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Palmira Silva

19 de Março, 2006 Palmira Silva

O Império teocrata nos media americanos

Marvin Olasky, editor chefe do evangélico World Magazine e autor do livro «Prodigal Press: The Anti-Christian Bias of the American News Media» que argumenta que os media americanos perseguem preferencialmente figuras públicas cristãs (quiçá devido aos dislates que debitam abundantemente…) é o paradigma que elucida como os teocratas americanos conseguiram dar a volta à opinião pública neste país, especialmente na América profunda, e conseguiram um poder que ameaça, se não for travado, transformar os Estados Unidos numa ditadura cristã, como avisa a Sandra Day O’Connor, a magistrada do Supremo Tribunal que se retirou por razões de saúde.

Olasky preconiza para todos os media americanos um novo modelo de reportar notícias, a «objectividade bíblica». Segundo Olasky o credo da objectividade jornalística do século XX foi quebrado por «limitações filosóficas e práticas» e advoga que os jornalistas passem a ver e a reportar com o filtro da Bíblia «uma vez que Deus sabe a verdadeira natureza das coisas e nós não». Olasky, que cunhou o oxímoro «compassionate conservative», vem tentando exactamente impôr uma imprensa biblicamente inspirada e dirigida há cerca de 20 anos e vê naquilo a que chama o efeito da internet uma oportunidade para mostrar que os jornalistas não devem ser neutros e objectivos no sentido habitual do termo (apresentando diferentes perspectivas na análise das notícias) mas sim «biblicamente objectivos», ou seja, apresentarem apenas a visão «cristã» do mundo.

De facto, a queixa de que os media americanos são hostis ao cristianismo é recorrente por parte dos fundamentalistas cristãos que, lá como em todo o mundo, não suportam que se apresente pontos discordantes dos seus e abominam a liberdade de opinião e expressão, e sabem que a vitimização é uma arma que sempre deu bons resultados no passado. Assim, um dos temas da conferência «Guerra aos Cristãos», a ser realizada em Washington nos próximos dias 27 e 28, é exactamente «The News Media: Megaphone For Anti-Faith Values» (os meios noticiosos: um megafone para valores anti-fé).

Na organização deste evento está uma associação tenebrosa, a Vision America, de que um dos líderes foi quasi nomeado por G. W. Bush para dirigir o National Labor Relations Board (NLRB). E associação tenebrosa porque, entre outras mui cristãs barbaridades, advoga pena de morte para abortistas, homossexuais e adúlteros. E que, como Bento XVI, considera que a democracia «é o primeiro passo para o fascismo» uma vez que em democracia não se seguem as leis «divinas» mas sim as leis dos homens!

Tal foi recentemente reiterado (e elogiado pelo apresentador) aos microfones do Today’s Issues, um programa da American Family Radio, uma rede de 200 estações de rádio da organização fundamentalista American Family Association (AFA). O presidente da Vision America, Gary DeMar, aproveitou a oportunidade para comiserar com o apresentador sobre o tema do programa «o assalto a Deus na nossa cultura popular», culpando os media de transmitirem programas «anti-cristãos». Nomeadamente denunciando uma série da NBC que os fundamentalistas conseguiram cancelar, «The book of Daniel» que, horror dos horrores, retratava a vida de um pastor evangélico que conversava com Jesus sobre os seus problemas do quotidiano, que incluiam uma filha que vendia marijuana e um filho homossexual.

Na realidade, o sucesso dos fundamentalistas cristãos no envenenamento da opinião pública deve-se exactamente ao facto de que estes dominam os media nos Estados Unidos. Se não ainda em audiência, pelo menos nas costas Leste e Oeste, para já no número de estações que integram a National Religious Broadcasters, NRB. A história do crescente domínio cristãos nas ondas hertzianas é descrita no número de Maio/Junho de 2005, bem elucidativamente denominado «The Rise of Faith Based News», do Columbia Journalism Review, especialmente no artigo «Stations of the Cross».

A influência destas estações «cristãs» pode ser bem avaliada pelo facto de que um dos alvos mais frequentes de críticas por parte destas nos últimos tempos é a «tirania judicial» que sobrepõe a defesa da Constituição à da Bíblia. E, como adverte Sandra O’Connor, a independência dos juízes (e consequentemente a liberdade de todos os americanos) está sob ataque. Para além de que as ameaças de morte a juízes têm igualmente aumentado nos últimos tempos. E algumas foram concretizadas como o assassínio de um juíz da Georgia no tribunal e da família de uma juíza federal no Illinois …

Paul Crouch, o teocrata dono da Trinity Broadcasting Network (TBN) que possuía 13 estações de televisão em meados dos anos oitenta (em 1999 detinha 406 estações de TV nos Estados Unidos, 346 no resto do mundo, alimentava 4 886 sistemas cabo, 10 milhões de antenas de satélite e dispunha de 2.5 milhões de watts de poder radiofónico) nunca escondeu qual o objectivo que o move: controlar «a programação mundial durante o milénio». O milénio pode ser uma palermice « profetizada» que prevê 1000 anos de paz em que supostamente Jesus e os fundamentalistas cristãos dominarão o mundo, mas retirando a parte da paz (incompatível com fundamentalismos) e do mítico fundador da seita, pelo menos a nível dos media, o domínio dos fundamentalistas cristãos é uma realidade que não podemos ignorar!

18 de Março, 2006 Palmira Silva

Estados Cristãos Unidos da América?


Já tinha referido Sam Brownback, o republicano que os teocratas querem ver na presidência dos Estados Unidos em 2008 e um dos autores do «Acto de Restauração» – que limita o âmbito das acções que podem ser apreciadas pelo Supremo Tribunal, mais especificamente, faz com que não sejam passíveis de recurso decisões feitas por um agente judicial que reconheça Deus como a fonte da lei, liberdade ou governo – que pretende, no caso de ser eleito, implementar uma concepção de Estado em tudo análoga à defendida por Ratzinger na sua primeira Encíclica.

Na sua senda cristã de substituir a política pela fé, Brownback quer agora aumentar de um factor de dez as multas por indecências em programas televisivos como a exibição acidental do seio de Janet Jackson no SuperBowl de 2004. Assim, Brownback, com o aplauso de organizações fundamentalistas cristãs como a American Family Association e o Family Research Council pediu ao Congresso norte-americano que aprove o seu Broadcast Decency Enforcement Act.

Mas a cristianização crescente da política norte-americana não é suficiente para os teocratas americanos que avisaram ontem o Partido Republicano (GOP) que vão ter de se esforçar mais na transformação dos Estados Unidos nos Estados Cristãos Unidos a riscos de serem penalizados nas eleições intercalares deste ano.

Esgrimindo o papel decisivo dos fundamentalistas cristãos nas duas eleições de G. W. Bush e na eleição de uma maioria republicana no Senado e Câmara de Representantes (que conjuntamente constituem o Congresso) os teocratas cristãos avisaram os republicanos que «têm de fazer mais» para manter a sua base de apoio cristã.

Aparentemente não é suficiente que apenas 11 estados tenham banido os casamentos homossexuais, é necessário alargar a proibição todos os estados, via uma decisão federal.

Assim como não é suficiente a punição dos promíscuos com a revogação da venda livre da contracepção de emergência, a chamada pílula do dia seguinte. É necessário não apenas que todos os estados aprovem leis que permitam a recusa de venda de contraceptivos com base em «objecção de consciência» mas que sigam as pisadas do Missouri recusando apoio financeiro para contracepção a mulheres de poucos recursos finaceiros. Idealmente que a contracepção seja proibida nos Estados Unidos!

E, claro, é necessário que todos os estados emulem o South Dakota e proibam o famigerado aborto em todas as circunstâncias, excepto as previstas na «Sodomized Religious Virgin Exception» e para salvar in extremis a vida da gestante.

Para além disso, apenas o Missouri e o Kansas, terra dos cristãos sem medo que aprendem o bom (neo)criacionismo cristão nas aulas de biologia, perceberam que é necessário acabar com a abominação que são as aulas de educação sexual nas escolas públicas.

Claro que é uma boa notícia para os fundamentalistas cristãos que o Tennessee tenha passado uma lei permitindo placas de matrícula estaduais anti-aborto que ostentem os dizeres «Choose Life» e tenha proibido placas que leiam «Choose Choice». O diferencial do preço (mais elevado) destas placas vai direitinho para os cofres de uma organização anti-aborto, a New Life Resources. Mas não é suficiente que apenas 13 estados permitam estas placas, Alabama, Arkansas, Connecticut, Florida, Hawaii, Louisiana, Maryland, Mississippi, Montana, Ohio, Oklahoma e South Dakota.

E, não obstante os esforços de Bush em tentar controlar a ciência que se faz nos Estados Unidos, nomeadamente com o desvio de fundos de investigação para projectos cretinos e não científicos como o poder da oração e afins, a análise do financiamento científico federal pela The Traditional Values Coalition (TVC), uma organização que representa 43000 Igrejas americanas que veta projectos de investigação «imorais», controle da blasfema investigação em células estaminais, os cientistas continuam a «contaminar» os Estados Unidos com as suas teorias ateístas e a impedir que as boas«teorias» obscurantistas cristãs sejam livremente difundidas.

Será que o GOP – e o resto da América – perceberam a mensagem? Ou será que Tony Perkins necessita realizar mais conferências de imprensa para os americanos perceberem a real ameaça que os fundamentalistas cristãos constituem*?

E que por mais medidas cristãs que sejam promulgadas elas nunca serão suficientes para os fanáticos cristãos até os Estados Unidos serem um «paraíso» bíblico seguindo à letra as leis divinas e aplicando castigos «bíblicos» às prevaricações a essas leis?

*Sobre o tema ver um artigo no New York Times de ontem que analisa o mais recente livro de um estratega do GOP, Kevin Phillips, dos finais dos anos sessenta, início dos anos setenta, American Theocracy: The Peril and Politics of Radical Religion, Oil, and Borrowed Money in the 21stCentury.

18 de Março, 2006 Palmira Silva

Acto falhado teocrata

No passado dia 1 de Março o professor de direito e candidato democrata ao Senado pelo estado de Maryland, Jamie Raskin, testemunhou em Annapolis numa audiência sobre a proposta Emenda à Constituição norte-americana que proibiria o casamento homossexual.

No final do seu testemunho uma senadora teocrata (republicana) afirmou que, de acordo com a Bíblia, o casamento foi uma decisão divina e que:

«Para mim este é um assunto assente exclusivamente em príncipios religiosos»

A que Raskin respondeu «Senadora, quando pronunciou o seu juramento na tomada de posse, colocou a mão sobre a Bíblia e jurou defender a Constituição. Não colocou a mão sobre a Constituição e jurou defender a Bíblia».

Junto os meus aos aplausos que irromperam na sala a estas palavras. Mas infelizmente nos Estados Unidos há cada vez mais teocratas cristãos em posições de poder que pretendem a inversão e perversão de valores indicada por Raskin!

18 de Março, 2006 Palmira Silva

Molly Blythe

Uma escritora e ex-jornalista transformada em blogger, Molly Blythe, publicou no seu blog um guia de instruções completo num post com o título «Para as mulheres de South Dakota: Um manual de aborto».

O manual é devotado às mulheres de South Dakota, estado em que o aborto vai ser proibido em todas as circunstâncias, incluindo violação, incesto e perigo para a saúde da gestante, com a única excepção nos casos em que a vida da mulher está em perigo se continuar a gravidez, excepção que para os mui cristãos promotores da nova lei inclui a já famosa «Sodomized Religious Virgin Exception».

Segundo Molly, ela e alguns amigos têm coligido informação sobre o aborto nos últimos anos uma vez que acreditam, depois da confirmação dos primeiros teocratas cristãos para o Supremo Tribunal, que a resolução de 1973 do Supremo que permite o aborto, Roe vs Wade, não perdurará num país cada vez mais dominado pelos teocratas, pelo menos a nível do Supremo.

Como seria expectável choveram ameaças de morte sobre Molly por parte dos devotos cristãos, defensores intransigentes do direito à vida de óvulos e espermatozóides, que, e talvez por Molly declarar o blog como um local de discussão de assuntos feministas, não resistem a tentar silenciar pela força todos os que não partilham a sua visão cristã misógina do mundo. Muitos comentários, variantes menos polidas de mandar as mulheres, isto é prostitutas, fecharem as pernas, confirmam que o que está em causa na questão do aborto nem remotamente tem a ver com qualquer defesa de vida humana mas sim com o problema que esses cristãos têm com a autodeterminação sexual das mulheres e com o facto de poderem apreciar sexo sem «punição».

Na mesma linha de punição das mulheres, o estado do Missouri, em que foi aprovada uma resolução reconhecendo o cristianismo como a religião oficial do Estado, a única religião que tem «reconhecimento justificado», prepara-se para aprovar leis que não só proibem o aborto como a educação sexual nas escolas e o apoio financeiro estatal a contraceptivos a mulheres com poucos recursos ou mesmo a organizações que expliquem a essas mulheres qual o melhor contraceptivo e onde o podem comprar. O que pareceria um contrasenso se os devotos legisladores de facto estivessem preocupados com o aborto já que sem informação nem auxílio na compra e acesso a contraceptivos será prevísivel que mais mulheres e adolescentes do Missouri se encontrarão em situações de gravidezes indesejadas… Mas na realidade apenas traduz fielmente a posição cristã sobre o sexo!

17 de Março, 2006 Palmira Silva

Uniões de facto homossexuais reconhecidas na República Checa

A República Checa concedeu reconhecimento legal às uniões de facto homossexuais, tornando-se o primeiro país europeu ex-comunista em que tal acontece. A lei, que tinha sido vetada pelo presidente Vaclav Klaus depois de aprovada em Janeiro por 45 votos a favor, 14 contra e seis abstenções, passou com o número mínimo de votos necessários para ultrapassar o veto presidencial.

A lei agora aprovada permitirá a casais homossexuais criar crianças mas não adoptá-las, para além de conceder direitos de herança idênticos aos de casais heterossexuais

Como indica o enviado da BBC a Praga, a sociedade checa, com uma população maioritariamente ateísta, e uma das mais seculares e liberais da Europa, apoiava a lei, que contava essencialmente com a oposição, como seria de esperar, de grupos religiosos, católicos nomeadamente, felizmente com pouca ou nenhuma influência na República Checa.

15 de Março, 2006 Palmira Silva

Defensores da fé

«Mas esta prescrição da razão não poderia ter força de lei se não fosse a voz e o intérprete de uma razão mais alta, à qual nosso espírito e nossa liberdade devem submeter-se.» (Leão XIII, encíclica Libertas Praestantissimum, 1888)

«O totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens.» (João Paulo II, encíclica Centesimus Annus, 1991)

Um argumento recorrente, e totalmente falso, por parte dos crentes em relação ao ateísmo consiste na afirmação que um sistema ético divorciado do «sobrenatural» é simplesmente utilitário/subjectivo/nihilista e redunda numa sociedade injusta e selvagem. Esquecendo que não há uma única crença religiosa que resista a um escrutínio objectivo; que não existe sequer uma única evidência que Deus, Alá, Yahweh, Shiva, Marduk , etc. sejam mais que as congeminações dos que os propuseram. E o mesmo em relação às supostas verdades «reveladas». Para além de que a suposta ética religiosa é uma ética mercenária em que se compra um lugarzinho no Paraíso por obediência a essas leis «reveladas».

Em qualquer religião, especialmente as do livro, há inúmeras interpretações quer da «verdadeira» natureza de Deus quer das suas «leis». E o terrorismo religioso é indissociável das religiões e tem sido justificado ou como excesso de fé ou por uma interpretação contrária a essa «verdadeira» natureza divina e às respectivas «verdadeiras» leis.

O problema é que essa natureza e as suas leis são o que alguém diz serem e, como temos apreciado ao longo da História, quer essa natureza quer as leis «reveladas» têm sofrido alterações radicais. O que torna essas verdades absolutas e as morais/éticas associadas mais subjectivas que a ética humanista ateísta. Porque a ética humanista é construída racionalmente a partir de premissas consensuais, como os direitos humanos, e por processos lógicos cujas regras são conhecidas de todos. As religiões apenas podem justificar as suas morais (irracionais) apelando a uma suposta experiência sobrenatural de um qualquer profeta, papa ou afins e que não resiste (nem pode ser sujeita) a uma análise racional.

Assim, para os crentes em qualquer religião, e todas exigem obediência acrítica ao que debitam, o imperativo de fazer o que quer que seja que Deus (ou o Espírito Santo) supostamente sussurra no ouvido de qualquer alucinadoou oportunista sobrepõe-se aos mais básicos princípios da convivência humana.

O cristianismo em particular aponta como doutrina fundamental uma aceitação submissa dos ditames do Vaticano, que se opõe a qualquer «insubordinação, relutância em obedecer, rebelião contra a autoridade». Um exemplo é o de Abraão e Isaac. Deus ordena a Abraão para sacrificar o seu filho, isto é, Deus ordena a Abraão para cometer um assassínio. Há aqui um aparente paradoxo, resolvido se entendermos que este episódio pretende incutir a lição que é mais importante obedecer a Deus do que preservar a vida humana. Nenhum princípio, verdade, honestidade intelectual, respeito pela vida humana, se sobrepõe à estrita fidelidade à miragem da «vontade» de Deus.

Estes (e outros) argumentos são desmontados num fabuloso artigo de Slavoj Zizek*, de leitura obrigatória, no New York Times de domingo. Deixo para já alguns parágrafos que reflectem exactamente o que penso sobre os temas abordados.

«Durante séculos disseram-nos que sem religião não éramos mais que uns animais egoístas, lutando pelo nosso quinhão, a nossa única moralidade a de uma alcateia de lobos; apenas a religião, diziam-nos, nos pode elevar a um nível espiritual mais alto. Hoje em dia, quando a religião emerge como a fonte de violência assassina por todo o Mundo, soam ocas as desculpas de que os fundamentalistas cristãos ou muçulmanos ou hindus apenas abusam e pervertem as nobres mensagens espirituais das respectivas crenças. E que tal restaurar a dignidade ao ateísmo, um dos maiores legados da Europa e talvez a nossa única hipótese de paz?

Há mais de um século, no livro ‘Os irmãos Karamazov’ e em outras obras, Dostoyevsky avisava-nos contra os perigos de um niilismo moral sem Deus, essencialmente argumentando que se Deus não existe então tudo é permitido. O filósofo francês André Glucksmann até aplicou ao 11 de Setembro a crítica de Dostoyevsky ao niilismo ateu, como sugere o título do seu livro ‘Dostoyevsky in Manhattan’.

Este argumento não podia estar mais errado: a lição que nos dá o terrorismo actual é que se Deus existe então tudo, incluindo rebentar com milhares de inocentes, é permitido – pelo menos para aqueles que clamam agir directamente em nome de Deus uma vez que, evidentemente, uma ligação directa com Deus justifica a violação de quaisquer considerações ou constrangimentos meramente humanos. Abreviando, os fundamentalistas religiosos tornaram-se iguais aos comunistas estalinistas sem Deus, para quem tudo era permitido uma vez que se consideravam instrumentos directos da sua divindade, a Necessidade Histórica de Progresso a caminho do Comunismo.»

(…)

Os fundamentalistas fazem o que consideram como boas acções de forma a cumprirem a vontade de Deus e para ganharem a salvação; os ateístas fazem-nas simplesmente porque são a coisa certa a fazer. Não é esta a nossa mais elementar experiência de moralidade? Quando eu faço uma boa acção não a faço como um suborno para cair nas boas graças de Deus; faço-la porque se não a fizesse não me conseguiria olhar no espelho.»

*O filósofo Slavoj Zizek, é o director internacional do Birkbeck Institute for the Humanities. O seu livro mais recente e o mais representativo é «The Parallax View».

14 de Março, 2006 Palmira Silva

Isaac Hayes deixa South Park

Isaac Hayes a voz do «Chefe» em South Park abandonou a série por, alegadamente, já não aguentar as sátiras à religião que abundam nesta série satírica.

Hayes, que personifica o cozinheiro da escola desde 1997, justificou a sua saída porque «As crenças religiosas são sagradas para as pessoas e devem ser sempre respeitadas e honradas». Estranhamente Hayes, um devoto cientologista e crente em Xenu, «thetan’s» e demais delírios do escritor de ficção científica L. Ron Hubbard que inventou a religião há cerca de meio século, nunca protestou as muitas sátiras devotadas a outras religiões. Os pruridos de Hayes apenas se manifestaram depois de um episódio de South Park (entretanto banido depois de Tom Cruise ter ameaçado processar a Paramount se o episódio fosse emitido outra vez), «Trapped in the Closet», ter satirizado a Igreja da Cientologia e as celebridades que acreditam nos disparates extra terrestres sortidos desta religião.

Matt Stone, co-criador de South Park, afirmou ontem à Associated Press que «Isto tem 100% a ver com a sua fé na Cientologia… Ele não tem problemas – e recebeu montes de cheques – em que o nosso programa satirize cristãos» acrescentando que «Ele quer um padrão diferente para as outras religiões e para a sua e, para mim, é aí que a intolerância começa».

Embora o «Chefe» fosse um personagem que de certa forma normalizava o mundo disfuncional de South Park numa nota optimista pode ser que agora possamos ver um episódio de «Bullshit! on Scientology»!

14 de Março, 2006 Palmira Silva

Cristanianismo vs islamismo

Não é apenas o Vaticano que explora os medos da modernidade despoletados pelo terrorismo islâmico para passar a mensagem que apenas o fundamentalismo cristão pode derrotar a ameaça do fundamentalismo islâmico.

Depois de Ratzinger, que expressou repetidamente as suas preocupações sobre o futuro de uma Europa sob a ameaça da laicidade e do Islão, em que a primeira, ou seja, a exclusão de Deus da vida pública, impede a única resposta que dará conta da ameaça islâmica, a assunção inequívoca e firme da superioridade do cristianismo é a vez dos dignitários anglicanos usarem o terrorismo islâmico como forma de coacção psicológica para angariar clientela!

No passado domingo os membros da congregação da Catedral de Lincoln foram avisados por um dos seus responsáveis, Alan Nugent, que, a não ser que os ingleses (assumidos pelo dignitário como cristãos por omissão) levem a sua fé a sério, a Inglaterra tornar-se-á a breve trecho uma nação islâmica.

Para Nugent é significativo que, embora menos difundido pelos media, nas manifestações integrantes da guerra dos cartoons, para além dos posters «brutais e violentos», esses sim muito reproduzidos na imprensa, muitos posters dos manifestantes avisavam que em breve a Inglaterra seria uma nação islâmica. «Não há dúvida que o Islão é uma fé missionária e a conversão de incréus um factor decisivo na sua difusão. Não é assim surpreendente que muitos muçulmanos possam ter a esperança que este país se converta à fé do profeta- especialmente quando encontram frequentemente uma fé cristã que é incerta e em declínio».

Não é muito difícil prever que esta será uma tecla muito utilizada no futuro próximo por parte de todas as confissões cristãs, a necessidade de combater fogo com fogo, isto é, combater o fundamentalismo islâmico com fundamentalismo cristão. Face aos prevísiveis ataques aos valores em que assenta a nossa civilização por parte das religiões, cristã e islâmica, é necessário que todos os que não querem regressar ao obscurantismo das Cruzadas afirmem a laicidade e a defesa dos direitos humanos consagrados como a única forma de ultrapassar a actual crise!

14 de Março, 2006 Palmira Silva

Uma entrevista com Daniel Dennett

O autor de «Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomenon», o livro que tenta explicar o como e o porquê de os homens terem inventado os deuses e um dos proponentes do termo «bright» para designar livre-pensadores em geral foi entrevistado pelo Guardian.

Vale a pena ler a entrevista (e esta outra) em que o cientista, que colaborou com Dawkins na extensão para o pensamento do mecanismo dos genes egoístas ou memes, compara neste seu novo livro a religião a um pequeno parasita, o verme Dicrocoelium dendriticum (lancet fluke), «um pequeno verme cerebral» que altera o comportamento de formigas de forma a ser engolido por uma ovelha ou vaca para se poder reproduzir nas entranhas destes animais. Dennett afirma que «memes são ideias contagiosas. Elas alastram de pessoa para pessoa. Há milhões de pessoas neste mundo que vivem de propagar memes. Todos os que trabalham em publicidade, todos em relações públicas e todos em religião».

Acusado pelos seus detractores de ser um «fundamentalista de Darwin», no sentido em que acredita que não existe uma área da vida que não possa ser passível de explicação em termos de selecção natural ( eu acrescentaria também deriva genética para dar conta de bizarrias nas mitologias religiosas de algumas comunidades isoladas), um rótulo que aceita alegremente, Dennett devotou a sua vida a mostrar como os ideais que consideramos mais sagrados, autodeterminação, individualismo, justiça, a alma, tudo o que se refere ao «Eu» pode (e deve) ser explicado em termos de preservação genética.

Eu não poderia estar mais de acordo com Dennett! Especialmente com a sua acepção que o mundo do futuro vai estar polarizado entre racionalidade e irracionalidade, isto é, crença.

12 de Março, 2006 Palmira Silva

Sodomized Religious Virgin Exception

A existência de mais um Opus Dei no Supremo Tribunal norte-americano, especialmente um que já demonstrou qual é a sua real agenda, deu alento aos teocratas que veêm no actual orgão máximo da justiça neste país apoiantes da sua aspiração de transformar os Estados Unidos numa teocracia cristã.

Um dos primeiros passos, de acordo com a misoginia e execração do sexo característicos do cristianismo, foi dado no South Dakota onde o governador Michael Rounds assinou no início da semana uma lei que criminaliza o aborto excepto no caso de perigo de morte da gestante.

Os esforços para que tal aconteça em mais estados da Bible Belt, nomeadamente no Ohio, Georgia e Tennessee, que assistem há meses aos esforços dos denodados fundamentalistas em levar às respectivas Câmaras de Representantes leis similares, redobraram desde que a lei no South Dakota passou e agora foi assinada pelo Governador. No Mississippi, a criminalização do aborto com excepção de violação, incesto e a saúde da gestante foi aprovada a semana passada. No Missouri foi proposta legislação em tudo análoga à do South Dakota.

Quais as motivações dos devotos cristãos, autênticos cruzados por óvulos e espermatozóides, que não têm rigorosamente nada a ver com uma pretensa «defesa intransigente da vida», é óbvio da explicação do Senador Bill Napoli, republicano (claro) do South Dakota, sobre as condições em que ele consideraria ser aceitável uma mulher abortar. Vale a pena ver e ouvir a entrevista em que o piedoso senador explica em que condições abre uma excepção, conhecida como a «Sodomized Religious Virgin Exception» por toda a blogoesfera americana. Transcrevo na íntegra para apreciação dos nossos leitores, sem me atrever a traduzir, esta pérola de raciocínio cristão, que mostra claramente que o objectivo dos teocratas nem remotamente tem a ver com protecção de óvulos e espermatozóides mas sim com a punição de mulheres que consentiram ter sexo -e, quiçá, horror dos horrores, até gostaram!

«A real-life description to me would be a rape victim, brutally raped, savaged. The girl was a virgin. She was religious. She planned on saving her virginity until she was married. She was brutalized and raped, sodomized as bad as you can possibly make it, and is impregnated. I mean, that girl could be so messed up, physically and psychologically, that carrying that child could very well threaten her life.»

Fico na dúvida se uma virgem ateia que seja brutalmente violada, sodomizada tão violentamente quanto possível constitui uma excepção para tão cristão político. Ou se tal como uma não virgem estava a «pedi-las» e em consequência merece ser punida com uma gravidez indesejada…

Como Napoli explica, o ideal cristão que defende é um regresso aos casamentos «Wild West» da sua infância em que nenhum casal se atrevia a sexo pre-marital sem que «the whole darn neighborhood» os obrigasse a um casamento, a tiro de bala se necessário. «You just didn’t allow that sort of thing» – sexo fora do casamento sem a devida punição pela comunidade – «to happen…And I happen to believe that can happen again. I don’t think we’re so far beyond that that we can’t go back to that».

Eu pessoalmente há muito que temo que esse retrocesso não só seja possível como esteja cada vez mais próximo. Desde que Roberts foi confirmado no Supremo!