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Palmira Silva

14 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Um pobre mártir…

Silvio Berlusconi, o mediático primeiro-ministro italiano, grande defensor de óvulos, espermatozóides e da família «tradicional», o candidato dilecto do Vaticano nas próximas eleições de Abril, afirmou-se o «Jesus Cristo» da política italiana, um mártir da res pública.

De facto, uns escassos dias depois de se ter comparado com Napoleão, afirmando que apenas este tinha feito mais pelo respectivo país, num jantar com apoiantes em Ancona, na costa adriática, Berlusconi declarou-se um mártir salvador da pátria mais concretamente «Eu sou o Jesus Cristo da política. Eu sou uma vítima paciente, aguento toda a gente e sacrifico-me por todos».

Esperemos que a colagem caricata de Berlusconi à Igreja católica, com o beneplácito desta, resulte, como afirmou Alfonso Pecoraro Scanio, o líder dos Verdes italianos, em que «A eleição seja o seu Waterloo»…

14 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Uma história dantesca

Detalhe do fresco de Giovanni da Modena (1415) na basílica de San Petronio em Bolonha

Em 2001 este detalhe do fresco de Giovanni da Modena, ou mais provavelmente Giovanni di Pietro Faloppi, foi considerado «blasfemo e obsceno» e a sua remoção imediata foi exigida pela União dos Muçulmanos Italianos em carta dirigida a João Paulo II e a Giacomo Biffi, o arcebispo de Bolonha. Estranhamente nem o Vaticano nem qualquer dignitário católico, que tanto condenaram os cartoons da polémica, nomeadamente o cardeal Achille Silvestrini que afirmou que as sociedades seculares não têm o direito de ofender os sentimentos religiosos de alguém, consideraram a destruição do fresco!

A ofensa que o fresco centenário constitui mereceu de Abdel Aziz El Mataani, professor da mais antiga universidade islâmica, a universidade Al Azhar no Cairo, a promessa «Quem destruir esta imagem será bendito por Deus». Aparentemente alguns grupos ligados à al-Qaeda são da mesma opinião e a catedral só não foi alvo de um atentado bombista porque a polícia italiana desmontou os planos do grupo terrorista que se preparava para o fazer.

Será que a manutenção do «ofensivo» fresco, face à alteração da posição do Vaticano em relação a «ofensas» pictóricas a qualquer religião, está ameaçada? E será que a Divina Comédia, o ofensivo livro de Dante, que tão mal trata Maomé e Ali no seu Inferno e que foi a inspiração para o fresco em questão, vai ser proíbido nas aulas de literatura como também pretende a dita União?

12 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

E entretanto no Irão

Aquando das últimas eleições eleições no Irão que deram a vitória a Mahmud Ahmadinezhad não só foi considerado por observadores internacionais que ocorreram «falhas» nas eleições, como os apoiantes de Rafsanjani e de outros candidatos reformistas afirmaram que estas foram manipuladas, os últimos acusando os Guardas Revolucionários do Irão e a segurança Basij de orquestrarem um conluio de forma a dar a vitória ao ultra-conservador.

Na página do Student Movement Coordination Committee for Democracy in Iran (SMCCDI), um movimento secularista, podemos não só inferir que eventualmente tais acusações têm alguma razão de ser como ler que as manipulações do governo iraniano, contrariamente ao que muitos poderiam pensar considerando as violentas reacções à pseudo-guerra dos cartoons em Teerão a que todos assistimos, não estão a convencer pelo menos uma boa parte dos iranianos.

De facto, o movimento laico informa-nos que afinal as manifestações «espontâneas» de repúdio pelos cartoons de Maomé foram eventos organizados pelo governo para mostrar ao mundo uma suposta indignação massiva dos iranianos pela «ofensa». Aparentemente, apesar dos denodados esforços por parte do governo e das mesquitas dominadas por clérigos ligados ao regime teocrático de Teerão, a «massa» manifestante reduziu-se a uns meros 400 (Teerão tem 12 milhões de habitantes), a maioria dos quais membros das forças para-militares Bassij, as tais que os reformistas afirmam tão providenciais terem sido na eleição de Ahmadinezhad.

Para os secularistas iranianos, o fiasco que constitui a manifestação mostra a impopularidade do regime teocrático a as aspirações seculares dos iranianos. E mostra que embora muitos iranianos rejeitem os cartoons, respeitam a liberdade de expressão de quem os publicou!

De igual forma, somos informados que outra manifestação de repúdio ao regime teocrático ocorreu ontem, dia que em que se celebrava o 27º aniversário da revolução (e o início do regime do ayatollah Khomeini).

O governo esperava trazer milhões de iranianos para as ruas apelando aos seus sentimentos nacionalistas e/ou religiosos. Mas, não obstante as centenas de autocarros que trouxeram milhares de «celebrantes», igualmente «espontâneos», para as ruas de Teerão, onde se queria uma gigantesca moldura humana ao evento, apenas conseguiram entre 70 ou 80 mil manifestantes, constituidos maioritariamente pelo que o SMCCDI designou por manifestantes «profissionais», estudantes e funcionários públicos (obrigados a tal).

O coordenador da SMCCDI, Aryo B. Pirouznia, afirmou ontem numa entrevista ao serviço persa da televisão por satélite «Voice of America» que «A geração mais nova no Irão, que é composta por milhões de indíviduos, há muito que virou as costas ao regime islâmico e anseia por modernidade, secularismo e nacionalismo… Esta afirmação é suportada pela falta de participação popular nas demonstraçõs oficiais de hoje e igualmente pela recusa dos iranianos em participarem naquelas manifestações anti-cartoons violentas».

aqui tinhamos dado conta de manifestações simbólicas contra a ditadura dos mullahs, como a recente exposição no Museu de Arte Contemporânea de Teerão de arte proíbida pelo regime, neste caso 190 quadros da colecção de Farah Pahlavi, a mulher do ex-Xá. A inusitada afluência à exposição e a reacção do público são também indicações que a sociedade iraniana não é tão monolítica como os seus teocratas governantes gostariam de fazer passar. E que são erradas e contraproducentes muitas das reacções ocidentais à pseudo-guerra dos cartoons!

As tentativas de apaziguamento e a cedência às chantagens terroristas de uma minoria fundamentalista são o pior golpe nas aspirações democráticas de muitos iranianos e certamente de muitos outros muçulmanos reféns de regime autocráticos. Como é afirmado pelo SMCCDI, entre as razões que permitem que o anacrónico regime teocrático iraniano se mantenha encontra-se a falta de um empenho real a nível mundial que apoie os iranianos na escolha de um sistema político laico! Como o Ricardo apontou, a polarização real nesta história, lá como cá, é entre laicidade e clericalismo, liberdade de expressão e delito de blasfémia. Temos de deixar claro que quer a laicidade quer a liberdade de expressão não são negociáveis nem sujeitos a qualquer tipo de chantagem!

11 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

A génese e expansão das guerras da religião modernas

Há mais de um ano escrevi que um dos principais sinais históricos que encontramos invariavelmente em épocas de crise é a adesão de pessoas a vertentes (religiosas ou políticas) que se caracterizam por um radicalismo extremo e uma inflacção do sentimento de pertença a um grupo que assuma o papel de protector e detentor da VERDADE ou MORAL absolutas. Um maniqueísmo exacerbado dos nós (os bons) e dos outros (os maus), do Bem contra o Mal.

Hoje os cartagineses são sortidos mas, tal como no século II a.C., há muitos emuladores de Marco Pórcio Catão, censores moralistas que zelam pela moral e bons costumes respectivos e pela punição dos que consideram ideólogos do mal. Tal como Catão, o objectivo dos pregadores é exponenciar o ódio das populações contra esses supostos ideólogos do mal, transformando-o num sentimento nacionalista/de grupo que deixe em segundo plano os problemas sociais, políticos e outros que assolam as respectivas sociedades, prometendo muitas vezes que a eliminação desses ideólogos do mal será simultaneamente a resolução desses problemas.

Não subscrevo a tese do choque civilizacional de Samuel Huntington (que previa há uma década que este seria inevitável no pós guerra fria), mas acho que de facto o maniqueísmo ou lógica bipolar existente antes da queda do muro era um elemento aglutinador que prevenia a eclosão dos conflitos regionais a que agora assistimos e o ressurgimento dos fundamentalismos religiosos, a praga anacrónica do século XXI. Com a população mundial desiludida da política, nos locais onde a tensão social é mais aguda assistimos à substituição dos memes ideológicos pelo memeplexo da religião. Assim, temos assistido nos últimos tempos à eclosão de conflitos religiosos um pouco por todo o Globo, sem nada a ver com o suposto conflito de civilizações, mas em que os intervenientes recorrem ao termo teológico cunhado por Agostinho, o de guerra justa, isto é, aquela que obedece a um desígnio divino ou vinga injúrias (à religião, claro).

O século XXI tem sido assim o século das «guerras justas» religiosas que varrem toda a Terra, algumas das quais para que já alertámos no Diário Ateísta, por exemplo na Tailândia, mais concretamente no sul da Tailândia, Nigéria, Indonésia, na Rússia entre várias religiões, na Tchetchénia e no Afeganistão. E não esqueçamos ainda que também G. W. Bush afirmou estar a cumprir uma missão «divina» quando decidiu invadir o Afeganistão e o Iraque. Assim como foi o reacender dos conflitos religiosos nos Balcãs entre bósnios muçulmanos, sérvios ortodoxos e croatas católicos o rastilho da sangrenta guerra que resultou no desmembrar da Jugoslávia.

Mais recentemente, nas Filipinas, um país em que a esmagadora maioria da população é católica, um massacre de cristãos por um grupo de fundamentalistas muçulmanos foi considerado «um duro golpe para a esperança de paz», especialmente na zona de actuação da Moro Islamic Liberation Front, já que agora «qualquer incidente pode despoletar uma guerra de religiões».

Há menos de uma semana terroristas que se pensa pertencerem ao grupo extremista Abu Sayyaf (Portadores da Espada) assaltaram uma quinta em Patikul, assassinando seis cristãos, incluindo uma bébé de 9 meses. De acordo com um dos sobreviventes os assassinos perguntaram às vítimas qual era a sua religião antes de abrir fogo sobre eles.

Também em Caxemira, alvo de acesas disputas entre a Índia e o Paquistão, o conflito de poder se está a transformar num conflito de religiões. Uma manifestação de muçulmanos enfurecidos pelo que afirmaram ser uma profanação do Corão pelos budistas locais resultou em dez feridos, incluindo cinco polícias, e danos materiais. Os manifestantes, que incendiaram várias casas e carros, exprimiam a sua revolta pelo aparecimento nas ruas de Leh, na região de Ladakh de maioria budista, de várias páginas rasgadas do Corão.

Muitos dos nossos leitores crentes afirmam que as religiões não são culpadas do aproveitamento que delas se faz para justificar a «justeza» de violência sortida. Para mim isso só seria verdade se os responsáveis religiosos deixassem claro aos seus seguidores que a religião é algo do domínio privado que não deve ser misturado com a res (coisa) pública. Se advogassem a estrita separação do Estado/política e da religião. Infelizmente não é isso que acontece em alguma das religiões dominantes, aliás verifica-se exactamente o oposto. Todas elas identificam a laicidade e/ou o «relativismo» concumitante com a ideologia do mal, responsáveis pelos problemas do mundo ou das respectivas sociedades e advogam que estes só podem ser resolvidos com uma estrita adesão aos respectivos ditames. Com os resultados que conhecemos…

9 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Guerra dos cartoons explicada

Desde que se acendeu a guerra dos cartoons que achei curioso o facto de os cartoons da discórdia terem sido publicados no Jyllands-Posten em Setembro, republicados pelo jornal egípcio Al Fager em Outubro, sem grandes manifestações de ofensa até há poucos dias. Esta guerra «atrasada», tal como há uns dias o editor-chefe do referido jornal, Adel Hammouda, referia, surpreendeu-me. E tal como ele achei que subjacente a esta guerra pseudo-religiosa estavam motivos políticos e que a pretensa ofensa que constituiam as inócuas caricaturas era apenas um pretexto que escondia uma motivação sem nada de religioso na origem.

Hoje, o New York Times confirma as minhas suspeitas, descrevendo a génese da indignação «espontânea» que tem varrido violentamente o globo.

A guerra das caricaturas foi orquestrada em Dezembro último quando os líderes das 57 nações muçulmanas, incluindo o presidente do Irão, Mahmoud Ahmadinejad, se reuniram em Meca. De facto, a Organização da Conferência Islâmica (OIC) ou mais concretamente os governos que dela fazem parte viram no irrelevante incidente uma forma de «abafar» os protestos políticos dentro dos próprios países, que não são exactamente modelos de democracia e respeito dos direitos humanos, vindos não só de alas mais liberais das respectivas sociedades como de movimentos islâmicos. Assim, a questão dos cartoons foi acesa por estes governos, especialmente os governos do Irão e da Síria, com uma bombardeamento massivo das populações pelos media locais (estritamente controlados pelo estado) que culminaram nas demonstrações «espontãneas» de «indignação» (e em embaixadas em chamas e igrejas atacadas). Suponho aliás ser a primeira vez em muitos anos que os sírios são permitidos manifestar-se por algo…

Como afirmou Muhammad el-Sayed Said, o director do Centro Ahram de Estudos Políticos e Estratégicos no Cairo «Era algo menor até à conferência islâmica e a OIC ter tomado posição contra».

Sari Hanafi, professor associado na Universidade Americana de Beirute, considera que foi uma oportunidade usada pelos governos árabes para eliminar o atractivo que o conceito de democracia constitui para as respectivas populações, um papão que agitaram avisando que a democracia e as liberdades do Ocidente correspondem a desrespeito ao Islão.

Claro que foi igualmente importante o papel de desinformação, ou antes, de mentira deliberada de Ahmed Akkari, o libanês naturalizado dinamarquês que «produziu» 3 cartoons «extra», estes sim francamente ofensivos, e que convenceu alguns jornalistas egpícios que uma proposta de um partido de extrema direita para banir o Corão devido às suas passagens incitando à violência era mais que um delírio de um partido assumidamente anti-imigração e anti União Europeia (o Dansk Folkeparti ou Danish People’s Party obteve 13% dos votos nas eleições de 2005, uma votação não despicienda mas obviamente não representando a maioria dos dinamarqueses, que pretende que a Dinamarca saia da União Europeia).

Mas o pretexto oferecido pelo empenhado muçulmano «caiu do céu» para os governantes reunidos em Meca conseguirem travar os impulsos democráticos inspirados no Ocidente que ameaçavam os respectivos regimes (muitos dos quais ditaduras). Certamente que se não tivessem sido publicadas as ditas caricaturas veríamos, o mundo árabe certamente, mas eventualmente todo o mundo muçulmano inflamado contra uma qualquer liberdade «licenciosa» ocidental…

9 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Uma religião de paz?

No que as autoridades paquistanesas pensam ser um ataque perpetrado por um bombista suicida morreram pelo menos 8 crentes shiitas (números não oficiais) que celebravam o festival de Ashura na cidade Hangu no norte do Paquistão. De acordo com algumas testemunhas, a multidão que recordava a morte do neto de Maomé, o imam Hussein, na batalha de Karbala (o evento que vincou a separação entre shiitas e sunitas) foi ainda alvo de atiradores desconhecidos.

De igual forma no Iraque as autoridades seguem medidas estritas de segurança para evitar ataques de sunitas aos shiitas que celebram a Ashura. O ano passado e há dois anos morreram, respectivamente, 55 e 170 shiitas numa série de ataques coordenados. Cerca de 10 000 agentes de segurança concentram-se em Karbala, o local onde Hussein foi morto pelos seguidores de Abu Bakr, o sogro de Maomé via a sua jovem (Maomé casou com esta quando ela tinha 6 anos e o profeta 54) mulher Aisha.

Em relação à «guerra dos cartoons», gostaria de recordar que os shiitas não têm a objecção dos sunitas em relação à retratação da figura humana, sendo abundantes as representações quer de Hussein quer do seu pai Ali, o marido da filha de Maomé, Fátima.

Assim não se percebe muito bem a reacção violenta do Irão em relação às caricaturas ou talvez se perceba se considerarmos que ontem em Teerão a embaixada inglesa foi atacada sob o pretexto das caricaturas, que não foram reproduzidas na imprensa britânica, na realidade pela oposição de Londres ao armamento nuclear por parte do Irão. Como dizia um dos manifestantes iranianos ontem «Estamos aqui para protestar o papel de Inglaterra em nos mandar para o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nós temos de defender o nosso direito a tecnologia nuclear».

Entretanto em Kano, um dos estados da Nigéria que adoptou a Sharia em 2000 e onde se verifica um programa agressivo para forçar a lei islâmica (wahhabita) em todos os habitantes, a maioria dos quais é Sufi Qadiriyyai, as bandeiras dinamarquesa e norueguesa foram queimadas com pompa e circunstância no Parlamento local.

O «moderado» sheikh Yousef Al-Qaradhawi, presidente do Conselho Europeu para a Fatwa e Investigação, presidente ainda da Associação Internacional de Estudos Islâmicos (IAMS), e o guia espiritual de muitas organizações islâmicas (incluindo a Irmandade do Islão) exortou os fiéis a demonstrarem ao mundo a sua raiva pela publicação dos cartoons de Maomé. O sermão foi transmitido pela televisão do Qatar em 3 de Fevereiro, um pouco antes dos ataques às embaixadas dinamarquesa e norueguesa em vários locais do mundo islâmico… (excertos do sermão aqui).

O «moderado» sheikh exige ainda que a ONU passe uma resolução que proteja de qualquer crítica ou menção não só os profetas e lugares sagrados do Islão mas também os «mensageiros de Alá». Dado a profusão de sectos (e as guerras sangrentas entre estes) dentro do Islão, pergunto-me quem decide quem devem ser considerados mensageiros de Alá… Serão todos os que assim se auto-proclamam? Como não assisti a manifestações comparáveis de repúdio por parte dos muçulmanos à associação de violência ao Islão, bem pelo contrário, pelos ataques terroristas perpetrados em «nome de Alá» será que Osama bin Laden e afins devem ser assim considerados? Significa isso que este muçulmano «moderado» pretende dar carta branca a todos os fanáticos em nome de Alá?

7 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

A guerra dos cartoons na RTP

Ontem assisti ao programa «Prós e Contras» na RTP1 que debatia a questão que incendeia a opinião pública internacional, os cartoons de Maomé. Contra a publicação dos cartoons estavam Manuel Clemente, Bispo Auxiliar de Lisboa, David Munir, Imã da Mesquita de Lisboa e Ângelo Correia; do lado da liberdade de expressão, Vasco Rato e os cartoonistas António e Luís Afonso. A prestação do lado dos «contras» foi muito fraquita, com excepção da de Ângelo Correia, que tentou analisar a desproporcionada e violenta reacção do mundo muçulmano do ponto de vista histórico e político. Posso não concordar com boa parte do que Ângelo Correia disse, mas devo reconhecer que tentou ser intelectualmente honesto, não fugiu às questões e não balbuciou apenas platitudes non sequitur, como os dois clérigos, em resposta a questões concretas.

A estrela da noite foi sem sombra de dúvida António, o cartoonista do Expresso, que de forma desassombrada e muito directa, pôs os pontos nos i’s em relação a esta pseudo-polémica. E relembrou aos clérigos, que clamavam por um tratamento de excepção para as religiões, que não existem, nas sociedades democráticas, apenas crentes. Os ateus são uma parte integrante da «cidadania» e os ateus têm tanto direito à liberdade de expressão e à indignação quanto os crentes. A censura preconizada (mas nunca directamente admitida) pelos dois clérigos não só viola um dos direitos mais fundamentais para o desenvolvimento ético da humanidade, a liberdade de expressão, como silenciaria efectivamente todos os ateus, que para ambos se deveriam coibir, por suposto «respeito» ao «outro» (em que este «outro» se refere apenas aos que professam outra religião), de manifestar a sua repulsa pela violação dos seus valores humanistas por matérias religiosas com consequências para toda a sociedade e não apenas para os crentes.

António referiu, entre algumas questões que violam a sua consciência, a polémica do aborto e a criminosa oposição da Igreja Católica ao uso de preservativo como prevenção da SIDA, que motivou o famoso cartoon de João Paulo II com um preservativo no nariz, e as questões da falta de liberdade, do terrorismo, da burka e genericamente do tratamento das mulheres em relação ao islamismo. E declarou que pela sua parte vai continuar a criticar tudo o que violar os seus valores democráticos, tenha origem religiosa ou não!

Concordo em absoluto com todas as intervenções de António. Para os religiosos só é falta de respeito qualquer crítica não só às suas mitologias como a concretizações de inspiração «divina» com consequências para todos. O facto de essas acções concretas, como as referidas por António, serem uma ofensa para qualquer humanista, não necessariamente ateu, não só não lhes merece consideração como é considerado igualmente uma ofensa pelos intolerantes clérigos, que não disfarçaram o seu incómodo durante o programa em relação a algumas intervenções acutilantes de António.

Mais do que esclarecer as poucas dúvidas que teria em relação à posição (decalcada da mesma cartilha) de ambos os clérigos em relação à pseudo-polémica dos cartoons, o programa foi inestimável para confirmar que para ambos a religião deve estar acima de qualquer crítica, isto é, que deve existir censura religiosa, e, especialmente, que o «respeito» pelas ideias (religiosas claro, as humanistas não merecem alguma consideração) se deve sobrepôr ao respeito pelos indíviduos e pelos seus direitos fundamentais! Como consequência ressalta que para ambos é implicitamente inadmíssivel a liberdade de expressão dos ateus, que não constam dos «outros» e como tal não merecem respeito ou sequer direitos!

6 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Papa negro resigna

Peter-Hans Kolvenbach, o responsável máximo pelos jesuítas, a maior ordem católica, conhecido como o «Papa Negro» devido à cor das suas vestes e à importância da ordem, será o primeiro Superior Geral da ordem a resignar em 500 anos de História.

De facto, desde a eleição de Bento XVI (a que os jesuítas se opuseram) que o Vaticano é palco de uma «guerra» surda entre as facções mais «liberais» da Igreja católica, ala menos conservadora protagonizada especialmente pelos jesuítas, e as forças mais fundamentalistas, nomeadamente a Opus Dei. A «guerra» incide especialmente no controle das operações do Vaticano para os meios de comunicação, que a Opus Dei quer dominar.

Bento XVI abençoou a resignação, «voluntária» tal como a do padre Thomas Reese, do dignitário jesuita, que ocorrerá em 2008.

5 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Choque de civilizações?


«I cobble together a verse comedy about the customs of the harem, assuming that, as a Spanish writer, I can say what I like about Mohammed without drawing hostile fire. Next thing, some envoy from God knows where turns up and complains that in my play I have offended the Ottoman empire, Persia, a large slice of the Indian peninsula, the whole of Egypt, and the kingdoms of Barca {Ethiopia}, Tripoli, Tunisi, Algeria, and Morocco. And so my play sinks without trace, all to placate a bunch of Muslim princes, not one of whom, as far as I know, can read but who beat the living daylights out of us and say we are ‘Christian dogs.’ Since they can’t stop a man thinking, they take it out on his hide instead…» Pierre Augustin Caron de Beaumarchais, As Bodas de Fígaro*

De Londres a Jakarta passando por Gaza e Islamabad, em suma em todo o mundo islâmico e nos locais onde a comunidade islâmica tem mais força, temos assistido àquele que parece o choque de civilizações preconizado por Samuel Huntington há mais de uma década. Pessoalmente não subscrevo todas as teses de Huntington mas as reacções desproporcionadas do mundo islâmico a um não acontecimento recordaram-me as minhas reflexões aquando da morte de Theo van Gogh. E considero ser um não acontecimento porque numa sociedade democrática em que, ao contrário do que se passa na maioria dos países islâmicos, há pluralismo de opiniões, liberdade de expressão e o estado não controla os meios de comunicação, não faz sentido responsabilizar todo um país pelos actos de uns poucos indíviduos.

Hoje, na Síria, milhares de manifestantes incendiaram as embaixadas da Noruega e da Dinamarca (destruindo o edifício de três andares onde se encontravam situadas as embaixadas da Suécia e do Chile) em Damasco. Em Londres os manifestantes que se deslocaram da mesquita de Regent’s Park para a embaixada da Dinamarca empunhavam cartazes onde se podia ler «Matem os que insultam o profeta» e «A única forma de isto ser resolvido será se os responsáveis forem entregues para serem punidos pela lei islâmica, para que possam ser executados».

O que fizeram os «responsáveis» que tantos milhares exigem punidos com uma pena que nenhum país europeu aplica e que despoletou este «choque de civilizações»? Simplesmente publicaram uns cartoons (inócuos na minha opinião) que representam Maomé e aludem à ameaça real que o fundamentalismo islâmico constitui actualmente! Se, como afirmava o Sheik Munir hoje na Sic, os muçulmanos se sentem ofendidos pelo facto de Maomé ser caricaturado com um turbante em forma de bomba e que tal supostamente implicaria que todos os muçulmanos são terroristas, então convenhamos que as reacções do mundo islâmico não são as mais apropriadas para demonstrar que tal não é verdade!

Pelo contrário, a escalada de violência a que temos assistido nos últimos dias pode ser classificada como puro terrorismo, que é simplesmente o uso da violência ou a ameaça do uso da violência contra civis por razões políticas, religiosas ou ideológicas.

Ceder, nem que seja um mílimetro, ao terrorismo islâmico em qualquer expressão é ceder nas duramente alcançadas conquistas civilizacionais ocidentais, construídas em torno do respeito dos direitos humanos e em que a liberdade de expressão foi e é a pedra basilar. Espero, para bem da civilização, que a proposta das organizações árabes que pretendem que a ONU aprove uma resolução banindo «desrespeito de crenças religiosas» esteja condenada ao fracasso! Ou outra longa noite obscurantista nos envolverá certamente…

Especialmente se considerarmos tudo o que é considerado um insulto ao Islão, desde questionar a legitimidade do apedrejamento até à morte de apóstatas, ursos de peluche e cruzes, igualdade de direitos para as mulheres, comer carne de porco, etc.. Não estou disposta a andar de burka, três passos atrás de um acompanhante masculino e sem poder conduzir o meu carro, simplesmente porque muitos políticos ocidentais estão reféns de um maniqueismo pré-queda do muro tão anacrónico e abstruso quanto as aberrações das leis islâmicas!

As reacções ao não acontecimento das caricaturas de Maomé, para além de caricatas, já que o suposto insulto residiu na associação de violência com o islamismo e de facto a associação foi efectuada não pelos cartoons mas pelos próprios manifestantes, são uma demonstração de totalitarismo, uma ameaça às fundações da nossa sociedade e à própria democracia! Como escreveu Ibn Warraq, o Ocidente não tem nada que pedir desculpas e não deveria pedir desculpas!

A liberdade de expressão é um valor em que assenta a nossa sociedade democrática e livre. Foi a liberdade de expressão que pemitiu a abolição da escravatura, a instituição da democracia, a igualdade de direitos para todos, independentemente de cor da epiderme, credo, sexo ou opção sexual. Não precisamos de «lições» de comportamento de sociedades que não respeitam os mais elementares direitos humanos, onde as mulheres são sub-humanos sem quaisquer direitos, a não ser o apedrejamento por suposto adultério, o mesmo destino dos homossexuais!

*As Bodas de Fígaro, com libreto de Lorenzo da Ponte, foi criada por Wolfgang Amadeus Mozart a partir de uma comédia escrita em 1784 por Pierre Augustin Caron de Beaumarchais, o mesmo autor de «O Barbeiro de Sevilha», escrita em 1775 e transformada em ópera por Rossini, e de «A mãe culpada», escrita em 1792.

2 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

Propaganda eleitoral

Como já há uns largos meses previ, o Vaticano veio em auxílio, (mal) disfarçado, claro, de outro católico exemplar, grande defensor de óvulos e espermatozóides, Silvio Berlusconi, que parte para as eleições de Abril próximo com uma clara desvantagem em relação ao seu opositor, que encabeça a coligação de centro-esquerda, Romano Prodi.

Não obstante dizer que a Igreja Católica não vai interferir nas eleições apoiando directamente, isto é, pelo nome, qualquer dos candidatos, o Cardeal Camillo Ruini, o eclesiástico máximo da Conferência de Bispos Italianos, afirmou que os eleitores italianos «deviam ter em consideração» assuntos como o aborto e o reconhecimento legal de uniões de facto homossexuais, vivamente condenados pelo Papa há uns dias, quando escolherem quem os vai governar nos próximos anos.

Considerando que Romano Prodi, social-democrata que foi presidente da Comissão Europeia, se declarou a favor do reconhecimento dos direitos legais dos casais que vivem em união de facto, hetero ou homossexuais, embora não pretenda permitir o casamento homossexual e que Berlusconi se tem desdobrado em aparições públicas com um discurso que mereceu a observação no Corriere della Sera que, aos 69 anos e casado em segundas núpcias, Berlusconi «aparentemente tornou-se um cristão tradicionalista do dia para a noite», não é muito difícil ver nas palavras do Cardeal um apelo ao voto em Berlusconi!

De facto, usando toda a máquina mediática que controla, Silvio Berlusconi tem reiterado ao vivo e a cores, sob o aplauso do Vaticano, que a sua coligação de centro-direita representa os «valores familiares» e como tal afirmou já o seu repúdio ao reconhecimento das uniões de facto. Para além disso, pretende limitar as importações da pílula Mifepristone, mais conhecida como RU486, num país em que o aborto é legal desde 1978, e prometeu colocar activistas pró-vida nos centros estatais de aconselhamento sobre o aborto. O discurso pré-eleitoral fundamentalista católico de Berlusconi já levou milhares de manifestantes a Roma e Milão reclamando, respectivamente, o reconhecimento legal de todas as uniões de facto e que não seja revogada a lei de 1978, referendada em 1981, que permite o aborto em Itália.

Entretanto as tentativas de conquistar o voto católico de Berlusconi atingiram contornos caricatos no fim de semana passado quando, em directo numa das quasi diárias aparições nas estações de televisão italianas, prometeu honrar o «ideal católico da castidade» abstendo-se de sexo até depois das eleições!

O Corriere della Sera realça no entanto que o voto de castidade temporária de Berlusconi surgiu depois de ele ter respondido «Sim, frequentemente» à pergunta do tele-pregador que o entrevistava se tinha sido fiel às suas mulheres…