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Palmira Silva

12 de Março, 2006 Palmira Silva

Uma campanha politicamente incorrecta

Um grupo de pastores e paroquianos deu início a uma campanha de angariação de fundos para salvar a respectiva igreja, a Martin Luther Memorial Church em Berlim. O que torna desconfortável o aparentemente inócuo e louvável propósito deste grupo de cristãos é ser esta a última igreja nazi em terreno alemão. De facto, esta igreja, com uma imagem de um soldado nazi esculpida no púlpito, lado a lado com o mítico Cristo, representado como um ariano musculado e vitorioso, embaraça as autoridades políticas e eclesiásticas desde o fim da segunda guerra e certamente muitos dignitários prefeririam que a colaboração intíma entre a religião cristã e o regime nazi fosse esquecida.

Felizmente nem todos os cristãos acreditam que varrer da História esta colaboração é a melhor solução. «De alguma forma devemos arranjar uma maneira de preservar o edifício, preservando o seu interior como um aviso mas também complementá-la com um centro de documentação explicando a história complicada da Igreja no Terceiro Reich,» é a opinião de Isolde Boehm, um dos responsáveis da igreja, transmitida ao Times of London.

As suásticas, ilegais desde o fim da guerra, que anteriormente ornavam profusamente as paredes foram removidas e um busto de Hitler na nave substituído por um de Lutero mas a igreja ainda exibe um candeeiro em forma de uma cruz de ferro, o orgão que foi utilizado para colocar os participantes de uma sortida anti-semita em Nuremberga na sua melhor disposição cristã, para além das esculturas de soldados nazis. O exterior da igreja foi desenhado no estilo Bauhaus em 1929, um pouco antes da chegada ao poder dos nazis. O interior da igreja é o problema com iconografia nazi gravada em cada nicho. Como afirma Ilse Klein, uma historiadora que é conselheira da paróquia, «Não existe outra Igreja na Alemanha tão obviamente desenhada ao estilo fascista».

E se não há problemas em preservar e utilizar outros edifícios com traças igualmente denunciadoras, por exemplo a final do Mundial este ano será disputada no estádio olímpico de Berlim, desenhado para os Jogos Olímpicos de 1936, o problema é que muitos cristãos prefeririam não serem lembrados da estreita colaboração do cristianismo com o nazismo. Aliás, como as nossas caixas de comentários indicam, a maioria recusa-se sequer a admitir essa colaboração, preferindo o muito mais confortável e confortante (para eles, claro) revisionismo histórico cristão que inscreve os crimes do nazismo nos hipotéticos crimes do ateísmo.

11 de Março, 2006 Palmira Silva

Fundamentalismo cristão em Inglaterra

Num país em que escolas públicas confessionais são uma realidade não é de estranhar que grassem fundamentalismos sortidos. De facto, a estrita separação da res pública e da religião é condição sine qua non para o combate à praga anacrónica do século XXI, o terrorismo religioso.

De Inglaterra chegam-nos notícias que confirmam não ser apenas o fundamentalismo (e concumitante terrorismo) assente no Corão que importa combater, o fundamentalismo cristão, de forma menos mediática e violenta, é uma ameaça para a paz e para a democracia que não se pode descurar.

Uma dessas notícias é para mim extremamente preocupante e tem a ver com a introdução subreptícia do criacionismo nos curricula de ciências britânicos. Assim, a OCR admitiu que o novo curriculum de um curso de biologia a ser introduzido em Setembro encoraja as escolas a apresentar versões alternativas, incluindo criacionismo e desenho inteligente, à teoria da evolução para, supostamente, indicar aos alunos que há controvérsia «científica» sobre o tema (o que não é verdade, há discussão sobre os mecanismos operantes na evolução mas não há quaisquer controvérsias sobre a evolução de per se).

Como afirmou James Williams, da Universidade de Sussex «Isto abre uma porta legítima para a inclusão do criacionismo ou do desenho inteligente nas aulas de ciências como se fossem teorias legítimas a par do facto da evolução e das teorias [que a explicam]». Continuando, «Acho bem que teorias religiosas [criacionismo e desenho inteligente] sejam consideradas em educação religiosa mas não em ciência, onde considerá-las pode conduzir a uma falsa confirmação do seu estatuto como iguais a teorias científicas».

Outra notícia preocupante tem a ver com a campanha de ódio movida contra uma enfermeira galardoada esta semana com o título «Enfermeira do Ano» pelo ministério da Saúde britânico, pelo seu trabalho em saúde reprodutiva, nomeadamente no auxílio psicológico que presta a mulheres na fase pós-aborto. A organização UK LifeLeague, muito activa igualmente contra a transmissão pela BBC do espectáculo de Jerry Springer, apelou ao uso de tácticas terroristas semelhantes às que usou contra o director da BBC. Assim, publicou um press release divulgando o número de telefone e morada da enfermeira (como já tinha feito em relação a Mark Thompson, director da BBC) e pediu aos fundamentalistas cristãos que a contactem em casa e a façam sentir que «o único prémio que merece é prisão perpétua».

A UK LifeLeague foi fundada em 1999 e, como é declarado na sua página de entrada, «acredita que o debate e argumentação não conseguirão os resultados necessários [proibir o aborto]». Como tal, e na linha totalitária expectável de qualquer religião, considera perfeitamente legítimo impôr os seus dogmas religiosos por outras formas de acção, nomeadamente campanhas de ódio como as que tem promovido. Nos Estados Unidos, onde movimentos como a LifeLeague são em muito maior número e existem há mais anos, alguns paladinos de óvulos e espermatozóides levaram essas campanhas a extremos de violência contra os que acreditam no direito à escolha que incluíram o assassínio de vários médicos e o ataque bombista de clínicas. Tudo em nome da defesa intransigente da vida…

5 de Março, 2006 Palmira Silva

IDiotia e terror no Kansas

Em Novembro escrevi um post que relatava como o presidente do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade do Kansas (KU), Paul Mirecki, farto das IDiotias que assolam o estado, ofereceu uma disciplina com o título «Tópicos especiais em Religião: Desenho Inteligente, Criacionismo e outras Mitologias Religiosas».

A posição de Mirecki, e de muitos mais docentes da Universidade, é, como seria normal, que «O criacionismo é mitologia. O desenho inteligente é mitologia. Não é ciência. Eles tentam fazê-lo passar por ciência. Mas obviamente que não é».

Hoje recebi um mail de uma das minhas amigas americanas que foi à KU dar uma conferência e me pôs ao corrente dos desenvolvimentos da temerária acção de Mirecki.

Os fundamentalistas cristãos do Kansas não gostaram do novo curso proposto, que ofendia as suas crenças religiosas, nem da troca de mails de Mirecki com um grupo de estudantes fundamentalistas cristãos, alguns com uma linguagem um pouco mais arrojada, é um facto, nomeadamente o que referia que o curso seria «uma estalada» na «cara gorda dos fundamentalistas», mas eram mails privados. Tornados públicos por um conservador pelo menos igualmente … sem papas na língua, que costumava referir a na época primeira dama Hillary Clinton como… Hitlary!

Dois fanáticos cristãos resolveram mostrar a sua indignação em relação às ofensas à sua fé e crenças. Mirecki foi espancado em Dezembro, menos de um mês depois do anúncio da nova disciplina!

Uns dias depois, Mirecki foi forçado a demitir-se da sua posição embora a KU, afirme que a decisão, assim como o cancelamento do curso, foi «voluntária». Mirecki no entanto afirmou que «A Universidade penalizou-me e negou-me os meus direitos constiticionais de falar e expressar a minha opinião», afirmando ainda que a sua carreira foi arruinada pelos fundamentalistas cristãos.

Pelo que a minha amiga me contou parece que a Cleveland Indy Media Center só não acertou no ponto de interrogação quando descreveu o ocorrido num artigo intitulado «Terror fascista no Kansas

5 de Março, 2006 Palmira Silva

Um juíz «independente»

Um dos primeiros actos de Samuel Alito, o ultra-conservador católico recentemente confirmado para uma posição (vitalícia) no Supremo Tribunal norte-americano, foi enviar uma nota a James Clayton Dobson, o influente teocrata que fundou e dirige a organização fundamentalista Focus on the Family.

Na carta, Alito agradece a Dobson todo o apoio que este e a organização que dirige lhe prestaram e promete que «durante o tempo que estiver no Supremo Tribunal [isto é, até morrer] terei presente a confiança em mim depositada”.

A organização Americans United for Separation of Church and State, que considera que esta carta é mais uma prova que o mais recente Opus Dei no Supremo está no «bolso» dos teocratas, já protestou o respectivo teor.

«O Juíz Alito deveria seguir a Constituição e não as ordens de Dobson e dos teocratas» afirmou o Rev. Barry W. Lynn, o director executivo da Americans United. «Esta nota sugere fortemente que Alito tem uma agenda de extrema-direita em vez de ser um juíz para todos». «É obscenamente desadequada. Alito parece um candidato político numa volta vitoriosa em vez de um juíz justo e independente».

Infelizmente a confirmação de Alito para o Supremo era indicação evidente das objecções agora expressas. Os Estados Unidos estão em risco de se transformarem numa teocracia cristã

5 de Março, 2006 Palmira Silva

Docência e discriminação

A Universidade de Charleston, na Virginia, uma instituição privada não-religiosa, alterou os termos de um anúncio de recrutamento para um professor de ética, depois do primeiro anúncio que exigia um docente que «deve apresentar uma crença em Deus e apresentar valores éticos e morais com uma perspectiva centrada em Deus» ter sido considerado em violação do artigo VII do Civil Rights Act.

Ian Ayres, da Yale University Law School e perito em direitos civis, afirmou na terça-feira, um dia depois do dito anúncio ter aparecido, que o anúncio era discriminatório em termos de religião e como tal uma violação dos direitos civis de ateus, agnósticos e crentes em religiões ateístas (como o budismo), opinião corroborada por Erwin Chemerinsky, um professor de direito na Duke University, que afirma que a nova redacção de angariação de pessoal docente é mais segura em termos legais.

Claro que a necessidade de não discriminação com base na religião se aplica apenas a instituições não religiosas. As Universidades confessionais podem discriminar à vontade desde que as «regras» para a discriminação religiosa sejam públicas. E estas regras não implicam apenas que ateus e agnósticos sejam personas non gratas no campus

Por exemplo, no início do ano o Wheaton College em Illinois despediu um professor de Filosofia, Joshua Hochschild, depois de este se ter convertido ao catolicismo.

Nesta Universidade os docentes são obrigados a assinar uma declaração de fé que, de acordo com a «Missão» da instituição, é um sumário da doutrina bíblica em acordo com o cristianismo evangélico e enumera as crenças que todos os funcionários devem ter: o Antigo e Novo testamentos «são completamente verdadeiros e de autoridade suprema e final», o nascimento livre de pecado original de Jesus (a virgindade de Maria, não o dogma da Imaculada Concepção, um dogma católico) é inquestionável assim como a existência de Satanás, a criação por Deus de Adão e Eva e a dentadinha na maçã na base do pecado original e da «Queda», etc..

O despedimento de Hochschild, que se declarou disposto a seguir esta declaração de fé, baseou-se no facto de a sua conversão violar a crença de que apenas as escrituras ( e não a exegese destas debitada pelo Papa e pelo Vaticano, o cerne do catolicismo) definem os objectivos de Deus para a humanidade.

Hochschild dá agora aulas na Mount St. Mary’s University, uma Universidade católica em Maryland, onde a exegese de Roma é a norma a ser seguida…

De igual forma a Oklahoma Christian University requer que os seus empregados sigam uma declaração de fé que abrange não apenas crenças mas também condutas. Assim, docentes e não docentes devem usar não exactamente burkas mas quase e não podem ter sexo fora do casamento.

Os seus funcionários foram ainda notificados no início do ano que a Universidade pretende alterar a sua política de forma a poder ainda despedir quem se divorcie ou separe sem intenção de reconciliação…

4 de Março, 2006 Palmira Silva

Blair, Bush, Deus e o Iraque

O que têm em comum Tony Blair e George W. Bush? São ambos devotos cristãos renascidos, movidos para a vida política pela sua fé e que afirmam terem sido inspirados e apoiados por Deus na decisão pela invasão ilegal do Iraque.

De facto, já sabíamos que G. W. Bush justificou a guerra no Iraque por obediência a ordens divinas, expressas de viva voz, que lhe incumbiram a guerra ao «eixo do mal»: «Sou conduzido por uma missão de Deus. Deus disse-me ‘George vai e luta contra estes terroristas no Afeganistão’. E eu fui. E então Deus disse-me ‘George, vai e acaba com a tirania no Iraque’. E eu fui.»

Tony Blair foi mais discreto em relação à inspiração divina da sua decisão, por aconselhamento dos seus assessores, que o persuadiram, por exemplo, a não terminar a sua alocução ao país no seguimento da invasão do Iraque, em 20 de Março de 2003, com «Deus vos abençoe». Esses assessores, que Blair classificou de «um bando de ateístas», convenceram-no que não era uma boa ideia invocar Deus porque «estaria falando para muita gente que não quer padres a enfiarem-lhe coisas pela garganta abaixo». Mas afirmou ao então editor do The Times, Peter Stothard, em 2 de Abril de 2003 – o dia em que tropas norte-americanas mataram sete mulheres e crianças num checkpoint – que estava pronto para responder a Deus por «aqueles que morreram ou foram horrivelmente mutilados em consequência das minhas decisões».

Mas hoje no programa da TV1 com Michael Parkinson (partilhado com Andrea Bocelli, Christina Aguilera e Kevin Spacey) Blair confessou que essa decisão, como a maioria das suas decisões políticas, foi inspirada pela sua fé cristã.

Durante o programa, Blair confirmou ainda uma hipótese avançada por um dos seus biógrafos, de que foi levado para a política quando, durante a sua frequência da Universidade de Oxford, redescobriu a religião – cristã, claro, com algumas suspeitas de que Blair se tenha convertido ao catolicismo da sua esposa Cherie, o que talvez explique porque nomeou uma Opus Dei ministra da Educação.

Aparentemente nem os partidos da oposição nem os familiares dos soldados britânicos ficaram impressionados com a manifestação de fé do primeiro-ministro britânico

4 de Março, 2006 Palmira Silva

Linda Smith: Deus, a maior piada

Morreu Linda Smith, uma das mais fabulosas comediantes britânicas, com um domínio extraordinário da língua inglesa e um humor espontâneo e inteligente, com que deliciava os seus ouvintes da BBC4 e tele espectadores dos vários programas que protagonizava.

Depois de duas décadas a partilhar com a sua audiência uma visão satírica da actualidade, não é de surpreender que nos seus últimos dias planeasse a expressão pública dos seus valores humanistas e ateístas de forma condigna. Assim, o adeus a Linda Smith será efectuado num funeral humanista.

Um serviço memorial será efectuado no dia seguinte ao funeral no teatro East London, e também para a semana realizar-se-à no Theatre Royal em Stratford, uma homenagem a Linda por colegas comediantes, de certa forma cumprindo uma aspiração da comediante, não concretizada em vida, a realização de um espectáculo que reunisse «pessoas que não fossem necessariamente a audiência humanista normal».

Esperemos que seja realizado em breve, e não apenas no Reino Unido, outro dos seus desejos, a separação efectiva da religião da esfera pública em geral e o fim do financiamento público de escolas confessionais em particular. Numa sociedade em que crescentemente a noção de Deus se revela se não absurda pelo menos irrelevante, como o é a britânica, não faz sentido a quantidade de dinheiro público que se desperdiça em escolas confessionais prosélitas, que não só promovem a segregação da sociedade desde tenra idade, como são elitistas no mau sentido, ou seja, recusam a entrada a crianças problemáticas!

28 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

A religião e o Holocausto: II (reloaded)

Freiras marchando com soldados Ustasa

«Os descendentes daqueles que odiaram Jesus, que o condenaram à morte, que o crucificaram e imediatamente perseguiram os seus discípulos, são culpados de excessos muito maiores que os dos seus antecessores… Satã ajudou a inventar o socialismo e o comunismo… O movimento para libertar o mundo dos judeus é um movimento de renascimento da dignidade humana. O Todo Poderoso e omnisciente Deus está por trás deste movimento»
Padre Franjo Kralik «Porque são perseguidos os judeus, » artigo na Acção Católica croata, Maio de 1941.

«Deus, que dirige o destino das nações e controla o coração dos reis, deu-nos Ante Pavelic e inspirou o líder de um povo amigo e aliado, Adolf Hitler, para usar as suas tropas vitoriosas para dispersar os nossos opressores. Glória a Deus, a nossa gratidão a Adolf Hitler e lealdade ao nosso Poglavnik [fuhrer], Ante Pavelic.» Carta Pastoral de 1941 do Arcebispo de Zagreb Aloysius Stepinac, beatificado por João Paulo II em 1998.

Depois das ondas de indignação despertadas pelo meu post sobre o envolvimento das Igrejas protestantes com o regime nazi, reconhecido recentemente por estas, acho que se torna indispensável reiterar que estes posts servem como aviso para a necessidade absoluta da laicidade do Estado e relembrar quão fácil é usar a religião para os mais ignóbeis fins. Como podemos testemunhar no século XXI.

O envolvimento do Vaticano com os nazis e seus regimes satélites não nega o facto de que muitos católicos, padres, freiras ou simples leigos, combateram heroicamente os nazis e foram solidários com os judeus e outros perseguidos. Mas é inegável que o silêncio ensurdecedor das altas cúpulas do Vaticano, de Pio XI e especialmente de Pio XII, o Papa nazi para muitos, incomodou e incomoda muitos crentes. Que tentam ver nesse silêncio uma expressão de diplomacia, que afirmam que se Pio XII tivesse falado abertamente contra os nazis o horror do Holocausto teria atingido dimensões ainda maiores.

Pessoalmente tenho dificuldade em acreditar nessa explicação que não só ignora os factos que apresento no post seguinte como também é contrariada pela actuação do Vaticano noutros conflitos da época. Nomeadamente essa contenção não foi seguida pelo Papa Pio XI, que em 1936 exorta os católicos espanhóis a lutarem lado a lado com Franco na «difícil e perigosa tarefa de defender e restaurar os direitos e a honra de Deus e da Religião».

A Igreja de Espanha declarou-se imediata e entusiasticamente do lado de Franco, nomeadamente através da pastoral «Las dos ciudades» do bispo de Salamanca, Enrique Pla y Deniel (nomeado cardeal por Pio XII em 1946, sem dúvida em reconhecimento pelos bons serviços prestados), datada de Setembro de 1936. E não podemos esquecer que em Julho de 1936, tinha começado uma rebelião contra o governo democraticamente eleito da Frente Popular.

Uma rebelião, que se transformou na Guerra Civil Espanhola, tornada possível em grande parte pelo apoio do Vaticano, de Mussolini e de Hitler, tendo este último enviado tropas em apoio de Franco. Em Abril de 1937, os aviões alemães da Legião Condor bombardeiam e destroem pela primeira vez na história uma cidade a partir do ar. Foi a cidade de Guernica, na província espanhola do País Basco, imortalizada por Picasso. Para recordar a estupidez de uma guerra que causou um milhão de vítimas e o exílio de centenas de milhares de espanhóis.

Essa desculpa é ainda negada pela atitude de muitos responsáveis católicos em países satélites do regime de Hitler. Mal as forças alemãs marcharam sobre Viena em Março de 1938 o Cardeal Theodore Innitzer, arcebispo de Viena, entrou em contacto com Hitler. Três dias depois envia instruções aos seus subordinados: «Os crentes e aqueles que cuidam das suas almas, devem submeter-se incondicionalmente ao Führer e ao grande estado germânico. A batalha histórica contra a ilusão criminosa do bolchevismo e para a segurança da Alemanha, por trabalho e pão, para o poder e honra do Reich e pela unidade da nação germânica, têm manifestamente a benção da Divina Providência».

Duas semanas depois o episcopado austríaco emite um comunicado de apoio ao plebiscito sobre a incorporação da Aústria no III Reich (que teve o apoio de 99,73% dos votantes) em que se pode ler «No dia do plebiscito é claramente o nosso dever nacional, como alemães, declararmo-nos em favor do Reich germânico, e esperamos igualmente que todos os crentes cristãos percebam correctamente o seu dever para com a nação».

Em Março de 1939, a Alemanha invade as regiões checas. A Eslováquia forma então um país separado, sob a tutela alemã e com um regime pró-nazi, chefiado pelo católico monsenhor Josef Tiso, que foi executado em 1947 pelos crimes cometidos, indefectível até ao fim de Hitler.

Ante Pavelic, lider católico dos Ustase, tornou-se lider (poglavnik) do Estado Independente da Croácia depois de Hitler ter invadido a Jugoslávia em 1941. Pavelic pretendia exterminar um terço dos sérvios (ortodoxos), expulsar outro terço e converter ao catolicismo os restantes. Tudo sob o ar benévolo do Vaticano, que desculpava os massacres cometidos como sendo apenas «problemas de um novo regime» («teething troubles of a new regime» foi a expressão usada pelo secretário de estado do Vaticano, Monsenhor Domenico Tardini). Apenas quando a vitória aliada era um facto consumado o Vaticano denunciou o genocídio levado a cabo em boa parte por membros do clero católico. E Ante Pavelic nunca enfrentou um tribunal de guerra, sendo-lhe oferecido santuário pelo Vaticano no mosteiro de San Girolamo, indo depois para a Argentina onde foi conselheiro de segurança de Juan Peron, até uma tentativa de assassínio o fazer fugir para a Espanha de Franco onde morreu em 1959. A cumplicidade do Vaticano na fuga de Pavelic, com um espólio de guerra considerável, está a ser alvo de uma acção legal que pretende a devolução do dinheiro do tesouro da Croácia transferido ilicitamente para o banco do Vaticano.

Sobre as atrocidades cometidas pelo regime católico Ustasa ou Ustasha, o massacre de 600 000 sérvios, 30 000 judeus, e 26 000 ciganos, os livros indicados são elucidativos, o último escrito por um sobrevivente do campo de concentração de Jasenovac, dirigido até 1943 pelo frade franciscano Miroslav Filipovic-Majstorovic.

E não esqueçamos que em Outubro de 1941, enquanto os exércitos nazis ultimavam a invasão de Moscovo, Pio XII pedia aos católicos para orarem pela rápida realização da promessa da Senhora de Fátima de «conversão da Rússia». No ano seguinte, no dia 31 de Outubro de 1942, após Hitler ter declarado que a Rússia Comunista tinha sido «definitivamente» derrotada, Pio XII, numa mensagem de Jubileu, cumpriu a primeira das exigências daquela «Senhora», «consagrando o mundo inteiro ao seu Imaculado Coração».

«Convert or Die: Catholic Persecution in Yugoslavia During World War II» Edmond Paris
«The Yugoslav Auschwitz and the Vatican» Vladimir Dedijer
«Witness to Jasenovac’s Hell» Ilija Ivanovic

28 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

A religião e o Holocausto: I (reloaded)

Hitler com o Arcebispo Cesare Orsenigo, o núncio papal, em Berlim, 1935

Em 20 de Abril de 1939, o arcebispo Orsenigo celebrou o aniversário de Hitler. A celebração, iniciada por Eugenio Pacelli (depois Pio II) tornou-se uma tradição. Em 20 de Abril todos os anos o cardeal Bertram enviava «as mais calorosas congratulações ao Fuhrer em nome dos bispos e das dioceses alemãs».

«O Governo, decidido a empreender a purificação moral e política da nossa vida pública, está a criar e a assegurar as condições necessárias para uma renovação realmente profunda da vida religiosa (…). O governo nacional considera as duas confissões cristãs como os factores de maior peso na manutenção da nossa nacionalidade. Respeitará os acordos existentes entre elas e os estados federais. Os seus direitos não serão infringidos (…).

O Governo do Reich, que considera o cristianismo a fundação inabalável da moral e do código moral da nação, considera do maior valor as relações amigáveis com a Santa Sé, e está empenhado em as desenvolver…»
Adolf Hitler, discurso no Reichstag em 23 Março de 1933.

Um post do Carlos criou veementes protestos, nomeadamente a acusação de mistura de alhos com bugalhos, ou seja, a mistura da religião católica com o horror do Holocausto. Na realidade acho que o post do Carlos nos recordou quão fácil é usar a religião para os mais ignóbeis fins. E é um alerta para que os eventos que tão tristemente relembramos hoje não se venham a repetir. A intolerância disfarçada com as roupagens da fé não deixa de ser intolerância mas é certamente mais «aceitável» para os crentes. Porque acima da razão e da crítica deve estar a obediência a Deus e aos seus representantes na Terra, os exegetas que interpretam à sua conveniência os textos ditos «sagrados».

As causas da II Guerra são, como é óbvio, complexas e diversas mas não devemos ignorar o papel desastroso que a religião teve nos acontecimentos que culminaram no Holocausto. O ódio de Hitler pelos judeus foi incutido pela sua religião, a visão exegética da religião católica dominante, e reforçado pela cultura germânica da época. A sua obsessão pela exterminação dos judeus, o «eixo do mal» para Hitler, era a sua forma de realizar o trabalho de Deus. Muitos altos dignitários das igrejas cristãs viam o trabalho de Hitler, não só na eliminação dos judeus mas também no combate ao comunismo soviético, como divinamente inspirado. Os nazis apresentavam-se como mais que um partido político, como um movimento que pretendia abranger todos os aspectos da vida quotidiana, em que a religião tinha um papel preponderante. O próprio Hitler usa a sua fé católica como inspiração para os seus inúmeros discursos, para o «Mein Kampf» de triste memória e como justificação para todo o mal que cometeu.

O Holocausto foi aceite sem grande contestação pelo povo alemão porque foi precedido por uma intoxicação da opinião pública contra os judeus por parte não só da propaganda nazi, como das igrejas protestantes, e por partidos católicos na Áustria e na Alemanha. Com o beneplácito da Igreja de Roma, como veremos no post seguinte.

A laicidade na Alemanha nunca foi sequer considerada antes da segunda guerra mundial. Por exemplo, os jovens que se formavam nas Escolas Militares alemãs do final do século XIX juravam obediência a Deus e ao Kaiser. Aliás é essa promiscuidade, a aliança entre a Igreja – Estado na Alemanha que inspira Nietzsche para o seu livro «O Anticristo». Mas um factor decisivo foi a celebração, em 1917, do quarto centenário das Teses de Martinho Lutero. O evento, infelizmente, tornou-se um veículo de idolatria de Lutero como um herói nacional, encarnando o espírito germânico. O anti-semitismo manifestado por Lutero foi assim facilmente utilizado na cooptação da Igreja Protestante como instrumento do Estado nazi.

Em 1920, o Partido dos Trabalhadores Alemães, precursor do Partido Nacional Socialista, adoptou um manifesto de 25 pontos, obviamente anti-semita, que limitava a liberdade religiosa, permitindo-a apenas na medida em que não ferisse os sentimentos raciais alemães, adoptando o que foi chamado de «Cristianismo Positivista».

Em 1928 surgia o movimento do Cristianismo Germânico, associado às Igrejas Protestantes da Alemanha, oficializado posteriormente em 1932. O líder do movimento era o Pastor Ludwig Muller, o chefe da Gestapo a partir de 1939, investido bispo da Igreja do Reich em 1933.

Em Julho de 1933, o Cristianismo Germânico ganhou as eleições nas igrejas protestantes com 70% dos votos e elaborou uma proposta de constituição para uma nova Igreja do Reich, muito desejada por Hitler, formada por todas as 28 igrejas regionais protestantes, reconhecida oficialmente pelo Reichstag em 14 de Julho. Da facção perdedora, o Evangelho e a Igreja, emergiram os religiosos que se opuseram a Hitler, que são agora usados como confirmação da oposição das Igrejas a Hitler, quando na realidade eram apenas uma honrosa minoria.

PS: Post originalmente publicado em Janeiro do ano passado e republicado dados os protestos a outro post do Carlos.

27 de Fevereiro, 2006 Palmira Silva

O Vaticano e o Islão – II

Que Ratzinger advoga implicitamente um retorno aos «gloriosos» tempos medievais em que Roma dominava todos os aspectos da vida europeia é absolutamente claro no seu livro, «Sem raízes» (Without Roots), escrito com Marcello Pera, presidente do Senado italiano e membro do Forza Italia de Silvio Berlusconi, em que nos é «explicado» como o secularismo, isto é a laicidade, e o multiculturalismo estão a matar a Europa e como apenas o regresso ao fundamentalismo cristão pode salvar a Europa.

Num livro que explora os medos da actualidade europeia, Ratzinger afirma que a laicidade e consequente recusa da herança cristã (isto é, ser o Vaticano a reger a Europa) deixa a Europa incapaz de responder à ameaça islâmica. Porque a resposta à ameaça islâmica é mostrar que o cristianismo é melhor que o islamismo. A incapacidade de resistir a um Islão, que segundo o livro declarou e conduz uma guerra ao Ocidente, é ditada pela abominável laicidade que impede os europeus de assumirem e afirmarem a superioridade do cristianismo!

Entre os pontos abordados no livro, que ainda não li na totalidade, há alguns que merecem destaque. Nomeadamente

-Como a falta de valores cristãos pela Europa e a sua falta de identidade explica porquê tantos europeus se opuseram à segunda guerra no Iraque e à iniciativa «democrática» de George W. Bush no Médio Oriente;

-E porquê os católicos têm de admitir que o diálogo inter-religiões promovido pelo concílio Vaticano II falhou (e deve ser abandonado).

Assim a ICAR deixou de se rever na Nostra Aetate, que exortava «os seus filhos a que, com prudência e caridade, pelo diálogo e colaboração com os sequazes doutras religiões, dando testemunho da vida e fé cristãs, reconheçam, conservem e promovam os bens espirituais e morais e os valores sócio culturais que entre eles se encontram» e na Dignitatis Humanae, que reconhecia o direito à liberdade de religião. Como seria expectável da eleição do autor do Dominus Iesus.

A mudança do discurso ecuménico do Concílio Vaticano II, mais um indício da negação crescente deste, é facilmente confirmada nas recentes emanações do Vaticano em relação à guerra dos cartoons. De facto, depois de criticar a publicação dos cartoons aproveitando o incidente para exigir «respeito» pelas religiões, mais concretamente nas palavras de Bento XVI, «É necessário e urgente que as religiões e os seus símbolos sejam respeitados e que os crentes não sejam alvo de provocações que firam a sua iniciativa e os seus sentimentos religiosos», o Vaticano adverte agora que se o Islão exige respeito pela sua religião então tem de respeitar as restantes.

«Se nós dizemos aos nossos que não têm direito a ofender, temos de dizer aos outros que não têm o direito de nos destruir» declarou em Roma o Cardeal Angelo Sodano, o secretário de estado do Vaticano.

«Nós devemos frisar sempre a nossa exigência de reciprocidade» reforçou o ministro dos Negócios Estrangeiros o arcebispo Archbishop Giovanni Lajolo ao Corriere della Sera, em uníssono com Bento XVI que na sua recente conversa com o embaixador de Marrocos frisou que a paz só pode ser assegurada pelo «respeito pelas convicções religiosas e práticos dos outros, de forma recíproca em todas as sociedades».

Atentando à declaração do Cairo dos direitos humanos no Islão, mais concretamente ao seu artigo 10:

Artigo 10
O Islão é a religião da natureza não conspurcada. É proíbido exercer qualquer forma de compulsão no homem ou explorar a sua pobreza ou ignorância para o converter a outra religião ou ao ateísmo

parece-me complicado que a reciprocidade exigida pelo Vaticano se consubstancie no que pareceria linear das palavras dos dignitários máximos do Vaticano.

A linha de acção proposta pelo Vaticano é mais explícita se atentarmos ao que dizem os dignitários intermédios, nomeadamente às palavras do bispo Rino Fisichella, reitor da Pontifical Lateran University, uma das Universidades que treinam padres de todo o mundo, «Devemos pressionar as organizações internacionais para que as sociedades e estados de maioria muçulmana enfrentem as suas responsabilidades».

Diria que as palavras do monsenhor Velasio De Paolis, secretário do Supremo Tribunal do Vaticano, nos esclarecem melhor sobre o que significa este enfrentar de responsabilidades:

«Já chega deste oferecer da outra face! É nosso dever defendermo-nos».

A mesma reacção da Associação Cristã da Nigéria (CAN), bem expressas pelo seu dignitário máximo, o arcebispo Peter Akinola, «Podemos nesta altura recordar aos nossos irmãos muçulmanos que eles não detêm o monopólio da violência nesta nação». Como se viu