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Palmira Silva

15 de Abril, 2006 Palmira Silva

Segurança nacional baseada na fé

Na altura em que descobri um artigo do National Catholic Reporter em que é comentado um estudo do Pew Research Center que revela que os americanos seculares (grupo que inclui ateístas e agnósticos) são os que mais desaprovam o uso de tortura – em contraste os católicos, 72%, são os que mais o consideram justificado – leio igualmente que a Casa Branca estabeleceu um Centro para Iniciativas Baseadas na Fé no Departamento de Segurança Nacional.

Entre as tarefas assacadas aos crentes que integrarão este Centro está «o desenvolvimento de inovadores programas piloto e de demonstração para aumentar a participação de organizações baseadas na fé em iniciativas Federais assim como estaduais e locais». Certamente que os americanos se sentirão mais seguros sabendo que uma série de pessoas pagas pelos impostos de todos rezarão fervorosamente no caso de alguma calamidade, natural ou outra, atingir os Estados Unidos.

Entretanto, e igualmente no mês de Março, Gregg Martin foi elevado a general brigadeiro. O general Martin é certamente muito conhecido pelo seu trabalho clássico, «Jesus, the Strategic Leader», que lhe valeu uma progressão meteórica na carreira militar.

Menos sorte teve Peter Smith, um fotógrafo free lance, que foi despedido de um jornal católico de Boston, para o qual trabalhava há 10 anos. Smith cometeu uma heresia inadmissível: forneceu ao Boston Herald uma foto do juiz do Supremo Tribunal, o Opus Dei Antonin Scalia, a fazer um gesto rude com os dedos. O gesto foi dirigido aos repórteres que o interrogavam sobre o possível questionamento da sua imparcialidade em decidir assuntos que envolvam a separação da Igreja e do Estado à saída da missa na Catedral Holy Cross. O Boston Herald tinha publicado previamente a notícia sem confirmação visual e o seu corpo editorial tinha sido acusado pelo juíz de «ver demasiados episódios dos Sopranos». A foto que valeu o despedimento com «justa causa» de Peter Smith deu razão ao jornal

Scalia é o grande paladino do direito à vida de óvulos e espermatozóides que nega qualquer direito aos detidos em Guantanamo, nomeadamente considera não terem o direito a serem julgados em tribunais civis:

«Estrangeiros, em países estrangeiros, não têm qualquer direito ao abrigo da Constituição Americana»

15 de Abril, 2006 Palmira Silva

Ah! Rio de me ver tão bela neste espelho


Uma professora de música, Tresa Waggoner, de Bennett, uma pequena cidade do Colorado, cerca de 54 km a leste de Denver, foi suspensa em Janeiro último por ter mostrado aos respectivos alunos um vídeo da ópera Fausto.

Tresa, uma ex-cantora de ópera, resolveu mostrar aos alunos excertos da referida ópera numa preparação para o espectáculo que os cantores da Opera Colorado iam executar a seu convite na escola primária de Bennett.

Alguns pais queixaram-se que os seus filhos ficaram «traumatizados» depois de verem e ouvirem a famosa soprano Joan Sutherland e marionetas cantarem o Fausto de Goethe na versão de Charles François Gounod. Os devotos pais acusaram ainda Tresa de ser uma adoradora do diabo e uma lésbica que promovia a homossexualidade aos alunos.

Em resposta às queixas dos pais, o superintendente George Sauter suspendeu Tresa até Agosto, data em que o seu contrato terminava, informando-a de que não seria readmitida. Tresa procura agora emprego fora de tão piedosa e temente a Deus comunidade.

A pressão de devotos cristãos foi igualmente a razão do pedido de demissão da professora de teatro de uma escola secundária de Fulton, no estado de Missouri, o tal que agora tem o cristianismo como religião oficial, que preferiu demitir-se a ser despedida depois de membros da Callaway Christian Church se terem carpido do conteúdo das peças que estavam sendo encenadas nas suas aulas. Os alunos de DeVore iriam apresentar a peça «The crucible» (ou As Bruxas de Salém), de Arthur Miller, um drama que retrata a caça às bruxas no século XVII.

15 de Abril, 2006 Palmira Silva

1506-2006: O massacre de Lisboa


«No mosteiro de São Domingos da dita cidade estava uma capela a que chamava de Jesus, e nela um crucifixo, em que foi então visto um sinal, a que davam cor de milagre, com quanto os que na igreja se acharam julgavam ser o contrário dos quais um cristão-novo disse que lhe parecia uma candeia acesa que estava posta no lado da imagem de Jesus, o que ouvindo alguns homens baixos o tiraram pelos cabelos de arrasto para fora da igreja, e o mataram, e queimaram logo o corpo no Rossio. Ao qual alvoroço acudiu muito povo, a quem um frade fez uma pregação convocando-os contra os cristãos-novos, após o que saíram dois frades do mosteiro, com um crucifixo nas mãos bradando, heresia, heresia,
(…)
tirando-os delas de arrasto pelas ruas, com seus filhos, mulheres, e filhas, os lançavam de mistura vivos e mortos nas fogueiras, sem nenhuma piedade, e era tamanha a crueza que até nos meninos, e nas crianças que estavam no berço a executavam, tomando-os pelas pernas fendendo-os em pedaços, e esborrachando-os de arremesso nas paredes.»

Damião de Góis in «Chronica do Felicissimo Rey D. Emanuel da Gloriosa Memória».

O Nuno Guerreiro do excelente «Rua da Judiaria» recorda numa série de posts detalhes de um massacre que muitos prefeririam não fosse recordado.

Um massacre que fez mais de 4 mil mortos – anussim, judeus portugueses, homens, mulheres e crianças, assassinados em três dias sangrentos, 19, 20 e 21 de Abril de 1506.

Eu pessoalmente respondo ao repto lançado pelo Nuno e dia 19 de Abril podem encontrar-me no Rossio a acender uma vela simbólica para recordar as vítimas da intolerância religiosa. Uma vela completamente ateísta, uma vela de defesa da memória.

Porque também considero ser imprescíndivel «mostrar – provar mesmo – a necessidade absoluta e irredutível da memória».

14 de Abril, 2006 Palmira Silva

Popetown: dois pesos, duas medidas

Aquela que é considerada «a mais hilariante série televisiva dos últimos tempos», Popetown, estreia no próximo dia 3 de Maio na MTV germânica entre um coro de protestos e ameaças de procedimentos legais do Comité Central dos Católicos Alemães (ZdK) e da Conferencia Episcopal Alemã (CEA) .

A polémica série de desenhos animados protagonizada pelo Papa Nicholas, um pontífice «louco e excêntrico» de 77 anos, fruto da colaboração entre a BBC3 e o Channel X, nunca passou no Reino Unido devido à pressão de grupos católicos.

Como seria expectável, foi despoletada uma cruzada na Alemanha contra a série que incluiu, como referiu o Carlos, o anúncio respectivo. A Conferencia Episcopal Alemã (CEA) considera o anúncio da MTV nas revistas de programação televisiva uma provocação ultrajante aos cristãos, opinião ecoada pelo ZdK que acrescenta que o anúncio «arrasta a fé cristã na lama».

Mais um caso em que se confirma que a defesa da liberdade de expressão e os protestos contra as leis da blasfémia por parte dos cristãos em geral e dos católicos em particular se restringem aos países em que o cristianismo é minoritário. Nos países onde são maioritários já consideram perfeitamente legítimo exigir «parem de pisar os sentimentos religiosos dos cristãos». E ululam ser um «ataque directo à crença cristã» um anúncio tão inócuo (e divertido) como o reproduzido.

14 de Abril, 2006 Palmira Silva

Eu também concordo com o arcebispo

Como foi indicado pelo Ricardo Alves, Lawrence Saldanha, arcebispo católico de Lahore, lidera a campanha pela abolição do delito de blasfémia no Paquistão. O arcebispo, que preside também à Conferência Episcopal católica do Paquistão, defende a revogação dos preceitos B e C do artigo 295º do Código Penal paquistanês, que criminalizam a crítica do Corão e de Maomé, respectivamente.

Este artigo, introduzido em 1988, tem sido utilizado como desculpa para perseguir cristãos neste país, queimar igrejas e assassinar blasfemos, bastando para isso que se ululem acusações de blasfémia e se produza um Corão «vandalizado».

O caso mais recente de blasfémia é uma paquistanesa cristã, Naseem Bibi, descrita como tendo atraso mental, que foi acusada de vandalizar uma imagem da Kabah, o templo sagrado do Islão na Arábia Saudita. A acusada, confinada á solitária e sem direito a fiança, aguarda julgamento em completo isolamento. O marido e os filhos foram forçados a sair de casa com medo de retaliação por parte de extremistas muçulmanos.

Esperemos que a história de Naseem não termine como a de uma sua homónima igualmente acusada de blasfémia, que morreu na cadeia em 2003, enquanto aguardava julgamento.

A Comissão de Direitos Humanos do Paquistão manifestou então a sua preocupação pelo número elevado de acusados de blasfémia que morriam nas prisões em circunstâncias no mínimo suspeitas, quando não configuravam claramente assassinatos.

Para a minha moral ateísta e humanista criminalizar a blasfémia é uma abominação comparável a outras abominações do passado, sancionadas e defendidas pelas religiões, como seja a escravatura. Aliás o próprio conceito de blasfémia é em si uma abominação anacrónica, que nesta altura e no rescaldo da guerra dos cartoons, ameaça as próprias fundações da nossa civilização ocidental.

Mas a Igreja Católica que tanto se indigna com as leis da blasfémia em locais onde é minoritária, carpindo a alto e bom som os «mártires» da intolerância alheia, nos países onde é maioritária clama que «O respeito pelo sagrado é algo que a cultura não pode pôr em questão, mesmo em nome da liberdade».

Cultura democrática assente na liberdade e respeito pelos direitos humanos, que incluem o direito à blasfémia, e cultura democrática que segundo Ratzinger é um erro que nos conduziu ao «abismo» actual. Aliás, opinião que os católicos presentes no vergonhoso Prós& Contras de segunda-feira repisaram à exaustão (a propósito do programa, recomendo vivamente este post). Segundo o nosso cavaleiro da pérola redonda, numa prestação que ultrapassou todos os limites do decoro, paladino da moral e bons costumes que respeita os terroristas que chacinam infiéis em nome da religião, a suposta decadência europeia deve-se exactamente aos princípios básicos da democracia e à laicidade.

Apenas a laicidade e concomitante liberdade de expressão garantem a liberdade religiosa de todos, no Paquistão ou em qualquer local do mundo. Liberdade de expressão e laicidade em que assestam as baterias dos fundamentalistas de todas as religiões nos países em que são maioritários e que incoerentemente, como tudo nas religiões, defendem nos países onde são minoritários!

13 de Abril, 2006 Palmira Silva

Poenitentiale Ratzinger

O papado de Ratzinger tem sido pautado por um crescendo de fundamentalismo que passa pela negação crescente do concílio Vaticano II e pela recuperação das praxis mais anacrónicas da já de si anacrónica ICAR. A última, que nos remete aos tempos tão elogiados pelo actual e último papas, a era gloriosa da Cristandade, tem a ver com a recuperação da celebração da penitência na semana dita santa.

Na realidade, esta semana «santa» foi marcada por uma série de declarações que isoladamente passariam despercebidas entre as profusas banalidades habituais emanadas da Santa Sé mas que vistas globalmente indicam inequivocamente o rumo obscurantista traçado por Ratzinger.

Assim, num claro recado aos católicos ditos «liberais» o Vaticano lembrou que «Não há Teologia católica» sem aceitação do Magistério da Igreja – isto é que ser católico implica a subordinação total aos ditames do Vaticano e é heresia pensar temas de religião pela própria cabeça. Reforçando a mensagem aos jovens de Ratzinger para que estes rejeitem o secularismo e aquilo a que chamou «religião faça você mesmo».

Por seu lado o representante-mor do Vaticano local adverte os católicos portugueses para os perigos da ciência e da análise racional, destacando que «os discípulos de Cristo não podem cair nesta tentação [usar a razão]».

Como confirmado pelo arcebispo Piero Marini, mestre de celebrações litúrgicas pontifícias, a mais recente adição às práticas ICARianas é um rito que era tradicional em Roma até ao Renascimento, abandonado quando as teses obscurantistas tão queridas à santa madre igreja, nomeadamente as de Bernardo de Claraval (ou Clairvaux) no século XII, foram destronadas e deixou de ser heresia o novamente execrado uso da razão.

Assim, pensar pela própria cabeça continua anátema para a Igreja de Roma que, pela voz do cardeal americano James Francis Stafford, o penitenciário-mor do Vaticano, introduziu três novos pecados no léxico pecaminoso dos católicos. Três pecados que tentam obstar a que a era da informação trespasse as idiotices da mitologia cristã permitindo assim que os crentes permaneçam no estado de santa ignorância preferido pela Igreja e pelo actual Papa, que quer os católicos longe da influência nefasta de intelectuais.

Constitui então pecado para um católico manter-se informado ou procurar informação, mais concretamente são pecados o excesso de Internet, de televisão e de jornais (em que excesso é definido em relação ao tempo que se passa a ler a Bíblia) . Aliás, a penitência agora aconselhada pela Igreja Católica, para qualquer pecado, é a leitura da Bíblia que aparentemente para os totalitários do Vaticano contém toda a informação necessária a qualquer crente.

Enfim, nada que não tivesse sido previsto há quasi um ano nestas páginas:«Direi mesmo que o dia de hoje, 19 de Abril de 2005, pode constituir um marco para um retrocesso civilizacional que será muito difícil de recuperar». Os últimos desenvolvimentos confirmam os meus receios…

13 de Abril, 2006 Palmira Silva

Vitória de Pirro dos talibans madeirenses?

«Com as fantásticas condições naturais que a Madeira oferece tão natural seria de prever um grande festival de música de dança como o que se realizará nos próximos dias 14 e 15 de Abril e que vai trazer a Portugal Dj’s mundiais de topo numa Marina onde não faltarão a cidadania e o característico fogo de artificio.»

É assim que ainda é anunciado o evento musical que tanta tinta e tanta polémica tem originado nos últimos dias. Como foi apontado pelo Boss, aparentemente houve alguma confusão na informação produzida ontem quer pelo Diário Digital quer pela RTP, isto é, o Madeira Paradise inicia-se de facto sábado, já que foi adiado uma hora das onze horas para a meia-noite de sexta-feira, ou antes, para as zero horas de sábado. A organização garantiu um cuidado especial com o volume da música até pelo menos à uma da madrugada de sexta para sábado.

A outra alteração anunciada tem a ver com o local do festival que vai decorrer no Madeira Tecnopolo, e não na Quinta do Lugar de Baixo, como estava previamente anunciado, o que se traduz numa redução na lotação do evento para 8000 pessoas.

A organização fez saber que a razão desta mudança se deve ao facto do local inicialmente previsto supostamente não apresentar condições de segurança devido a uma iminente derrocada (fica no ar a dúvida se a Marina do Local de Baixo será interditada ao público ou se a derrocada está iminente apenas este fim de semana…).

Uma pesquisa rápida pelos fóruns locais dá uma excelente perspectiva do que alguns pensam sobre a santa madre igreja. Um comentador especialmente presciente rebateu de forma magistral as barbaridades que o Bispo da Madeira debitou, dignitário que pelo que tive oportunidade de apreciar em mais locais internautas não é especialmente benquisto na comunidade cibernauta madeirense, que não esquece a sua relação intíma com o padre Frederico. Reproduzo um dos comentários desse madeirense aos dislates do bispo:

O «terrorismo» não se faz só com bombas e metralhadoras: impedir, sem qualquer motivo razoável, tantas pessoas de celebrar com dignidade um dos dias mais importantes da sua fé religiosa bem pode merecer essa designação.
«Pois não, o terrorismo faz-se através da imposição de ideias e ideologias, tal como a igreja fez e continua a fazer. Em outros tempos inclusivé através da força, da opressão e da perseguição.»

Mas o piedoso bispo que tanto se indigna contra o suposto «terrorismo» musical não tem pejo em incitar a terrorismo de facto para impedir a realização do evento. Assim, foram distribuídos panfletos a convocar os madeirenses para uma manifestação junto à entrada da Marina do Lugar do Baixo uma hora antes do início do Festival de Música Madeira Paradise. Panfletos que apelam à violência para obrigar todos ao «respeito à palavra de Deus e aos Mandamentos da mesma», porque é necessário «mostrar« que «quando os madeirenses querem, a Fé é mais forte do que todos os divertimentos».

Como se pode ler no Diário de Notícias «Um parágrafo que acaba por, indirectamente, incitar à violência tendo em conta os acontecimentos dos anos 70 naquela localidade, por motivos políticos e religiosos. Muitos se recordam do recurso a armas, nomeadamente no tempo em que a Flama – Frente de Libertação da Madeira defendia a independência da Madeira.»

Agora que a localização do evento foi alterada para um local mais «pacífico» e a procura de bilhetes está em alta , resta ver se os talibans católicos locais persistem no apelo às armas para combater o blasfemo festival e impôr a todos os madeirenses a vontade e ditames da Igreja!

12 de Abril, 2006 Palmira Silva

Talibans madeirenses ganham

A Creatives RAM, a organização que preparou o «Madeira Paradise Dance Tour 2006» anunciou que «O Madeira Paradise, terá início na noite de sábado de Aleluia».

O evento que, como explica a referida organização «foi marcado e planeado com sete meses de antecedência com empresas nacionais e estrangeiras» e pretendia levar à Região «os melhores DJ´S do mundo», foi adiado devido à pressão e ameaça de boicote dos talibans locais, isto é, o bispo do Funchal e seus acólitos, que não admitem que alguém não siga os seus ditames e rituais macabros, nomeadamente divertindo-se na noite em que todos, crentes e não crentes, se deviam prostrar em respeito pela suposta morte do mitológico Cristo.

Especialmente uma diversão envolvendo a famigerada música rock condenada por Ratzinger como sendo um «contra-culto que se opõe ao culto cristão»!

Apenas mais uma amostra do totalitarismo, intolerância e fundamentalismo de uma Igreja que ainda na segunda-feira na nossa televisão pública foi elogiada pela sua «tolerância». Uma amostra que prenuncia a «guerra» terrorista que se avizinha quando os poderes públicos começarem finalmente a tratar os temas que a Igreja Católica considera serem da sua competência e sobre os quais se acha no direito de impôr a todos a sua posição neolítica!

9 de Abril, 2006 Palmira Silva

Os mártires cristãos nos Estados Unidos

«Com ou sem religião existem pessoas boas fazendo coisas boas e pessoas más fazendo coisas más. Mas para que pessoas boas façam coisas más é necessário serem religiosas» Steven Weinberg

No último post abordei a imagem de marca do cristianismo, a encenação e invenção de perseguições inexistentes contra os cristãos. Para os fundamentalistas cristãos americanos essas perseguições são consequências da abominável «cultura» que trivializou matérias tão inadmissíveis como as uniões de facto, a homossexualidade, o sexo, os contraceptivos e o aborto, a tolerância em relação a apóstatas e, especialmente, foi concretizada em abominações como a recente proposta de alteração das leis anti-discriminação nas escolas da Califórnia.

De facto, as associações fundamentalistas cristãs estão em pé de guerra e a mobilizar as suas hostes contra uma proposta de alteração da lei SB 1437 que acrescenta o género e a orientação sexual à versão anterior:

«Nenhum professor dará instrução nem nenhum supervisor escolar de distrito apoiará alguma actividade que se reflicta negativamente em pessoas devido à sua raça ou etnicidade, género, deficiência física, nacionalidade, orientação sexual ou religião».

Para os teocratas esta proibição da mui cristã discriminação de mulheres e homossexuais é uma perseguição, uma opressão da Igreja reiteradamente carpida em prime time e nas primeiras páginas dos jornais:

«Nós estamos enfrentando, como nunca no passado, esta hostilidade contra o povo de Deus» bramiu o «perseguido» pastor Herbert Lusk, que recebeu mais de 1 milhão de dólares de financiamento federal ao abrigo dos programas baseados na fé de Bush. Este «mártir» cristão continuou advertindo:

«Não brinquem com a igreja porque a igreja já enterrou muitos críticos [suponho que todos menos os cristãos recordam alguns desses críticos, vítimas do zelo inquisitorial dos cristãos] e todos os críticos que ainda não enterrámos estamos a tratar dos preparativos do seu funeral».

Na realidade esta pretensão imbecil dos teocratas seria risível se não fosse preocupante. No país que dizem ser hostil em relação ao «povo de Deus», os ateístas são o único grupo que é socialmente aceite discriminar nos Estados Unidos. Numa sondagem conduzida pela Universidade do Minnesota verificou-se que os ateístas são a minoria em que os americanos menos confiam, com níveis de confiança inferiores aos que mereceram muçulmanos ou mesmo os odiados homossexuais.

Na realidade o estudo dos sociólogos do Minnesota era desnecessário, basta pensar que em muitos Estados americanos um motivo perfeitamente válido para decidir a custódia de crianças é a falta de religiosidade, sendo igualmente comuns os casos em que os juizes obrigam pais ateístas a dar educação religiosa aos filhos!

Como um dos membros do Supremo Tribunal mais citado como exemplo pelos teocratas, o juiz Joseph Story, perorava em meados do século XIX, para os cristãos americanos é obrigação do Congresso combater o ateísmo. A liberdade religiosa que afirmam estar em perigo e dizem defender, não se estende à liberdade de não professar uma religião. Aliás, sempre que algum crente se diz defensor da liberdade de religião em qualquer parte do mundo refere-se sempre à liberdade para a «sua» religião; nunca alguém viu um crente defender o direito ao ateísmo, o inimigo execrado e perseguido por todas as religiões!

Podemos apenas imaginar a guerra movida pelo exército cristão e as hordas ululantes em orgias de fé que se mobilizariam se alguma vez um único pai cristão fosse privado da custódia de um filho com base na sua fé!

Ou se, como no Texas, cuja Constituição (Artigo I, Secção 4) permite claramente a discriminação de ateístas em cargos públicos, «ninguém será excluído de uma posição pública com base nos seus sentimentos religiosos, desde que reconheça a existência de um Ser Supremo», o cristianismo fosse causa legítima de despedimento ou impedimento na contratação.

9 de Abril, 2006 Palmira Silva

A Espuma dos Dias

Elizabeth A. Castelli, professora de estudos religiosos no Barnard College e autora de «Martyrdom and Memory: Early Christian Culture-Making», analisa num artigo indispensável a conferência «Guerra aos Cristãos», organizada pela Vision America, uma organização que entre outras mui cristãs barbaridades, advoga pena de morte para abortistas, homossexuais e adúlteros.

O objectivo da dita conferência, realizada em Washington nos passados dias 27 e 28, consistia em «contribuir para uma genuína revitalização da fé cristã na América e na promoção de um adequada compreensão do papel da igreja na vida americana». Pelo teor da conferência dir-se-ia que este papel é um papel bélico porque um dos temas recorrentes foi a necessidade dos cristãos pegarem em armas para combater o demo e as suas muitas faces (que incluem os cristãos que não sentem o divino apelo às armas). Como bem evidenciado pelo grito de guerra de Ron Luce, o presidente e fundador da Teen Mania, uma organização revivalista cristã dirigida a instilar ódio aos infiéis nos jovens americanos. Inenarrante e cristãmente inspirado na Bíblia, mais concretamente em Juizes 19, o devoto ululou «Despedaçem a concubina*. Despedaçem a concubina. Despedaçem a concubina. Despedaçem a concubina.»

No artigo, demasiado extenso para comentar na sua totalidade pelo que recomendo vivamente a sua leitura, pode apreciar-se em todo o seu esplendor o ex-libris do cristianismo, a mania da vitimização e perseguição, nomeadamente na elevação a mártir de Tom «Chicote de Deus» DeLay, o antigo líder republicano do Congresso, grande promotor de uma «perspectiva bíblica» da política já que «Apenas o cristianismo permite uma forma de perceber as fronteiras morais e físicas» do «sentido da vida», que anunciou há dias a sua demissão do Congresso, depois de dois dos seus principais colaboradores se terem declarado culpados de várias acusações de corrupção no escândalo Jack Abramoff.

Como não podia deixar de ser um dos temas «quentes» duma conferência em que os pressupostos são que Deus deu os Estados Unidos aos cristãos para que estes aí estabelecessem uma nação baseada nos ditames da Bíblia, assentou nos malefícios da «cultura» e da «tolerância», ambas as palavras com uma conotação tão depreciativa que devem figurar proeminentemente no léxico do vernáculo fundamentalista cristão. Cultura e tolerância que afastam os Estados Unidos do seu grandioso destino porque para os devotos cristãos a crescente teocratização dos Estados Unidos é apenas um compromisso inaceitável já que o muro de separação igreja – estado ainda não ruiu completamente. E não podem existir compromissos quando a «verdade absoluta» e Deus são invocados.

A homossexualidade foi igualmente um tema que ocupou boa parte do tempo dos conferencistas, com leituras gráficas de sites homossexuais, uma abominação que a tal monstruosa «cultura» disfarça com termos como gay ou homossexuais e que Lou Sheldon da Traditional Values Coalition pretende ver substituidos por «sodomitas» e «os pervertidos».

Como termina Elizabeth Castelli o que ressalta desta conferência, um apelo explícito a um levantar de armas pelos cristãos numa guerra religiosa contra o Demo, personificado especialmente pelo sistema judicial norte-americano, é extremamente preocupante. Com o governo federal e muitos governos estaduais completamente dominados por teocratas, o único obstáculo à instalação da nação «bíblica» é o sistema judicial que mantém alguma independência, não obstante a cristianização recente do Supremo Tribunal. Parafraseando Castelli «Quando os poderosos pretendem ser impotentes e usam esta pretensão e um suposto mandado divino para autorizar um ataque sem tréguas a uma instituição política estamos certamente em terreno perigoso»

*Juizes 19:29 Quando chegou em casa, tomou um cutelo e, pegando na sua concubina, a dividiu, membro por membro, em doze pedaços, que ele enviou por todo o território de Israel.