. E pretende cobrar direitos de autor de todas as emanações papais dos últimos 50 anos.

A inusitada manobra deixou os editores italianos, católicos inclusive, um pouco baralhados. «Estou perplexo,» afirmou Vittorio Messori, que foi co-autor de dois livros sobre dois papas «A Igreja é uma organização que existe para espalhar a palavra de Deus e impôr um preço por essas palavras, pondo um cheiro de dinheiro nelas, parece-me algo muito negativo».

Resta saber se a manobra do Vaticano tem motivação financeira (afinal os sapatinhos Prada e demais parafrenália, para não falar em todo o luxuoso séquito acompanhante, não devem ficar baratos) ou se com ela o Vaticano pretende acabar com a crítica fundamentada aos muitos dislates, sofismas e afins debitados profusamente pelo Papa.

De qualquer forma, aparentemente o Vaticano pretende cobrar direitos de autor retroactivos a todas as reproduções de encíclicas, discursos, etc., que debita. Nem consigo imaginar, à módica quantia de 500 euros por linha, e tendo em conta a profusão e extensão dos documentos envolvidos, o dinheiro que irá extorquir com a manobra! Aliás, parece-me um pouco desonesto estar a cobrar dinheiro por algo que quando foi publicado ninguém sabia estar sujeito a direitos de autor!

23 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

E ainda o Código de da Vinci

A Opus Dei pretende que o filme que passa para a grande tela o livro de Dan Brown, que tanta celeuma criou entre as hostes cristãs, seja classificado para maiores de dezoito anos.

O porta voz da Opus Dei para os meios de comunicação, Marc Carroggio, afirmou que a organização que representa, cujos membros (adultos) acreditam em imaculadas concepções, milagres sortidos e outras mitologias, considera o pedido justificado já que «Qualquer adulto com um mínimo de educação sabe distinguir realidade de ficção» mas as crianças não. Acho especialmente interessante que o porta-voz da Opus Dei, que, assim como a Igreja Católica, sabe não só a importância do revisionismo histórico mas especialmente da doutrinação desde a mais tenra infância, tenha afirmado que «quando a história é manipulada não se pode esperar que uma criança faça julgamentos apropriados».

Embora descartando a hipótese de a Opus Dei processar a Sony-Columbia, numa entrevista à Zenit Carroggio deixou no ar que tal seja feito por instituições de caridade dirigidas por membros da Opus Dei:

«Existem membros da Opus Dei em 60 países. Alguns deles, com outros, dirigem centros que treinam agricultores e jovens que não conseguem arranjar emprego. Também dirigem hospitais em zonas desprevilegiadas. Todas estas actividades dependem financeiramente de muitos doadores. Obviamente que a novela e o filme podem tornar mais difícil a angariação de fundos. Por esta razão, não ficaria surpreendido se algumas destas organizações pensarem em acções judiciais».

Continua a mistificar-me que a Igreja Católica, que não faz praticamente uma declaração em que não adscreva aos ateus e ao ateísmo todos os males do mundo, sem quaisquer problemas sobre a imagem que vende constantemente dos ateus, seja tão susceptível em relação à «imagem odiosa» que consideram uma obra de ficção (!) fazer da Opus Dei.

22 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

A verdade – em busca do paradigma perdido

«Mas hoje em dia, para substituir uma série de ideologias em crise, algumas pessoas fazem a corte cada vez mais com uma escola de pensamento de acordo com a qual o curso da história não nos aproxima cada vez mais da verdade.

De acordo com estas pessoas, tudo o que há para compreender já foi compreendido há muito por civilizações antigas há muito desaparecidas, e só o regresso humilde a esse tesouro tradicional e imutável permite reconciliar-nos connosco e com o nosso destino.

Nas versões mais abertamente ocultistas desta escola de pensamento, a verdade era cultivada por civilizações com as quais perdemos contacto: Atlantis, engolida pelo oceano, os Hiperbóreos, arianos 100% puros que viviam num cimo gelado de uma montanha eternamente temperada, os sábios da antiga Índia e outras divertidas patranhas que, sendo indemonstráveis, permitem que filósofos de terceira categoria e autores comerciais continuem a mastigar versões requentadas do mesmo velho lixo hermético para diversão dos veraneantes.»

Humberto Eco, artigo publicado no Guardian e disponível na Crítica, Revista de filosofia e ensino.

O meu post «A Sétima Dimensão» (e também a sua sequela «Pseudofilosofia»)
motivou uma acesa discussão sobre a verdade, discussão despoletada pelo parágrafo referente à moral e ética:

«O direito que rege as sociedades deve transcrever o progresso ético da humanidade e não «verdades absolutas» reveladas de uma qualquer mitologia. Verdadeiro e falso são valores lógicos atribuídos a uma determinada proposição, ou seja, a verdade não pode ser absoluta, porque ela é um conceito que emitimos sobre uma proposição. Uma verdade de ontem pode não ser uma verdade hoje, porque o contexto em que essa verdade é avaliada mudou ou porque novos dados entretanto descobertos transformaram essa verdade em mentira.»

Embora este parágrafo me parecesse pacífico no contexto em que esta «verdade» se inseria, como seria expectável, foi utilizado pelos crentes que frequentam estas páginas para mais um ataque non sequitur, ou seja, sem uma palavra sequer sobre ética ou moral ou sobre o «absolutismo» de verdades do passado «glorioso» do cristianismo, como ser a vacinação uma interferência inadmissível na vontade divina ou a legitimidade da escravatura, da tortura, da produção de castrati para os coros das igrejas, da morte na fogueira de hereges e blasfemos, etc..

Na realidade, como já escrevi há uns tempos, o progresso na descoberta das «leis absolutas» que regem o homem social é fortemente impedido porque a ética se confunde com a moral e esta, mesmo na sociedade mais laicizada, é ainda fortemente determinada pela religião. E na religião os dogmas são um fim, uma lei, uma verdade absoluta, e não um meio que se deve descartar quando se comprova desnecessário, anacrónico e até contraproducente. E assim a religião inibe o progresso ético da sociedade. Mas esta verdade histórica é desconfortável para os crentes que preferem atirar cegamente ao lado sempre que é levantada…

Neste dia em que a verdade assume outros contornos e quando finalmente tenho tempo para abordar o tema, vou tentar resumir algumas ideias que acho fundamentais sobre a verdade em geral e não apenas no contexto da ética. Nomeadamente as minhas elucubrações sobre o que é a verdade, porque para a atitude crítica ou filosófica, a verdade nasce da decisão e da deliberação de encontrá-la, da consciência da ignorância e do desejo de saber. Nesta procura da verdade, a Filosofia é herdeira de três grandes concepções do tema: a do ver-perceber (aletheia), a do falar-dizer (veritas) e a do crer-confiar (emunah). Destas concepções a veritas tem mais a ver com veracidade (cujo contrário é mentira ou engano) que propriamente com verdade (cujo oposto é erro).

Mas existem outras concepções de verdade, nomeadamente nas ciências exactas, descendentes há muito emancipadas da Filosofia, predomina a verdade pragmática, isto é, a verificabilidade dos resultados. E esta concepção da verdade está muito próxima da aletheia uma vez que esta é, se quisermos, a verdade absoluta, mas cujo conhecimento depende de que esta verdade se manifeste. Este problema não se põe em matemática em que o critério da verdade é dado pela coerência interna ou pela coerência lógica do pensamento matemático. Assim, em matemática a verdade é reconhecida pela validade lógica dos argumentos.

Ou seja, quando falamos em verdade podemos falar a vários níveis. No nível realista para que os nossos críticos crentes desviaram a discussão, a verdade intrínseca das coisas, o conhecimento da essência real e profunda dos seres – que é necessariamente universal e absoluta – a verdade é o acordo entre o pensamento e a realidade, a adequatio rei et intellectus, e para mim, claro, só pode ser estabelecida pragmaticamente. Claro que a verdade pragmática será sempre uma verdade relativa não só no sentido em que é necessário indicar o referencial em que estabelecemos esta verdade mas também porque muitas vezes esta verdade pragmática não é uma verdade ontológica mas sim fenomenológica (explicarei com um exemplo num próximo post o que quero dizer com isto).

A outro nível, de que a matemática é o exemplo perfeito, a verdade é uma verdade validada logicamente (que é diferente de verdade lógica ou adequação da inteligência ao objecto) , ou, mais genericamente, refere-se ao acordo entre o pensamento e a linguagem em que este pensamento é expresso (verdade moral). Neste nível por vezes a verdade é limitada pela linguagem, já que, como afirmava Ludwig Wittgenstein no Tractatus Logico Philosophicus «Os limites da minha linguagem são os limites da minha mente».

No nível idealista ou, talvez, spinoziano, em que coloquei a verdade no post que originou a discussão, a verdade refere-se a ideias no campo da ética que determinam o direito numa sociedade democrática e que são avaliadas verdadeiras ou falsas numa determinada conjuntura. Enunciados, argumentos e ideias éticas que, como nos recorda profusamente Albert Camus, devem evitar «o pior erro», «fazer sofrer», e devem preservar os direitos fundamentais dos homens, nomeadamente, a liberdade de eleger os próprios valores morais e/ou religiosos, e simultaneamente regular efectivamente a convivência nas sociedades.

Como tal, devem resultar de juízos éticos baseados na razão e não em quaisquer pretensas «verdades absolutas» reveladas. E devem assentar num consenso obtido validando logicamente argumentos que resultam em convenções universais sobre o que é verdade ou erro e que, como devem ser respeitadas por todos, não podem significar uma doutrinação das opiniões/valores morais defendidos pela maioria, ou, pior ainda, das opiniões de uma minoria religiosa fundamentalista.

Por outro lado, se analisarmos a evolução das várias concepções da própria verdade estas decorrem não só de mudanças na estrutura e organização das sociedades como também de mudanças na Filosofia. Ou seja, as verdades mudam, a própria concepção da verdade muda, mas não muda a atitude de procura da verdade, isto é, a invariante histórica é a determinação em ultrapassar dogmatismos e concumitantes preconceitos. É igualmente uma invariante histórica a oposição das religiões predominantes a este progresso, ético, filosófico e científico da Humanidade…

21 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Senado restringe manifestações de ódio

Pela primeira vez nos últimos anos um Senado americano, neste caso o da Indiana, aprovou quasi unanimemente (47 votos a favor, 1 contra) uma lei que pretende restringir as manifestações de ódio e intolerância de grupos dos muitos fanáticos cristãos que abundam no país. Infelizmente a legislação aprovada no Senado limita-se a proibir estas manifestações em funerais e não em todo o espaço público.

A lei foi proposta inicialmente pelo senador republicano Brent Steele e pretendia restringir os protestos em funerais militares. De facto, os membros da Igreja Baptista de Westboro, Kansas, fanáticos devotados ao mui cristão objectivo de combater homossexuais, têm perturbado as cerimónias fúnebres de soldados mortos no Iraque (mas não só), com cartazes em que afirmam que os soldados morreram por causa da tolerância (?) americana em relação aos homossexuais.

O grupo já afirmou que se a lei passar na Câmara de Representantes a vai combater, certamente considerando, tal como a Igreja Católica em relação à recente resolução do Parlamento Europeu – que condena as posições de líderes religiosos sobre a homossexualidade, considerada «linguagem inflamatória, odiosa e ameaçadora» – que tal lei é uma afronta à liberdade, isto é intolerância, religiosa.

Nos Estados Unidos, como na Europa, os grupos religiosos ainda não foram permeados pelo conceito de tolerância e, lá como cá, queixam-se da ingerência do Estado na «legítima» (para cristãos) discriminação de pecadores.

18 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Lei sobre suicídio assistido passa no Supremo

O Supremo Tribunal americano manteve uma lei do Oregão que permite que os médicos neste estado ajudem a morrer com dignidade doentes terminais. A lei estadual, Morte com Dignidade, contestada pela administração Bush e levada ao Supremo por John Ashcroft, foi aprovada em referendo no Oregão e permite que pacientes com menos de seis meses de vida, na plena posse das suas faculdades mentais, comprovadas por dois médicos, e que assim o manifestem por escrito e oralmente, possam obter dos respectivos médicos medicação que os ajude a morrer com dignidade.

A votação sobre a manutenção desta lei estadual, uma das últimas em participa Sandra Day O’Connor, teve os votos contra dos três juízes católicos Roberts, Antonin Scalia e Clarence Thomas. O’Connor, que está de saída do Supremo e para cujo lugar decorrem ainda as audiências ao católico Alito, protagonizou durante os seus anos de Supremo um voto de equilíbrio, nomeadamente porque, como afirmou o director executivo da Americans United for Separation of Church and State, o reverendo Barry W. Lynn «Devemos insistir para que o Presidente Bush a substitua por alguém que respeite a liberdade individual. O’Connor era uma conservadora mas via a complexidade das questões igreja-estado e tentava escolher um curso de acção que respeitasse a diversidade religiosa do país. A sua resignação potencialmente abre a porta à maior mudança na linha do Supremo Tribunal da história moderna».

Se Alito passar no Senado os teocratas terão a maioria no Supremo e questões como a revogação da decisão Roe versus Wade (que permite a interrupção voluntária da gravidez), e a discriminação de homossexuais serão certamente os pontos quentes da agenda do Supremo. E não serão certamente tratadas com respeito pelas liberdades individuais nem atentarão à «complexidade das questões igreja-estado».

Aliás por alguma razão são grandes apoiantes de Alito organizações como a Focus on the Family, que recentemente incitou ao boicote dos produtos de grandes empresas americanas como a Microsoft, Boeing, Hewlett Packard e a Nike que assinaram uma carta urgindo a passagem da lei que inclui a orientação sexual na lei anti discriminação ou a Faith and Action, ambas grandes apologistas da imposição a todos dos «valores cristãos» e da «liberdade cristã» o que significa simplesmente que pretendem ver criminalizados ou discriminados todos os que não seguem as «verdades absolutas» cristãs!

17 de Janeiro, 2006 Palmira Silva

Incêndio destrói memorabilia de Hemingway

All thinking men are atheists Ernest Hemingway

Um incêndio destruiu completamente na sexta-feira a estalagem na ilha Bimini, Bahamas, onde estava instalado um museu dedicado a Ernest Hemingway e o bar «The Compleat Angler». O bar foi um dos pontos de paragem do escritor americano durante as épicas pescarias que o inspiraram para a escrita da obra que lhe valeu o Nobel, «O Velho e o Mar».