30 de Janeiro, 2006 Palmira Silva
Crónicas do Cavaleiro da Pérola Redonda
«toda a religião que, em nome de uma ordem espiritual, impõe sobre o corpo um regime de sistemática repressão, tende a produzir personalidades neuróticas» Rubem Alves, teólogo, filósofo e psicanalista
Passada a excitação das presidenciais, que o distraiu da res católica, João César das Neves regressa em força ao mais básico fundamentalismo cristão abordando um tema recorrente na sua opinação de segunda: a homossexualidade. Lendo apenas o título do artigo, «Fundamentalismo e homofobia» poder-se-ia pensar que J.C. das Neves tinha finalmente apreendido o conceito tolerância e que o artigo seria um mea culpa do opinador do Diário de Notícias em relação a opinações anteriores.
Uma vez que o termo «sodomia» remete a um dos mitos relatados no Génesis, a destruição de Sodoma e Gomorra, a condenação da homossexualidade é, na sua génese, uma manifestação de fundamentalismo (que é simplesmente a insistência em levar estritamente à letra os escritos ditos «sagrados»). Só depois de Tomás de Aquino se utilizou outro argumento, que perdura até hoje, a afirmação de que é um pecado contrário à natureza (peccatum contra naturam). Claro que à época de Tomás de Aquino o conceito de «natureza» não era de todo «natural». Aliás, ainda hoje se discute o que é natural e o que é cultural. O auxílio das ciências sociais é fundamental para tratarmos desse tema, pois a antropologia, a sociologia e a psicologia têm mostrado que muitos comportamentos que consideramos «naturais» são na verdade, culturais. De qualquer forma, um pecado, seja «contra a natureza» ou qualquer outro, só o é para os seguidores da religião que os define. Não faz sentido impôr a toda a sociedade não só o conceito de «natureza» bíblico como a criminalização dos «pecados» cristãos!
Claro que este «pequeno» pormenor passa completamente ao lado de J.C. das Neves que compara o fundamentalismo IDiota que assola os Estados Unidos à recente resolução do Parlamento Europeu que pretende pôr termo à discriminação de homossexuais. Na sua introdução condenatória do fundamentalismo integrista norte-americano, o ilustre opinador mostra que está a leste do que se tem passado nos Estados Unidos, porque não é verdade que «o fundamento invocado para essa proposta [o ensino do criacionismo a par do evolucionismo], inclusive em tribunal, costuma ser o conceito de liberdade religiosa». Os IDiotas pretendem exactamente o contrário, que o seu neo-criacionismo não tem nada a ver com religião e é sim uma teoria «científica» válida. Que o não é e que é apenas uma forma disfarçada de introduzir religião nas salas de aula de ciências foi o fundamento da recente decisão do juiz John Jones no mediático julgamento de Kitzmiller.
Ou seja, J. C. das Neves não só baseia a sua opinação em premissas erradas, diria mais trocadas, ou seja, a IDiotia pretende ser ciência e não religião e como tal nunca esteve em causa a liberdade religiosa, bem pelo contrário, enquanto na «Resolução sobre a Homofobia na Europa» se repõe este direito fundamental do Homem. Para além disso, enquanto a IDiotia se refere à res pública esta resolução diz respeito à res privada.
Na sua opinação que, como é habitual, é um tratado de falácias, J.C. das Neves insurge-se contra a violação da liberdade (?) que esta resolução «abstrusa» (sic) constitui, já que uma «pessoa, em liberdade, tem o direito de pensar que a homossexualidade é uma depravação». Eu pensaria ser pacífico que a resolução pretende não limitar as lucubrações privadas de qualquer fundamentalista católico mas sim as suas manifestações públicas de intolerância, nomeadamente via «linguagem inflamatória, odiosa e ameaçadora».
Que tal seja considerado uma afronta à liberdade, isto é intolerância, religiosa ou uma imposição de «dogmas alheios» é algo que me mistifica. Quando, mais de 57 anos após a Assembleia Geral das Nações Unidas ter proclamado a Declaração Universal dos Direitos Humanos, reconhece que a praxis pública europeia não pode ser refém dos preconceitos e dogmas de qualquer religião em relação a comportamentos privados e ao decidir em conformidade, o Parlamento Europeu está apenas cumprir o preconizado na supracitada Declaração.